Os tempos hipermodernos de Gilles Lipovetsky – Resenha

Os tempos hipermodernos de Gilles Lipovetsky podem ser vistos em seu ensaio Tempo Contra Tempo. Aqui é feita uma pequena apresentação do conceito de Hipermodernidade e do ensaio em questão, retratando a visão do autor sobre a sociedade atual e seus balanceamentos sobre a pós-modernidade

Este artigo pretende ser uma resenha do ensaio Tempo Contra Tempo, Ou Os Tempos Hipermodernos, de Gilles Lipovetsky.

Para Gilles Lipovetsky, a pós-modernidade deu espaço para o estado cultural que ele chama de hipermodernidade. Neste novo estado, neste novo espírito de época, se posso me utilizar deste termo, a ordem social e econômica, juntamente com a cultura, são pautados em uma senso de consumo em massa que substitui o referencial na produção em massa e em uma hegemonia daquilo que o autor nomeia como “sociedade-moda”, que toma o lugar da sociedade rigorística disciplinar.

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Moda como instituição social

Lipovetsky não trata a moda somente como um produto da sociedade de consumo em massa, mas como uma instituição social. A moda é parte da definição da sociedade, é parte de seu funcionamento. A sociedade embasada na moda é a sociedade neofílica, tarada pelo novo, em constante inovação e que tem como pressuposto essa incessante inovação. A moda é aquilo que seduz para o consumo e que faz do consumo uma parte fundamental da constituição da identidade do sujeito hipermoderno.

Se as sociedades tradicionais eram pautadas numa repetição de um modelo do passado, de um modelo mais ou menos pedestalizado, a sociedade regida pelo sistema-moda é regida pela transformação rápida e desesperada – a regra passa a ser, ao invés da repetição de um modelo mais ou menos projetado, a repetição da transformação. A regra é a inovação. O modelo que se repete é não ter um modelo para se repetir.

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As lutas por uma liberdade como um fim em si, sem um projeto construído, como nas lutas contra a autoridade do fim da década de 60, trouxe à sociedade dos anos 70 a noção temporal de um eterno presente de liberdade irrestrita. De um consumo exorbitante e inconsequente, sempre resguardado pelas políticas de bem-estar social, entretanto, já nos anos 90, a emergência do modelo neoliberal e as crises do modelo de bem-estar social foram também parte de uma mudança mais drástica: o autor nega que o niilismo em torno da pós-modernidade, classificada como uma época do presente contínuo, fruto de um hedonismo consumista, seja estendido à hipermodernidade. Para Lipovetsky, a sociedade atual ainda tem sua visão do futuro, que é expressa na insegurança.

O Futuro

A insegurança em relação ao futuro e a proliferação de estudos, pesquisas e desenvolvimentos de medicamentos e terapias são uma prova da preocupação que a sociedade hipermoderna tem com o futuro.

Não se trata de uma sociedade que vive um eterno presente, mas sim de uma sociedade que tem medo do que pode ocorrer no futuro, e por isso formula práticas para a sobrevivência das próximas gerações. Entretanto, essas práticas são formuladas para serem exercidas individualmente, já que as instituições coletivas e as imposições estatais perderam seu lugar. Os indivíduos vivem cada vez mais embebidos de tensões e preocupações com o futuro: uma característica da hipermodernidade é sua cronorreflexividade. Se observa o presente e se pensa no futuro, ou seja, o que está por vir é uma preocupação cotidiana e constitutiva.

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Ao mesmo tempo, pensar no futuro não garante que haja tempo para práticas em nome de sua salvação. O hiperindivíduo não tem tempo, é sem-tempo por constituição. É uma alguém que não tem tempo nenhum devido suas atividades de trabalho sempre recheadas de pressão e, ao mesmo tempo, tem todo tempo do mundo caso seja um desempregado crônico. Só não tem condição de viver este tempo. Não tendo condição de viver este tempo, automaticamente fica fora do espaço de possibilidade para fazer do tempo, algo útil.

Diferentemente dos projetos da modernidade, que tinham no futuro a promessa de sua realização e exigiam dos indivíduos uma participação ativa ou uma subordinação quieta, a pós-modernidade e agora, a hipermodernidade, completam um movimento de compressão espaço-temporal. O que se opera é a diminuição dos espaços e a vigência do aqui-agora, mas não um aqui-agora que elimina a preocupação com o futuro imediato. Um aqui-agora reflexivo.

A legitimação das práticas na sociedade hipermoderna é a eficiência, que não precisa de justificativa político-ideológica. Talvez aqui seja possível estabelecer uma relação entre a eficiência enquanto legitimidade hipermoderna e a noção de sociedade pós-política, puramente administrativa, sem grandes projetos sociais, sem a tomada de posição política clara e radical.

