De tempos modernos a 12 anos de escravidão

O uso da tática do “outro conveniente” como defesa para qualquer crítica ao modelo ocidental me soa como uma espécie de “Você quer que Jones volte, meu amigo?“[6] no sentido oposto. Todo modelo tem um Sr. Jones que serve somente para disseminar o medo e paralisar qualquer intenção de mudança progressista… George Orwell em seu livro não estava meramente descrevendo uma situação real em forma de sátira, "A Revolução dos Bichos" pode ser visto como um tratado de como as relações de poder e seres humanos ocorrem na prática.

Charlie Chaplin in Modern Times
Chaplin em Tempos Modernos

No dia 13 de maio de 1888 a Lei Áurea era assinada. Hoje, 13 de maio de 2014, estima-se que existam cerca de 35 mil trabalhadores em condições de “escravidão contemporânea” no Brasil. Comparada à escravidão colonial e imperial, é até mais lucrativa devido ao baixo custo e fácil substituição. Hoje, 2014, aproximadamente 73% da população carcerária brasileira – que é a quarta maior do mundo, só perdendo para os Estados Unidos, China e Rússia – são negros. Algumas pesquisas dizem que esse número chega a mais de 80%, já outras que é de “somente” 65%. Seja como for, não há dúvidas: a maioria esmagadora dos presos é negra. Hoje, 2014, como mostrou o deputado Marcelo Freixo em um ótimo artigo, uma PEC que propõe a desapropriação de terras onde exista trabalho escravo é emperrada no congresso há mais de uma década, pois vai de encontro com os ruralistas e sua bancada. Hoje, 2014, ainda existem pessoas que lamentam a aprovação da PEC das Domésticas porque não admitem que elas possam ter os mesmos direitos trabalhistas. Hoje, 2014, alguns aspectos da legislação trabalhista em relação aos motoristas de ônibus e caminhões foram alterados por pressões empresariais, aumentando em 1 hora o tempo de trabalho do motorista sem descansar, prevendo uma jornada de trabalho de 12 horas em casos excepcionais além de uma série de facilitações fiscais para as empresas e limitações para o trabalhador que na prática teve seu tempo de descanso reduzido e de trabalho aumentado. Que igualdade jurídica é essa que se submete aos interesses privados? Pense nisso antes de reclamar da greve dos rodoviários. Em estudo feito em 2013, constatou-se que 43,4% dos casos de violência contra mulheres são domésticos, isto é, cometidos pelo marido ou ex-companheiro. Quantas mulheres hoje são “donas de casa” e tratadas como escravas? Somada a isso tudo – e em parte por causa disso – cresce a crise de confiança nas instituições que apesar de ser em parte compreensível, é estimulada por aqueles que desejam desmantelar todas as conquistas trabalhistas adquiridas em mais de um século…

Para onde estamos indo?! Talvez para compreender isso seja necessário descobrir de onde e como viemos.

