A violência das torcidas organizadas para quem quer entender

Antes do clássico entre Corinthians e Palmeiras no domingo passado, a grande preocupação era a segurança -- e não o futebol. O que leva alguém a matar ou morrer por uma torcida de futebol?

Torcida organizada: futebol ou barbárie?
Torcida organizada: futebol ou barbárie?

Nesse fim de semana, Corinthians e Palmeiras se enfrentaram no primeiro clássico realizado na casa nova do alvinegro, a Arena Corinthians, em Itaquera. A véspera do dérbi foi marcada por uma grande expectativa. Nem tanto pelo que as equipes poderiam fazer dentro de campo, mas pelo que poderia ocorrer fora dele. Afinal, apesar de um clássico sempre vir acompanhado da expectativa de um jogo emocionante, invariavelmente surgem preocupações com possíveis atos de violência e confrontos entre as torcidas – principalmente as organizadas.

O agravante, no caso do clássico do último domingo, é que o acesso ao estádio de Itaquera é feito majoritariamente por trem e metrô. Em reunião realizada na sexta-feira anterior à partida, a PM recomendou que a torcida palmeirense chegasse ao palco do jogo via ônibus, evitando um encontro com torcedores corintianos nos transportes sobre trilhos – já que tanto o Metrô quanto a CPTM não teriam condições operacionais de apartar alvinegros e alviverdes.

A nova arena corintiana, por sua vez, era outra preocupação à parte. Projetado para atender ao “padrão FIFA”, o Itaquerão teve que ser adaptado para receber o clássico mais tradicional da equipe da casa. Tapumes foram colocados no meio das arquibancandas, a fim de isolar os torcedores rivais. E não apenas as arquibancadas, mas até as áreas comuns do estádio foram isoladas. Como se os frágeis tapumes fossem capazes de conter a fúria de torcedores dispostos a se aniquilar mutuamente.

O fato é que, pelo menos antes de a bola rolar, as torcidas organizadas foram as grandes protagonistas do clássico, e a segurança – e não o futebol – foi a grande preocupação.

O sociólogo alemão Max Weber deu origem à sociologia compreensiva.
O sociólogo alemão Max Weber deu origem à sociologia compreensiva.

O grosso da imprensa esportiva, como de costume, colocou em campo seus velhos bordões para recriminar as torcidas organizadas: “como seria bom se pudéssemos assistir aos jogos como na Copa do Mundo, com os torcedores todos juntos”, “esses vândalos afastam as famílias dos estádios de futebol”, “o sujeito vai ao estádio para brigar e não para torcer”, “as autoridades e os clubes não fazem nada para acabar com a violência nos estádios”, e assim por diante. Essas falas podem bem garantir aos corretos jornalistas um lugar no Céu, mas dificilmente ajudarão a compreender o fenômeno das torcidas organizadas. E por que alguém é levado a se juntar a uma torcida de futebol e, em casos extremos, a morrer por ela. Para compreender esse fenômeno social, como já prescrevia Max Weber, é preciso deixar de lado os juízos de valor e recorrer aos juízos de fato. Sem entender o que se passa, seremos incapazes de intervir sobre a realidade.

O primeiro ponto é que a violência das torcidas organizadas é só mais uma forma de manifestação da violência que está presente na nossa sociedade. Ora, não podemos considerar que a desigualdade social é uma violência que atinge os mais pobres; que o machismo é uma violência que atinge as mulheres; que o racismo é uma violência que atinge negros, índios e outros grupos étnicos estigmatizados; e assim por diante? Pois todas essas formas convergem num aspecto: conferem ao outro um estatuto rebaixado (portanto, de dominado) e, ao mesmo tempo, de ameaça que deve ser eliminada.

