Onde Está Amarildo?, Ou Como O Gigante Acordou E Foi Comer Sucrilhos

A pergunta que ecoa é: Onde Está Amarildo? Esta pergunta não sai das manifestações no momento atual, mas, ao mesmo tempo, nada parecido acontecia há mais ou menos um mês, quando as manifestações tinham um caráter um pouco diferente. Qual a relação de Amarildo com a situação atual das manifestações?

As manifestações atuais que já cheguei a comentar sobre sua violência e sobre alguns dias em que participei, foram tomadas por uma leva que, a primeiro momento, foi rejeitada pela esquerda: foi quando a classe média acordou com suas bandeiras do Brasil, hino nacional e asco à partidos.

Desde então, vários textos vêm declarar que o gigante que acordou é, na verdade, um bobo criado à pera com leite. Um gigante sem rumo, sem consistência, sem nada além de gritos. Eu acredito que o episódio de Amarildo se encaixa no andamento da situação atual e fornece mais uma característica do Gigante.

Onde Está Amarildo? Rocinha Com Câmeras Desligadas Na Hora Em Que O Levaram

Amarildo era pedreiro e vivia na Rocinha, a maior favela do mundo, com pouco mais de 300 reais para sustentar sua família. Era conhecido no local e lá tinha muitos parentes. Em uma operação (Operação Paz Armada, que nos leva a outra dúvida: se a paz é armada, então a guerra contra o terrorismo faz todo sentido) a PM o sequestrou e ainda não se sabe seu paradeiro. Não há informações sobre Amarildo e nem se sabe se ainda está vivo.

Onde está amarildo?

Nesta operação, que ocorreu após um arrastão perto da favela, 30 pessoas foram presas. Foram 300 policiais para resolver o problema da criminalidade na Rocinha. Mas quando se manda o aparelho repressivo para resolver um problema de criminalidade, se tem como objetivo a higienização da sociedade.

Aqueles que cometem crimes serão extirpados pelo aparelho policial, serão retirados à força, nem que seja pela morte. Esses estranhos, que são muito bem vindos desde que aceitem a ordem vigente e suas leis, desde que ocupem posições humilhantes e façam o serviço degradante que nenhum sujeito legítimo de nossa sociedade deveria fazer, quando ultrapassam o ponto, precisam ser higienizados.

Bauman E O Estranho

Uma das reflexões de Bauman é que o estranho, diferente daquele no mundo sólido-moderno, o mundo dos dois grandes blocos, que precisava ser retirado do mapa, precisava ser afastado da sociedade, já que ele a poluía, degradava o meio social pelo asco que causava e degradava a sociedade quando se reproduzia, pois sua essência já-degradada se multiplicava. Este era um estranho que, legitimamente, podia ser excluído da vida em sociedade.

O estranho da modernidade líquida, dos nossos tempos, da sociedade globalizada e multicultural, é um estranho que já não pode ser morto por uma essência, já que, afinal de contas, se sabe que não há determinação essencial para a constituição do sujeito: o que faz de alguém aquilo que é, é a cultura. Até mesmo o racismo se modifica, incorporando esta tese: o ‘novo racismo’ quer separar as culturas e deixá-las livres para se desenvolverem separadamente. Não se rejeita a mistura de raças, mas se rejeita a mistura de culturas. Não se mata a raça inferior, mas se exclui ela de sua cultura superior (afinal, os racistas são sempre aqueles que veem um privilégio no isolamento da própria cultura).

Isso coloca um ponto impossível de se deixar de lado: os estranhos de uma sociedade líquida não podem ser mortos. Há o reconhecimento de uma humanidade universal e igualitária que anula a possibilidade de – legitimamente – retirar os estranhos da sociedade. É aí que empregos degradantes são funcionais, já que são eles que permitem a permanência dos novos estranhos – de certa forma, os empregos degradantes, trabalho semi-escravo e etc e etc são parte integrante e necessária da nova sociedade, pois são eles que, como já dito, fazem possível a permanência dos novos estranhos.

Onde Está Amarildo Nas Manifestações?

Uma coisa se percebe: o clamor por Amarildo é algo que fica na sombra do clamor das manifestações pelos agredidos na Paulista ou no Leblon… Pior, é algo que fica na sombra dos gritos contra a corrupção que os manifestantes do Gigante gritavam. Amarildo é a mostra de que há algo para se manifestar e há algo que não precisa de manifestação. Retomando o ponto da primeira seção do texto: o pedreiro não precisa ser lembrado. Ele não faz parte da ordem projetada – ele faz parte das adequações que a ordem faz para sua existência. Ele existe de favor no mundo, ele é aquilo que a ordem rejeitou mas que não pode deixar de ter para sua construção (tanto material, como simbólica).

amarildo sequestrado pela pm do rj

No processo de higienização, não se elimina todos os impuros, já que alguns precisam estar vivos para ocupar as piores posições da estrutura social: são os estigmatizados por excelência, já que são sempre ladrões, loucos e sujos. Eles não merecem uma categorização dignificante.

