O cinismo precisa ser visto com outros olhos. É o que a filósofa Marcia Tiburi nos informa em sua resenha para o livro “Michel Foucault e a verdade cínica”, de Ernani Chaves, também filósofo e professor da UFPA, lançado em 2013. Segundo ela, o livro retorna a uma questão delicada, relacionada com a estética de si, com a estilização da existência, ou seja, com viver a filosofia que se fala. As informações são da revista Cult.
Tudo se inicia pela distinção de dois cínicos propostos pela filosofa, após a leitura de Chaves: o cínico maior e o cínico menor. O que é um cínico? Segundo o dicionário Priberam,
cí·ni·co
adjetivo
- 1. Pertencente à seita filosófica que desprezava as conveniências sociais.
- 2. [Figurado] Impudente; obsceno; impudico.
- 3. [Medicina] Próprio de cachorro.
substantivo masculino
- 4. Pessoa dissoluta, sem pudor, desavergonhado.
O cínico menor, aquele do uso ordinário da linguagem, seria a pessoa “dissoluta, sem pudor e desavergonhada”. É o sujeito que conta a mentira e se apega a ela como uma verdade, é representado pelos inúmeros malufs que roubam mas fazem e pelo debochado que, por ter uma posição privilegiada, usa-a ao seu favor, mesmo sendo contra as regras.
Todas essas classificações são extremamente negativas, de um ponto de vista moral, mas se relacionam vagamente com o cinismo maior, dos filósofos gregos e retomado na história moderna em Nietzsche. Segundo Tiburi, o cínico maior é aquele que diz a verdade doa a quem doer – que, durante a história ocidental, foi sendo substituído pelo cínico menor, que “sabe o preço de tudo mas não sabe o valor de nada”.
O conceito de parrêsia entra em jogo a partir do curso de 1981 chamado “A Coragem da Verdade” que Foucault apresentou na Sorbonne. Neste curso, Foucault ficou interessado na maneira como os cínicos levavam sua vida e sua filosofia. A Filosofia da verdade livre de todas as barreiras era fruto de um cuidado de si que envolvia o abandono de toda vida material (no sentido vulgar do termo): os cínicos eram aqueles que não tinham casa, roupas, eram homens de pés sujos e descalços, sem família, que optavam pela mendicância na vida pobre e ficavam nas encostas de templos e nas esquinas das ruas, abordando as pessoas e lhes dizendo a verdade.
Dizer “a verdade”, neste sentido, tem a ver com ligar o que é dito com quem diz, ou seja, sem separar o que é dito do sujeito. O “parrhesiastes” é aquele que diz tudo que lhe vem a mente, mas ele só pode afirmar com certeza que faz isso porque não tem “rabo preso” com nada: ele não está sujeito à vida material, não precisa honrar uma família, um senhor ou um ofício. Se trata de viver escandalosamente. “Em um mundo que elogia o falso e a aparência falsa, a verdade sempre é um escândalo”, diz a filósofa.
Segundo Foucault, o cinismo atravessa a história moderna sob três vias: 1) a do cuidado de si (de viver a vida como escândalo e se desapegar de tudo), 2) a do cinismo em relação a verdade, o “escândalo da verdade” e 3) na própria arte, como no privilégio recebido pela comédia nas artes cínicas da antiguidade, ou como os temas “festa” e “carnaval”, em que os cínicos da Europa Medieval mostravam a verdade escandalosamente. É normal, então, que o cinismo maior, nas artes, seja tão ignorado em contraste com o cinismo menor da indústria cultural – já que esta produz e reproduz as verdades que se sujeitam ao poder.
A questão vai mais além quando é relacionada com a verdade contada pelos cínicos. Os cínicos levavam a vida como escândalo exatamente porque suas verdades eram inimigas do poder (a força das verdades legitimadas). Mas como os cínicos poderiam dizer a “verdade verdadeira”? Sendo na prática aquilo que dizem, sendo a verdade.
Talvez a inversão do significado de ser cínico (e a inversão de valor do cinismo) possam ter uma explicação na ameaça que esta filosofia representava para todo e qualquer saber dominante.
Referências
Michel Foucault e a verdade cínica de Ernani Chaves, Blog da Marcio Tiburi, Revista Cult. Acessado em 23-06-2014.
Instagram: @poressechaopradormir
Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudo do biopoder nos textos foucaultianos.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
agora sei que sempre fui cínica, mas agora com um toque de estratégia .
.. 😉 😉
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