É preciso levar em conta que esse fenômeno da violência de torcidas não é restrito à realidade brasileira. Pelo contrário, existem torcidas violentas em várias partes do mundo: os hooligans na Inglaterra, os barras bravas na Argentina, os ultras em outras partes da Europa, etc. Além da violência física, alguns desses grupos se veem envolvidos em casos de xenofobia, principalmente no futebol europeu, notadamente contra jogadores africanos e sul-americanos. Mas a xenofobia não é exclusividade das torcidas, basta observar a ascensão da extrema-direita no continente europeu. Mais uma vez, a violência exercida pelas torcidas reflete uma agressividade subterrânea nas próprias sociedades de origem.

Por outro lado, focalizando a realidade brasileira, devemos considerar o clima de completa intolerância que reina no Brasil dos dias atuais. Intolerância que se manifesta, em mais elevado grau, nos grandes linchamentos e tentativas de se fazer justiça com as próprias mãos. Efeito perverso da mistura do individualismo e do senso de urgência contemporâneos, com os traços violentos do patriarcalismo e do patrimonialismo que marcaram a formação da sociedade brasileira. Para proteger a “honra” e a propriedade, o indivíduo acostumado à instantaneidade do Facebook não é capaz de esperar pelo Estado e sua Justiça morosa, que com essa mania de dar amplo direito de defesa, deixa de castigar os infratores – e é preciso aplicar o castigo aqui e agora! Pelo menos é isso que pregam os novos arautos da direita.

A violência das organizadas reflete a violência da sociedade.
A violência das organizadas reflete a violência da sociedade.

Para além desse “caldo de cultura” da violência nos deparamos com a questão da integração social. Pois, antes de mais nada, uma torcida é uma associação de pessoas da sociedade civil que têm um determinado objetivo em comum – assim como uma ONG, uma Igreja, um sindicato, um partido político, um clube social, etc. -, no caso, apoiar um clube de futebol. Assim, em princípio, não se pode condenar de antemão uma torcida organizada, afinal ela é resultado do exercício do direito de livre associação.

Assim, na qualidade de associação, uma torcida organizada é capaz de promover a integração de um indivíduo a um grupo social. E isso não é pouco nos nossos tempos líquidos. Significa conferir ao indivíduo representações, maneiras de agir e pensar, acolhimento numa comunidade, companheirismo, uma identidade. Isso significa, em poucas palavras, em dar um lugar no mundo para um sujeito muitas vezes à deriva – uma vez que não consegue se integrar em outros espaços. De fato, se tomarmos como exemplo o mundo do trabalho: a não ser que o indivíduo pertença a uma categoria profissional fortemente articulada, ou pertença a um grupo altamente identificado com a ideologia do capital, ele não encontrará no trabalho o seu fator de integração à sociedade.

Portanto, o indivíduo que mata e morre por sua torcida organizada, mata e morre por seu lugar no mundo. Afinal, talvez não seja tão simples assim perdermos, de uma hora para outra, as nossas referências. Quem sabe não seja trivial deixarmos de lado a nossa identidade, a ponto de preferirmos a morte a perdê-la. Que o digam os milionários que se atiraram dos prédios após a crise de 1929: preferiram perder a vida do que sua identidade e sua condição de capitalistas. Que o digam os genocidas, que foram capazes de exterminar milhões de pessoas em nome de uma ideologia.

Desse modo, para decepção dos que anseiam por soluções imediatas, o problema da violência das torcidas organizadas não pode ser resolvido da noite para o dia. Um endurecimento da repressão, como pedem alguns, pode até amenizar a violência, mas jamais eliminá-la definitivamente. A solução do problema depende, fundamentalmente, de ampliar os mecanismos de integração social – como, por exemplo, melhores oportunidades de trabalho, de participação política e de acesso à cultura. O fim da violência entre as torcidas depende, portanto, de que nós, como sociedade, sejamos capazes de oferecer um lugar no mundo para todos. Isto é, a cidadania em sua plenitude. Neste dia talvez não haja razão para matar ou morrer por uma torcida de futebol.

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