Em relação à noção de tempo mais básica, o que a hipermodernidade trás de novo é a ultraflexibilidade: que lança novas temporalidades no mundo social. Não é mais possível definir somente uma temporalidade – o que se cria são temporalidade tão diversas quanto as pessoas incluídas no estado hipermoderno de nossa cultura. O que causa o conflito de tempo e a necessidade de adequação da vida como um todo à temporalidade praticada.

O Prazer Hedonístico

Apesar da pós-modernidade ter sido classificada como uma “tirania do prazer”, ou uma felicidade consumista ilusória, Lipovetsky enxerga também o contrário: as relações humanas são cada vez mais valorizadas. O tempo para o amor, para a amizade, ainda são desejados e apreciados, o que leva o autor a entender que não há uma imposição da ordem sobre os indivíduos. Existe uma certa autonomia perante às estruturas.

É nessa autonomia que se funda a hiperindividualidade. Enquanto as posições sociais eram determinadas pelo local de nascimento, pela cultura ou pela família nos tempos modernos e anteriores, a hipermodernidade trouxe a possibilidade de se escolher a filiação individual, ou de re-escolher um cultura para adentrar e assim infinitamente. Um exemplo desta flexibilidade é a noção de religião individual. O que explica essa mobilidade do indivíduo para qualquer filiação cultural ou ideológica é a diminuição do poder centralizado e das ações coletivas, juntamente com o aumento do poder de decisão individual.

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Mas o culto hedonístico do consumo e da inovação é uma das causas da degradação da memória coletiva, da história e da noção de passado. Ao mesmo tempo, o que a hipermodernidade conseguiu realizar ao “permitir” a existência de qualquer crença e de todas as crenças juntas, assim como de qualquer forma de vida e de todas as formas de vida, foi a revisitação do passado.

O passado é levado para o presente, mas enquanto visita de passagem. O passado é visto em museus e feriados, é visto nas reedições de livros históricos e de autores clássicos, nos produtos vintage e com selo de autenticidade, nas ruas das cidades e nas praças que levam seus nomes. O passado é muito mais um momento do consumo e da preservação da imagem (mesmo que falsa) de uma sociedade plural do que uma realidade refletida na hipermodernidade.

Hiperreconhecimento

A possibilidade de deslocamento em relação ao destino social em que os indivíduos estavam fadados por conta de sua origem social, cor, pátria ou classe, só é possível com a abertura de um reconhecimento devido da alteridade.

O hiperreconhecimento é o imperativo em reconhecer o outro enquanto um ser diferente. É a necessidade de se viver em uma mundo onde todos são iguais pela diferença e o reconhecimento desta diferença enquanto algo constitutivo e de direito. É junto com a possibilidade de ser diferente que a busca pelo passado como um baú onde estão atributos que podem servir para moldar a identidade passa a ser frequente.

Não há como negar que o reconhecimento da alteridade da maneira como praticamos e como temos enquanto ideal é fruto da sociedade de bem-estar social individualista, vai dizer o autor, e não há como deixar esta característica de lado ao construir uma nova sociedade. As novas identidades são construídas com base de inúmeras variáveis e com inúmeros referenciais, mas sempre são embasadas pela noção da diferença. E as diferenças precisam sempre ser reconhecidas.

Conclusões

Acredito que o próprio autor possa concluir por mim,

Ninguém negará que o mundo, do jeito que anda, provoca mais inquietação do que otimismo desenfreado: alarga-se o abismo entre Primeiro e Terceiro Mundo; aumentam as desigualdades sociais; as consciências ficam obcecadas pela insegurança de várias naturezas; o mercado globalizado diminui o poder que as democracias têm de regerem a si mesmas. Mas será que isso nos autoriza a diagnosticar um processo de rebarbarização do mundo, no qual a democracia não é mais que uma “pseudodemocracia” e um “espetáculo cerimonial”? Chegar a tal conclusão seria subestimar o poder de autocrítica e de autocorreção que continua a existir no universo democrático liberal. A era presentista está tudo menos fechada, encerrada em si mesma, dedicada a um niilismo exponencial. Dado que a depreciação dos alores supremos não é sem limites, o futuro continua em aberto. A hipermodernidade democrática e mercantil ainda não deu seu canto do cisne – ela está apenas no começo de sua aventura histórica.

8 Comentários

  1. Dá a entender que por mais que seja “mais inquietação do que otimismo desenfreado”… há uma Esperança de nós (sociedade), sermos “indivíduos únicos” (com uma identidade própria), e mesmo nesse presente de incessante inovação, “o futuro continua em aberto”.

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