O legado da copa para a esquerda brasileira

A esquerda precisa, urgentemente, parar de ostentar militância e começar a militar pra valer: dialogar com as periferias, com os grupos oprimidos, ouvir e ajudar na auto organização dessas pessoas, entender suas demandas concretas sem impor demanda alguma.

estádio da copa
Estádio da copa do mundo. Foto: Poloar

O legado que fica é apenas um, a crítica precisa se aprimorar. O evento da Copa, desde junho de 2013, vem sendo duramente criticado tanto por setores da esquerda quanto por setores da direita.

Há o que criticar? Certamente: vendemos o Brasil por 30 dias para uma multinacional especializada em realizar megaeventos futebolísticos. Por conta disso o a máquina estatal burguesa fez o que é de praxe: promoveu as desapropriações arbitrárias e repressivas, concedeu privilégios para a FIFA e seus patrocinadores, enfim quem é de esquerda sabe muito bem o que foi feito. Claro, devemos lembrar das trapalhadas homéricas da militância da esquerda governista que insistiu em exaltar o evento como se este fosse isento de qualquer problema.

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O mais intrigante, porém, foi a ingenuidade das críticas. Por exemplo: muito se falou das mortes de operários na construções dos estádios, de como isso fosse um “absurdo”. Foram oito mortes. Agora a pergunta que paira no ar é: ok, oito operários morreram em obras de estádios, qual bandeira deve ser levantada? O evento é ruim porque causou essas mortes ou “vamos discutir a segurança e a saúde do trabalhador em obras de construção civil”. Só em 2010 foram registrados mais de 56 mil acidentes em obras de construção civil. Esse número é altíssimo. Mas o que vimos a esquerda fazer?  Martirizar os oito operários da Copa, sem, em momento algum, tocar no assunto que as empreiteiras mais temem: a segurança e saúde do trabalhador em seu ambiente de trabalho.

Tal prática é bem comum. Falou-se do Amarildo, transformaram-no em mártir, em um símbolo da resistência dos moradores de periferia, mas quase nenhum um pio foi dado para os milhares de jovens negrxs que são todos os dias assassinados pelo Estado burguês e racista. Só se falou em desmilitarização da PM quando a truculência desta atingiu os pobres estudantes de universidades (intrigante que maioria desses estudantes seja branca de classe média ou alta). Fala-se agora dos funcionários da USP que foram presos por associação criminosa – provavelmente com base naquele tal precedente de prender alguns por formação de quadrilha sem ter prova alguma -, mas em nenhum momento falaram dos companheirxs da Flaskô e do MST que foram acusados do mesmo crime, com base no mesmo precedente.

Amarildo e Elizabeth
Amarildo e Elizabeth. Novos mártires da esquerda pão-com-ovo. Foto: Varela Notícias

Não existe um esmero tático para ampliar a pauta e construir uma plataforma de luta completa: tudo se resume em achar um mártir e um espantalho. O primeiro para que haja a causa da luta, o segundo para jogar as pedras. Não é assim que a carruagem anda, não é assim que se constrói uma luta. Não adianta ficar apenas com o símbolo, símbolos se esvaziam se não estiverem calcados em uma plataforma de luta coerente e concreta.

Após a catarse generalizada que a copa trouxe, lembraram, apenas depois de o Brasil ter perdido para Alemanha, que a viúva de Amarildo está desaparecida há dez dias, mais uma mártir para a esquerda poder encampar e falar de como esse mundo é terrível.

O legado da Copa para esquerda é simples: não se faz luta com símbolos, sejam eles mártires ou espantalhos. Luta-se com plataformas concretas, de preferencia pautas com as quais xs trabalhadorxs se sintam contemplados e percebam que lutar por essas pautas trará mudanças materiais em suas vidas cotidianas.

A esquerda precisa, urgentemente, parar de ostentar militância e começar a militar pra valer: dialogar com as periferias, com os grupos oprimidos, ouvir e ajudar na auto organização dessas pessoas, entender suas demandas concretas sem impor demanda alguma. Não é razoável chegar à periferia falando de revolução socialista, se as pessoas que moram lá estão mais interessadas em ter acesso a saúde, educação, moradia digna e consumo, por exemplo.

A Copa acabou, mas as desapropriações vão continuar ocorrendo: prédios e galpões serão construídos em terrenos públicos destinados a moradias populares, ocupações legítimas serão invadidas pela truculência do Estado e de seu aparato policial. A Copa acabou, mas a polícia militar vai continuar reprimindo os grupos sociais oprimidos: prostitutxs, negrxs, pobres. A Copa acabou, mas o turismo sexual não.  A Copa acabou e o ex-congressista Demóstenes Torres  voltou a ser promotor de Justiça. A Copa finalmente acabou, mas  a sensação que fica é a de que “cada um foi pro seu lado, pensando em uma mulher ou em um time” enquanto o corpo jaz no chão.  Vamos relacionar todxs esses problemas agora com o que? Com as Olimpíadas talvez? A Copa acabou, chegou a hora de a esquerda repensar sua atuação na sociedade. Do jeito que está, não dá. E agora, Marias? E agora, Josés?

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