Por um novo conceito de cultura – Zygmunt Bauman

Ao contrário das concepções duais do ser humano, o homo duplex, que tem como expressão mais bem feita a teoria de Durkheim, em que o ser humano é uma guerra entre suas determinações biológicas, fruto da evolução, e das constrições sociais a que está submetido, para Bauman, o ser humano precisa ser visto como aquele que, em sua própria vida e em sua própria constituição, move forças de auto afirmação, auto constituição e auto construção que não revelam uma oposição entre natureza e cultura, entre gene e sociedade, mas sim mostram a completa necessidade de um termo por outro.

O Ocidente passa por transformações que colocam em xeque o próprio conceito de cultura como é postulado pelas ciências humanas, sendo um sistema que visa estabelecer a ordem em meio ao caos que é a natureza. Buscando resolver este problema, Zygmunt Bauman propõe uma nova noção de cultura em O Mal Estar na Pós-Modernidade, relacionando a teoria de Levi-Strauss com uma noção de indivíduo que tenta ultrapassar a dicotomia entre cultura e natureza.

As mudanças que podem ser entendidas como uma transformação da modernidade para uma dita pós-modernidade, modernidade líquida, já são conhecidas e discutidas. Acontecem há anos e Weber já havia previsto um futuro frio e cinza para o Ocidente com sua tese sobre o desencantamento do mundo, com o paulatino crescimento da autoridade racional-burocrática que tende a dificultar a manutenção de qualquer misticismo. Porém, é necessário pontuar que este diagnóstico e previsão não é validado pela realidade contemporânea, a partir do crescimento repentino da lógica religiosa aliada ao conservadorismo em toda Europa e nos Estados Unidos (e até mesmo no Brasil, com a ascensão da bancada evangélica).


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A ascensão religiosa ainda não foi capaz de diminuir o protagonismo da autoridade racional-burocrática, pelo contrário, ambas andam lado-a-lado, junto com tantas outras lógicas que formam a cultura ocidental. Entretanto, para Bauman é necessário começar entender que a cultura vista como algo único e em progresso (uma Cultura com “C” maiúsculo, portanto, uma noção hierárquica, que não comporta a existência de uma lógica religiosa ao lado de uma lógica científica) precisa ser deixada de lado em proveito do conceito diferencial de cultura, ou seja, aquele que a concebe não enquanto produto criado para a satisfação de necessidades humanas, mas que entende que as “necessidades humanas semelhantes devem ser satisfeitas de modo diferente, não sendo um [modo] forçosamente melhor do que os outros”. Cada cultura seria, portanto, “produto da escolha arbitrária entre muitas possibilidades” em uma sociedade dada.

Porém, apesar do conceito diferencial ter ganhado lugar nas ciências humanas, algumas características da noção hierárquica ainda sobrevivem sub-repticiamente:

  • Cultura como uma entidade ou processo estabelecedor da ordem;
  • Portanto, com normas coerentes e não-contraditórias. Tudo que é contraditório é tido, então, como anormal e precisa ser corrigido;
  • Sendo a cultura um sistema coerente de prescrições e proscrições, somente artefatos com alguma funcionalidade podem pertencer a ela. Tudo aquilo que não tem funcionalidade é tido como um resíduo do estágio anterior da cultura;
  • O sistema possui uma estrutura, ou seja, um conjunto irredutível de relações que aparece em todas as culturas, sendo a característica universal da cultura que é aplicado particularmente: “deve haver um ‘sistema de valores centrais’ no topo do sistema cultural” e todo o restante é somente sua aplicação.

“É assim que tendemos a pensar a cultura até hoje: como um dispositivo antialeatoriedade, um esforço para estabelecer e manter uma ordem, como numa guerra contínua contra a aleatoriedade e esse caos que a aleatoriedade ocasiona”, explica Bauman.

Se apropriando do termo de Thomas Kuhn, Bauman diz que o discurso cultural atual tem os sintomas da “crise de paradigma”, “uma situação em que os conceitos que organizam as nossas percepções impelem-nos a tratar as ocorrências mais típicas e frequentes como exceções, tornando a ‘norma’ uma noção cada vez mais nebulosa”. Mas de onde surgiu essa crise de paradigma? Da mudança drástica dos fenômenos culturais? Da mudança da nossa maneira de encarar e explorar o mundo, com novos interesses e novos objetivos? Ou do próprio colapso do poder ordenador cognitivo, da referência prática que deveria nortear nossa forma de ver o mundo?

