O percurso da performatividade

O gênero não é simplesmente construído, mas é performático. Butler cria seu conceito baseado na interpretação derridiana do termo e acrescenta mais um conceito central na teoria feminista.

Texto de Joana Plaza Pinto, publicado originalmente na Revista Cult.

O gênero é performativo? A sexualidade é performativa? A performatividade produz o corpo? Efeitos performativos podem ser ou tornarem-se efeitos materiais?

A atriz Julie Andrews em cena de
A atriz Julie Andrews em cena de “Victor ou Victória”, longa de 1982

Arrisco, aqui, a traçar um percurso dessa palavra em sua obra, dentro dos limites que o espaço deste artigo e meu conhecimento permitem. O risco é inerente ao se contar uma estória, ao se produzir significado: a cada repetição, há alteração. Essa ideia derridiana, no pano de fundo do percurso de uma palavra cunhada pelo inglês J. L. Austin, é uma margem contagiante das ideias da pensadora sobre o performativo.

Em sua veia intelectual “promíscua”, como a própria autora diz, a performatividade é um conceito em desenvolvimento, mutante de sua própria performance teórica, política e editorial, uma instabilidade legada obliquamente de Austin e de sua obra “paciente, aberta, aporética, em constante transformação”, como afirmado por Jacques Derrida. De onde vem, por qual percurso e qual a importância dessa palavra para a obra dessa fundamental pensadora feminista do século 21? Quando se trata de entender a obra de Judith Butler, a palavra performatividade é parada obrigatória. Do livro que a tornou famosa, Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade, de 1990, às obras mais recentes, como “Frames of War”, de 2010, a palavra percorre as discussões e as posições da autora.

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Do ato performativo à performatividade

O contexto estadunidense de recepção da obra de J. L. Austin é a paisagem por onde vagueia a performatividade de Butler, pelos tráficos de interpretação e política editorial a que foram submetidas as ideias austinianas nos Estados Unidos.

Em 1955, o filósofo inglês J. L. Austin ofereceu suas famosas William James Lectures na Universidade de Harvard. Essas conferências, publicadas em 1962, um ano depois de sua morte, marcaram a história da filosofia contemporânea com seu termo mais conhecido, o performativo. Em confronto com os fetiches verdadeiro-falso e valor-fato da tradição filosófica, Austin propõe uma discussão sobre os enunciados que não são nem verdadeiros nem falsos, não descrevem nem servem para informar, mas sim fazem algo. Ele nomeia tal tipo de enunciado de performative, derivando esse nome do verbo “perform”, um verbo usual em inglês para ação. Numa intrincada argumentação, Austin defronta o que tinha sido um relativo consenso da filosofia da linguagem até então: usamos a linguagem para dizer o verdadeiro ou o falso. Sua posição pode ser resumida na ideia sintetizada pelo título em inglês da sua obra mais popular, “How to Do Things with Words” (livro traduzido para o português, pela Editora Artes Médicas, em 1990: Quando dizer é fazer).

É com uma preocupação da mesma natureza que Butler inicia seu uso da palavra “performativo”: como se faz (e se desfaz) gênero com palavras? Num artigo de 1988, intitulado “Performative Acts and Gender Constitution: An Essay in Phenomenology and Feminist Theory”, ela usa a noção de ato performativo para discutir como o gênero é constituído por atos de repetição estilizada.

Aqui, Butler menciona apenas John Searle, o intérprete oficial de Austin nos Estados Unidos, para rapidamente descartar sua interpretação do performativo, porque esta estaria preocupada com os compromissos, entre falantes, feitos através da linguagem. A autora prefere discutir uma teoria da ação, de influência fenomenológica, que seja radical em sua visão da linguagem, que torna o próprio sujeito objeto de seu fazer. É assim que a autora cita o conhecido epíteto de Simone de Beauvoir – “Não se nasce mulher, torna-se uma” – para fundamentar sua posição de que gênero é uma realização performativa compelida pela sanção social e o tabu, e é nesta característica performativa que reside a sua possibilidade de contestação.

