O retorno do determinismo biológico no neoliberalismo

Se tudo pode ser explicado geneticamente, então por que lutar por sua causa? As hierarquias ganham a força da ciência e a ciência reitera sua força de ser uma verdade absoluta através do determinismo biológico.

Todas as questões individuais e coletivas podem ser explicadas pelos genes que povoam nosso organismo biológico. Pelo menos é isso que a nova leva de estudos genéticos está colocando novamente em pauta. O determinismo genético, parente distante do darwinismo, armado com pesquisas estatísticas, bancos de dados do genoma humano, técnicas experimentais e um grupo pequeno, mas insistente de cientistas filiados, está sendo usado como uma arma para explicar tudo aquilo que somos e tudo aquilo que fazemos. As informações são do Jacobin Magazine.

As relações políticas entre genética e determinismo biológico não podem ser negadas, segundo a matéria do J.M., já que o próprio Cold Spring Harbor Laboratory (um dos institutos mais modernos de genética) iniciou suas atividades como uma laboratório eugênico, que tinha a responsabilidade de “promover lobby para a legislação eugênica, de modo que restrinja a imigração e esterilize os ‘defeituosos’; educar o povo com base na saúde eugênica e disseminar amplamente ideias eugênicas”.

A onda atual de determinismo biológico carrega consigo este passado, mas tem uma força diferente, já que vivemos na era do genoma, em que cientistas podem observar diferenças mínimas entre um indivíduo e outro por meio das análises da cadeia biológica. Aliado a isso, a J.M. também observa que vivemos em uma nova era em que o poder e a riqueza estão concentrados em poucas mãos, que precisam de uma boa justificativa para utilizados da maneira que querem, sendo que uma justificativa impossível de debate seria aquela baseada em investigações científicas biológicas.

As relações entre ciência e poder não podem ser negadas, ao mesmo tempo deve-se ter consciência de que a ciência, enquanto um saber especializado, com suas próprias regras e com seu próprio corpo de legisladores, não pode sobreviver fora das relações de poder que a constituem e que constituem a sociedade em que vivemos. Em outras palavras, ciência não pode ser “pura”, ela sempre servirá à algum tipo de interesse.

O preço da ciência

Atualmente, custa por volta de $5000 (por volta de R$10000) para sequenciar um genoma, ou seja, para identificar seis bilhões de As, Cs, Ts e Gs, mapeando todo o DNA de um dado indivíduo humano. Logo menos este custo cairá drasticamente – este é um momento revolucionário, segundo cientistas, pois será possível desenvolver medicamentos personalizados para cada mal, assim como será possível prever todo tipo de predisposição genética para diferentes doenças.

Além disso, reconhecer os detalhes da cadeia genética também possibilita verificar como os diferentes vírus que convivemos se desenvolvem e conhecer quais mutações genéticas propiciam o crescimento do câncer em organismo saudáveis. A observação da identidade celular seria um jeito novo e completo de saber tudo sobre um indivíduo, do ponto de vista biológico.

São esses estudos que – de forma impactante – demonstraram que a diferença entre um indivíduo e outro (do ponto de vista biológico) não passa de 0,01%, segundo matéria da Jacobin Magazine. É este valor minúsculo que tem como resultado as diferenças de cor de pele, dos olhos, altura, quantidade de pelos e etc e etc.

Ao contrário dos postulados mendelianos, a genética moderna sabe e toma com grande valor as complexas interações entre o meio ambiente e os múltiplos genes. Ainda em contraste com a genética clássica, em que a facilidade estava em encontrar um gene específico para uma dada característica fenotípica específica (já que, para a maioria das características, não há uma linha simples que ligue o gene com o fenótipo), a genética moderna pretende interpretar toda a complexidade que pode ser extraída de uma sequência genética.

Para realizar pequisas de sequência genética, os estudos organizados sobre o genoma (os genome-wide association studies – GWAS) utilizam dois conceitos-chave: variações fenotípicas e genéticas. As variações fenotípicas seriam aquelas encontradas nas características, nas feições e nas marcas de cada indivíduo (como a variação de peso e de cor entre homens estado-unidenses, por exemplo). Para realizar análises que consigam ligar as variações genéticas com variações fenotípicas, é necessário delimitar uma população específica, pois só assim os modelos estatísticos poderão ter alguma validade.

O objetivo dos GWAS é conseguir fazer a ligação entre a variação fenotípica com alguma variação genética e a probabilidade disso vir a ser determinante é o que chamam de “hereditariedade”. A hereditariedade é resultados de uma estudo das influências do meio e do próprio organismo biológico em si, sendo que, caso dê resultado 0, o meio ambiente é o único fator que valida uma característica fenotípica, mas caso o valor das análise seja 1, a total determinação é genética.

Entretanto, a própria noção de “hereditariedade” é deveras confusa. A relação entre meio e gene depende da consideração dos organismos biológicos não só como objetos do meio, mas também como sujeitos que também permite a ação exterior ou não. A matéria do J.M. dá como exemplo a Guerra Civil da Guatemala, em que os Estados Unidos mandaram grupos paramilitares para devastar a população rural e indígena do país, o que teve como resultado o espalhamento da desnutrição entre os sobreviventes.