No filme Tempos Modernos, de 1936, Chaplin faz uma crítica bem humorada não só às mazelas do novo mundo industrial, mas também à transformação do individuo em apenas mais uma engrenagem na grande máquina de produção em larga escala que o mundo moderno se tornava, perdendo cada vez mais sua identidade para dar lugar a um mero escravo moderno do consumo em massa. Para o bem e para o mal, sabemos que o mundo capitalista se desenvolveu, diminuiu suas contradições em alguns casos e as ampliou em outros. Porém, ainda existem aproximadamente 1,2 bilhões de pessoas no mundo vivendo em condições de extrema pobreza, 20% da população mundial é analfabeta, isto é,  cerca de 1,5 bilhões de pessoas; menos de 40% da população mundial tem acesso a saneamento básico e a escravidão atualmente atinge  no mundo pelo menos 30 milhões de pessoasSe por um lado o capitalismo ao longo de sua evolução atenuou as aberrações sociais proporcionadas pela escravidão colonial, o feudalismo e outras relações de trabalho anteriores ao capitalismo, também acabou por inserir novas necessidades materiais que por sua vez contribuíram pra uma “exclusão social” em massa. E isso pra falar somente das condições materiais. Também precisamos refletir sobre a problemática ilustrada no filme de Chaplin, sobre a preservação da nossa identidade em meio à enxurrada de tecnologias e produções massivas que limitam o papel do indivíduo na sociedade, cuja função principal passa a ser consumir e desejar mais e mais, abrindo mãos de muitas coisas, inclusive da participação política direta. Afinal, como estabelecer uma sociedade igualitária, quando o próprio termo igualdade é distorcido? O ser humano é em sua essência repleto de particularidades físicas e ideológicas e no entanto se torna cada vez mais notável uma espécie de ojeriza coletiva das pessoas pela diferença. Bem, que a  igualdade de oportunidades deveria ser um principio básico em qualquer sociedade, nós já sabemos, mas porque insistimos com a ideia de que essa equidade virá sem que deixemos de lado os privilégios? Aliás, que absurda tendência é essa de chamar de caridade aquilo que é NOSSO DEVER?

A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord.

Tudo se torna, como Debord descreveu em Sociedade do Espetáculo, um espetáculo de imagens e informações rápidas. A única coisa que parece não ser rápida hoje em dia é a compreensão do outro. Será tão difícil assim? Sem amá-lo ou teme-lo, apenas se dar conta de sua existência? Quando o assunto é esse, somos a sociedade da lentidão. Se milhões de pessoas morrem de fome todos os dias, alguns milhares são incluídos na “classe média”, isto é, agora podem consumir, assistir televisão e consumir mais um pouco. Palmas. Não há discussão em relação a isso: sem dúvidas a miséria é um problema que deve ser combatido. Antes uma horda consumista do que uma miserável, certo? Certo. Mas acontece que as duas coexistem. A existência de uma sustenta a outra. As características criticadas por Chaplin na década de 40 ainda estão aí, reformuladas sim, mas ainda presentes. Quando se fala em relações de trabalho e produção, logo surge a dicotomia empobrecedora que permeou o imaginário político durante da Guerra Fria – Capitalismo x Socialismo – principalmente quando o objetivo é  justificar o modelo atual. Acontece que o medo acabou, o “outro conveniente” agora nem é mais comunista: são os árabes. Mas isso é tema pra outra história… O uso da tática do “outro conveniente” como defesa para qualquer crítica ao modelo ocidental me soa como uma espécie de Você quer que Jones volte, meu amigo?“ no sentido oposto. Todo modelo tem um Sr. Jones que serve somente para disseminar o medo e paralisar qualquer intenção de mudança progressista… George Orwell em seu livro não estava meramente descrevendo uma situação real em forma de sátira, “A Revolução dos Bichos” pode ser visto como um tratado de como as relações de poder e seres humanos ocorrem na prática.

O homem vende o seu trabalho, seu tempo, sua vida e a si mesmo por dinheiro, pois somente com este ele pode sobreviver. Não há liberdade sem capital, não há capital sem abrir mão da liberdade. Não há tempo para reflexões ou participação política. Tempo é produção. E produção é tudo. Deixamos isso para aqueles que, teoricamente, devem nos representar politicamente. Quem são eles?

Com certeza a lista dos candidatos mais votados que sai no jornal na segunda-feira após as eleições não mostra os nossos futuros governantes. Olhe na lista de doadores de campanha desses sujeitos e você verá quem de fato vai nos governar nos próximos anos. Empreiteiras, empresas de ônibus, bancos… Pensando sobre isso, você realmente compreende a importância do financiamento público de campanha. Os que se opõem a essa ideia apelam sempre pro mesmo argumento: corrupção. Ah a corrupção… Tão criticada e ao mesmo tempo tão praticada. Eu estaria ignorando anos de história da humanidade ao afirmar que a corrupção é exclusividade de uma classe específica ou do próprio capitalismo, mas posso alegar com toda segurança que este último depende dela pra sobreviver. A corrupção não reside nos partidos políticos ou em desvio de obras públicas, ela é diária. Tão intrínseca ao nosso cotidiano quanto respirar. E o mais importante: o próprio sistema é uma corrupção, um grande roubo institucionalizado. Não, não sou contra a propriedade privada. Isso seria simplista. Sou contra propriedade privada de todos os tipos de “meios de produção”, o seu oligopólio pra mim é o grande furto, a legitimação da corrupção. As doações privadas em campanhas oficializam a grande hipocrisia humana em relação ao próprio caráter.