Judith Butler. Foto: European Graduate School
Judith Butler. Foto: European Graduate School

Em “Problemas de Gênero”, vemos essa ideia desenvolvida e começamos a entender o descarte da interpretação searleana do performativo. Nessa obra, a única inteiramente traduzida no Brasil, Butler propõe o que ela mesma qualifica como uma reformulação feminista do pós-estruturalismo e do próprio feminismo. Entre tantas autoras e autores conhecidos como pós-estruturalistas na cena estadunidense, o opositor preferencial de Searle na disputa pela interpretação de Austin: Jacques Derrida. O filósofo francês participou de uma querela acadêmica internacional com Searle a respeito da obra de Austin. O debate entre eles, entre 1977 e 1990, introduziu nessa cena estadunidense alguns conceitos centrais para se entender a performatividade em Judith Butler: iterabilidade e citacionalidade.

A questão entre Searle e Derrida pode ser sintetizada (a custo da profundidade necessária para discuti-la) como uma diferença de projeto filosófico: enquanto Searle procura dar continuidade à obra de Austin nos moldes do valor de verdade proposicional (aquele mesmo que Austin ironiza sem hesitação em seus textos), Derrida procura enfatizar a originalidade antilogicista do texto de Austin. Para isso, o pensador francês oferece dois conceitos complementares: a iterabilidade e a citacionalidade. Derivada do sânscrito itara, “outro”, a iterabilidade é a propriedade do signo de ser sempre outro na sua mesmidade, a repetição na alteração; a citacionalidade é a propriedade do signo de ser retirado de seu contexto “original” e deslocado para outro, produzindo, por isso mesmo, significado. Derrida argumenta que tais propriedades não são eventuais ou acidentais, mas constitutivas dos signos, portanto, dos atos de fala, e, delas, os atos retiram sua força.

Butler aposta nos dois conceitos derridianos para expor gênero performativo como atos repetidos, que são, por isso mesmo, alterações sem origem, citações ou paródias, como ela mesma usa em “Problemas de Gênero”. Nessa obra, cunha a expressão “performatividade do gênero”, procurando defender o ato performativo como propriedade da constituição do gênero e, mais tarde, do corpo e das normas em geral, sua repetição como forma de alteração, sua citação como deslocamentos de contextos nunca originais, a constituição do corpo como sua própria citação.

Como ela afirma muitos anos mais tarde: “A ideia de iterabilidade é crucial para entender porque as normas não agem de formas determinísticas. E pode ser também a razão porque performatividade é finalmente um termo mais útil do que ‘construção’”(Frames of War).

Em 1993, podemos ver Austin citado pela primeira vez na obra de Butler. “Bodies that Matter”, sua importante discussão feminista sobre o conceito de materialidade, responde as críticas ao suposto voluntarismo presente na ideia de paródia em “Problemas de Gênero”, mas a performatividade é ainda desenvolvida com ajuda de Derrida, e Austin continua associado ao seu intérprete estadunidense oficial, Searle, como parceiros de ideias (ver nota 7 da introdução de Bodies that Matter). Com uma leitura feminista da psicanálise, Butler procura enfatizar as sedimentações e inserir a temporalidade como tema para a compreensão do funcionamento dos atos de fala, além de levar adiante a crítica derridiana à intenção como origem da força do ato de fala. Para a autora, a produção do sujeito como origem dos efeitos discursivos é uma consequência da citacionalidade dissimulada.

Perguntas a Austin e a vulnerabilidade à linguagem

De anti-Searle a pró-Derrida, é só em 1997 que podemos ler o primeiro diálogo direto de Butler com as ideias de Austin. “Excitable Speech: a Politics of Performative” é a obra seminal para se entender a performatividade em Butler. Nela, a autora discute diretamente com as ideias de Austin e expande seus argumentos, fazendo eco às inquietações do filósofo inglês. Assim como em outro livro do mesmo ano, “The Psychic Life of Power”, Butler está preocupada com os modos de subjetivação.