“Comparando a altura de crianças de seis à 12 anos, de Maias da Guatemala com Maias Americanos, pesquisadores observaram que Maias americanos eram 10,24 centímetros maiores que os da Guatemala, devido à desnutrição e a falta de acesso à assistência médica”, revela a matéria, que conclui, “para comparar, o gene conhecido como maior influência na diferença de altura, o gene do crescimento GDF5, é associado com mudanças de altura na faixa de 0,3 centímetros à 0,5 e unicamente para indivíduos com descendência europeia”.

Mendel. Imagem: Brasil Escola
Mendel. Imagem: Brasil Escola

Os estudos sobre o QI, segundo a J.M., também são postos em questão, devido às novas pesquisas que demonstram haver influência majoritariamente ambiental que genética para as variações de QI individuais.

Estudos sociais e determinismo biológico

Mesmo sem uma validade concreta, os estudos genéticos também foram aplicados em estudos sociais, o que resultou na pesquisa “A Arquitetura Genética da Preferência Econômica e Política”. Sem muita surpresa, os autores concluíram que as bases genéticas não podem explicar muito mais do que uma “parte pequena das variações”. Entretanto, ao terminar suas divagações, puderam afirmar que “estes resultados nos dão uma cautelosa mensagem para se, como e quando e a genética molecular poderá contribuir para e potencialmente transformar a pesquisa em ciências sociais. Nós propusemos algumas respostas construtivas para os desafios postos pelo pequeno poder de explicação da SNP individual [pesquisa de cadeia genética individual]”.

Ou seja, como é difícil demais explicar a variação de peso, algo mensurável facilmente, então vamos nos esforçar para conseguirmos medir a preferência política, algo não-mensurável, variável no tempo, e tão difícil de quantificar como a violência e a inteligência. O absurdo é claro, mas é um absurdo que persiste.

Também, relata a matéria do J.M., não é difícil ver como o método é falho: pega-se uma dada população, examina-se alguma variação fenotípica e, depois, corre-se atrás das variações genéticas. Quando perceber que há alguma variação genética padronizada, tome-a como a resposta para a variação fenotípica. Simplesmente parta do pressuposto que quanto mais pesquisa estatística, mais próximo da verdade estará. Depois generalize cientificamente os dados encontrados e dê à característica descoberta, uma relevância para a explicação universal do comportamento humano.

Os estudos biológicos parecem plausíveis exatamente por suas supostas técnicas científicas e seus modos de enunciação estatísticos. Não tem como discordar que nosso organismo biológico está completamente dependente de nossa cadeia genética. Isso abre espaço para tentativas de explicar geneticamente o por quê de uma pessoa comer um pacote inteiro de batatas.

A face mortal

Vivemos em uma sociedade capitalista neoliberal que, cada vez mais, deixa exposta as contradições do capitalismo com a democracia. As grandes empresas multinacionais dominam cada vez mais a política global, pressionando e determinando como cada país deverá se portar perante seus objetivos.

Monsanto. Imagem: Portugal Mundial

O apelo ao determinismo biológico funciona como uma estratégia de, com uma técnica científica, naturalizar as desigualdades e os problemas produzidos pela nossa sociedade e pelos impulsos que o próprio neoliberalismo em uma sociedade de consumo provoca. Por exemplo, quando se conclui que a Diabetes tipo II é um problema genético, o que se deixa de lado é a observação de que a obesidade teve um crescimento endêmico e que isso não aconteceu unicamente por que as pessoas comem mais, mas é fruto de causas mais profundas, como a noção do consumo desregrado promovida pelo discurso capitalista pós-moderno, como a necessidade em se manter à todo vapor o agronegócio, como o fato de que diferentes classes possuem diferentes qualidades em sua alimentação e que a alimentação em geral não é feita para o corpo, mas para o mercado.

Da mesma forma, quando se encontra o gene da “dominação”, não é mais necessário entender que o patriarcado e que o machismo são produtos sociais e históricos, não é mais necessário lutar e pode-se, acanhadamente, aceitar as proposição ditas científicas do discurso das ciências genéticas. Quando as explicações genéticas explicam as hierarquias, nenhuma forma de oposição é legítima.

Além disso, a indústria farmacêutica tem grande interesse na determinação de doenças. Não só na determinação, mas nas descobertas de novas doenças, afinal, a descoberta de novas doenças, a formulação de novos diagnósticos é o princípio básico para a venda de novos remédios (talvez até aqueles ditos mais acima como “personalizados”). Somente a indústria farmacêutica nacional faturou R$ 57 milhões em 2013, com crescimento de 16% em relação a 2012. A previsão para 2014 é de uma alta de 12% à 14%.

Ainda no Brasil, a Monsanto têm crescimentos que beiram os 40% anuais, e necessita de um mercado consumidor, assim como qualquer empresa capitalista. Como combater todas as ações que funcionam como resistência ao consumo (ações que promovem a saúde corporal, a vida sem consumo desregrado, a espiritualidade pura, a negação do capital e etc)? Fazendo com que os problemas que elas denunciam sejam causados unicamente pela determinação genética do organismo biológico.

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