Talvez esses três motivos sejam importantes para entender a crise paradigmática da cultura, entretanto, a tentativa de reformulá-la passa por Levi-Strauss. O autor estruturalista postula que:

  1. “Não existe ‘estrutura’ global da cultura ‘como um todo’ (nem da ‘sociedade como um todo’). As culturas, como as sociedades, não são “totalidades”. Em vez disso, existem processos de estruturação contínuos e perpétuos em diversas áreas e dimensões da prática humana”. A cultura não provê um modo de viver artificialmente produzido, pelo contrário, sua contribuição à natureza é em seu “incessante impulso para diferenciar, separar, dividir, classificar”.
  2. “A estrutura que surge das práticas acima […] não é uma entidade estacionária, mas um processo, algo assemelhado ao vento que não é senão o soprar, ou a um rio, que não é senão o fluir”. Ou seja, a cultura é um conjunto estruturado, mas nunca fixo. Essa estrutura (ao contrário da estrutura elementar do parentesco) não é universal ou fixa, mas é sujeita a processos de mudança perpétuos.
  3. A cultura não pode ser associada à “necessidade”. A prática cultural deve ser relatada “sem fazer referência a  ‘necessidades’ que a cultura deve supostamente satisfazer”. Necessidades só surgem com a emergência de novos usos, assim como o sentido de um sinal só surge com a emergência deste sinal. Necessidades e usos “passam a existir juntos e juntos deixam o palco”, explica o autor.

A cooperativa de consumo como metáfora para o novo conceito de cultura

Procurando uma metáfora para explicar o novo conceito de cultura que pretende lançar, Bauman utiliza o exemplo das cooperativas de consumo. As cooperativas clássicas, com seu tipo-ideal, são formas de distribuição de autoridade para os consumidores, que são os próprios administradores das cooperativas: isto é o autogoverno, a verdadeira emancipação na recusa de se sujeitar a cargos institucionalizados. É a possibilidade de se exercer influência de forma dispersa.

Acima de tudo, na cooperativa, recebe mais quem consome mais, “quanto mais o membro consome, maior é seu quinhão de riqueza comum da cooperativa. A distribuição e apropriação, não a produção, são portanto o eixo da atividade cooperativa”, explica Bauman. As cooperativas de consumo são, então, produtoras de consumidores. O agente e o autor são a mesma pessoa, pois todos podem exercer influência e todos devem se engajar em um consumo cada vez mais exigente (que só os beneficiaria). O que dá significado para a cultura é a ação cotidiana de seus “consumidores”, assim como na cooperativa. E assim ela vai se transformando continuamente.

Além disso, a neutralidade da cultura em relação às necessidades também serve para complementar essa metáfora. Primeiramente, é necessário classificar e disponibilizar simbolicamente para o uso, para depois estabelecer um determinado uso como uma necessidade, “a não instrumentalidade essencial, o caráter imotivado dos fenômenos culturais revela-se”.

Ao contrário das concepções duais do ser humano, o homo duplex, que tem como expressão mais bem feita a teoria de Durkheim, em que o ser humano é uma guerra entre suas determinações biológicas, fruto da evolução, e das constrições sociais a que está submetido, para Bauman, o ser humano precisa ser visto como aquele que, em sua própria vida e em sua própria constituição, move forças de auto afirmação, auto constituição e auto construção que não revelam uma oposição entre natureza e cultura, entre gene e sociedade, mas sim mostram a completa necessidade de um termo por outro.

A natureza, enquanto caos e liberdade, não pode ser tida como oposto da cultura, enquanto ordem e, portanto, prisão. A liberdade só existe enquanto um impulso de tentar ir além da própria necessidade de se fazer uma escolha e, ao mesmo tempo, a determinação só existe em atos de emancipação, de tentativas de liberdade plena, quando as regras imperiosas se mostram. Cultura e natureza não são forças heterogêneas, elas vêm do mesmo tronco e partem para ramificações diferentes. Elas se realizam em conjunto – são frutos da própria existência humana.

Cultura é prisão e liberdade, nunca estrutura fixa. É transformada a cada prática de seus agentes, já que nenhuma ação é igual a outra (mesmo que obedeça o mesmo modelo), e está sempre em processo de mudança.

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