A atenção para Amarildo retorna justamente num momento em que o Gigante volta a dormir de pouco em pouco. Amarildo vira foco quando o Combate Contra a Corrupção cai no esquecimento. Por quê? Porque quem dá voz ao Onde Está Amarildo não é a mesma pessoa que deu voz ao CCC. Se o estranho é aquele que não é mapeado cognitivamente, esteticamente ou moralmente dentro da ordem, então, são exatamente os estranho que mostram as delimitações da ordem. A ordem produz os estranhos, produz sua impureza no momento em que tenta construir sua ordem – Amarildo é a sujeira da democracia liberal globalizada, um dos tipos de estranho.

Polícia Fascista, Novamente

Então caímos na impossibilidade de matar a sujeira, por esta ser considerada tão humana quanto a pureza, mas , ao mesmo tempo, não se pode deixar a impureza livre.  Quando a impureza é retirada da parte central da sociedade, quando é armazenada em favelas e quando só se relacionam com a parte limpa, higienizada, sua existência é tolerada, mas quando ultrapassa estes limites – como nos arrastões no RJ ou no arrastão perto da Rocinha – ela precisa ser duramente reprimida – desinfectada.

O sequestro de Amarildo revela que:

1) Há causas que precisam de manifestação, como a corrupção. Há outras que não, como a limpeza da sujeira. Se Amarildo só ganhou repercussão depois que o Gigante voltou a dormir, isso se dá porque a militância que já estava acordada antes do Gigante continuou em suas lutas.

Essa delimitação, que pode ser vista na cobertura da grande mídia em relação ao combate à corrupção em comparação com o sequestro de Amarildo, mostra parte do caráter das manifestações. Este caráter se dá por aquilo que a manifestação reivindica (combate à corrupção) e por aquilo que ela não reivindica (mortos na Maré, mortos nas favelas de SP, Amarildo e etc). O tema da desmilitarização da polícia foi algo que chegou somente depois do Gigante começar a dormir.

2) É necessário um pouco de fascismo para manter a democracia liberal. Eu já tinha falado sobre isso num ensaio sobre o filme Stallone Cobra: Cobra é um policial autoritário e inconsequente que defende sua democracia liberal contra um grupo denominado ~fascista~. Existir um Cobra é a necessidade de agir fora da ordem para mantê-la (afinal, as câmeras estavam desligadas na Rocinha, no momento do sequestro de Amarildo). É necessário, como mostra a PM, ser fascista para proteger a democracia liberal, pois dentro de sua lógica, uma ação mais dura não seria legítima.

favela da rocinha, moradia dos estranhos e da sujeira da ordem

De Volta À Cama, Gigante

É claro que não vantajoso para nenhuma luta popular ver que parte de sua massa está voltando para casa e não pretende sair de lá, ao mesmo tempo que é muito vantajoso perceber que uma parte que estava despolitizando a luta não está mais fazendo seu papel despolitizante. Eu creio que “retirar os coxinhas” das lutas é, até mesmo, uma forma de limpeza, de retirar os estranhos em relação à nós, verdadeiros militantes da causa, não obstante, deixar que façam o que quiserem é perder a causa.

Se Amarildo ajuda a perceber qual era o caráter das manifestações e ajuda a traçar uma linha que mostra as variações do caráter das manifestações, que mostra suas descontinuidades, então o Onde Está Amarildo? também mostra que é necessário juntar todo tipo de militante, que é necessário realizar um trabalho de consciência com as pessoas que estão/estavam indo para as ruas. Não se trata só de rejeitar o impuro, mas, de uma certa maneira, de realizar a antropofagia: de fazer dos estranhos, nossos iguais, sem absorver suas causas que não se sincronizam com o caráter das lutas.

3 Comentários

  1. Não existe nada mais inconstitucional do que a atividade da PM. É incrível. Para começar, eles não pressupõe inocência em primeiro lugar. Um dia inventei de assistir um desses reality shows policiais e fiquei me sentindo péssimo.
    Os caras fazem uma pergunta, o acusado responde, e ai o PM já solta “MENTIRA”.

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