Um dos grandes ganhos desse diálogo direto é sua argumentação sobre a vulnerabilidade à linguagem como fundamental à subjetivação. Butler expande reflexões sobre o performativo de Austin, especialmente sobre os atos de fala falhos ou fracassados e as possibilidades de ofensa da linguagem, com argumentos críticos emprestados da psicanálise para debater a subjetivação do corpo pelos atos de fala.

Para Butler, o corpo é vulnerável à linguagem, no sentido de que a linguagem, sendo performativa, opera, faz, e, sendo assim, o corpo é feito e efeito, sustentado e ameaçado pela linguagem. Os atos de fala operam não somente a produção reguladora e produtiva sobre aquilo que nomeiam, mas também constituem seus contextos possíveis – a sua historicidade condensada.

Jacques Derrida.
Jacques Derrida. Foto: Solid Gold Creativity

O ato de fala, na sua eficácia performativa, obriga – violenta e arbitrariamente – o corpo a espaços de inteligibilidade, de regulação e de legitimação. A eficácia violenta do ato de fala é um duplo: retirando sua força ilocucionária do ritual que o compõe, o ato de fala mantém, para além do ritual, o traço da força que ajudou a produzir.

Há uma ambivalência na maneira como o ato de fala opera o corpo: de um lado, o ato de fala violenta-o, apagando sua performatividade, seu caráter produzido e produtivo, obrigando-o à fixidez e, como efeito, à co-naturalidade, ou seja, a imposição estrutural da linguagem pode dar à aparência de inevitável natureza ou de determinismo cultural uma essência a se fazer presente.

O corpo, efeito do ato de fala e do seu ritual, encontra um lugar epistemológico (através do ato de fala, o corpo torna-se inteligível), um lugar ontológico (o corpo torna-se regulável) e um lugar político (o corpo torna-se passível de legitimação e normatização). Os atos de fala limitam os contornos dos corpos, suas articulações possíveis, suas ações possíveis. A imposição arbitrária num ritual iterável tem como efeito a fixidez e a inevitabilidade.

No entanto, explorando a falha constitutiva do ato, Butler argumenta que o ato de fala evidencia a performatividade do corpo ao produzir espaços de articulação, de deslizamento, e pontos de descontinuidade. A indecidibilidade linguística cria novas inteligibilidades, regulações, legitimações e normatizações para os corpos que performa.

A violência coercitiva opera com a violência produtiva e embaraça a distinção, marcando um aspecto a se considerar na compreensão da performatividade: a ambiguidade da ação linguística que produz o corpo.

Para Butler, pensar a vulnerabilidade dos corpos à linguagem significa pensar a arbitrariedade de ambos, o corpo e a língua como marcas inevitavelmente ambíguas – a linguagem que opera o corpo a devir – contra o fetichismo linguístico e a visão voluntarista da performatividade da linguagem: “Corpos não são habitados como espaços vazios. Eles estão, em sua espacialidade, também em andamento no tempo: agindo, alterando a forma, alterando a significação – dependendo das suas interações – e a rede de relações visuais, discursivas e táteis que se tornam parte da sua historicidade, de seu passado, presente e futuro constitutivos” (Undoing gender, 2004).

O percurso de Butler do gênero performativo à performatividade do gênero e à vulnerabilidade à linguagem é, ao mesmo tempo, debitado da tradição de interpretação de Austin e, portanto, do performativo nos Estados Unidos, e singularmente incomum e instigante. Apropriando-se descompromissadamente do performativo, em seu primeiro artigo sobre o tema em 1988, Butler alinha-se à interpretação derridiana do performativo, acrescentando à sua argumentação a iterabilidade e a citacionalidade. Ao mesmo tempo, a autora segue seu percurso com a autonomia crítica de quem contesta as formas tradicionais de filiação (seja o parentesco seja a teoria), fazendo suas perguntas a Austin para dar corpo à sua própria noção de performatividade e de vulnerabilidade à linguagem.

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