Quem em sã consciência ignora que qualquer doação de empresas privadas à campanha de um partido é um acordo feito para que estes sujeitos, quando eleitos, retribuírem? Será que, como dizia Brecht, teremos que sempre defender aquilo que é tão óbvio? O financiamento privado é um círculo vicioso que envolve a corrupção de algo que é de interesse público e isso é um crime que afeta a todos. Ou quase todos. O quão saudável pode ser um sistema político que se sustenta em pilares que favorecem claramente meia dúzia de pessoas? Vivemos na era em que é estupidamente irônico acusar que há fraudes em determinado negócio, quando o próprio negócio em si já é uma fraude, um crime. Vivemos na era em que o roubo é uma prática legalizada e isso fica evidente quando você procura se informar sobre o quanto de impostos aqueles que possuem mais dinheiro são isentos de pagar.

A massiva criação de gado a qual a maioria da população é submetida se torna fundamental para a manutenção dessa sociedade. O supérfluo se tornou necessário. Já dizia o jornalista Eduardo Galeano sobre as crianças da classe média: …conserva-os atados à mesa do televisor, para que aceitem, desde cedo, como destino, a vida prisioneira.O livre pensamento e a nossa identidade são a todo custo violentados e massacrados em prol do ideal de vida que precisa ser reforçado pois sem ele, a economia não sobrevive. Não é sem motivo que neocolonialismos e imperialismos foram por muito tempo a tábua de salvação desse sistema, à custo de muita miséria, morte e submissão. Até hoje muitas nações sofrem as consequências desses tempos. 

Não é só uma simples questão de ser ou não minoria, ter mais ou menos direitos, é preciso entender que essas diferenças não devem ser combatidas e sim compreendidas, o que devemos combater é a INDIFERENÇA, mas será impossível fazê-lo, se a cada dia perdemos cada vez mais a nossa identidade, que é o nosso bem mais valioso, o que nos faz humanos. Querem, invariavelmente, criar um padrão. Uma enxurrada de normas e estatutos exigindo que nosso comportamento seja politicamente correto aos olhos de uma “autoridade oficial” que nós, incrivelmente, acatamos. Um mar de ovelhas é o que somos. Há uma falha essencial nessa sociedade. parecer correto está longe, muito longe, de ser correto. O velho clichê do ter e parecer ao invés de ser, infelizmente, tem de ser necessariamente relembrado. Querem que todos nós pensemos como um só. Como uma lavagem cerebral em massa, onde somos expectadores e esquecemos de viver. Desejam que todos sejam iguais, mas nós não somos! Não é da nossa essência! Querem tirar de você a única coisa que o diferencia. Querem tirar do ser humano a capacidade de pensar por conta própria. Quando criamos um padrão de comportamento e nos tornamos intolerantes a quem foge do mesmo, nós vamos nos transformando em algo muito semelhante a robôs fabricados em série. Isso ainda pode ser fatal para a nossa vivência. Uso aqui o termo “vivência” inspirado na frase genial do filme dirigido por Steve McQueen, 12 anos de escravidão: “Eu não quero sobreviver, eu quero viver.” O filme pode não se tratar do período atual da humanidade, mas como eu disse no inicio desse texto, saber pra onde vamos às vezes passa pela compreensão de onde viemos e o mais importante: de que forma viemos.

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