Saber, ciência e ideologia em Foucault

Saber em Foucault é mais do que um mero conhecimento. Se trata de um conjunto coordenado de enunciados e funções de enunciação que dizem o que pode e o que não pode ser dito.

Da série “A Arqueologia do Saber“.

Antes, veja nosso vídeo sobre o conceito de saber em Foucault. O vídeo e o texto são complementares, então leia o texto depois de ver o vídeo!

Saber, ciência e ideologia em Foucault

o que é saber em foucault
Saber e poder são indissociáveis.

Primeiramente, é interessante entender que Foucault não concebe o conhecimento como algo dado: não há conhecimento natural, não faz parte da natureza humana conhecer as coisas e, no limite, não há objetos de conhecimento. Tudo isso, que é considerado como algo dado, é afastado da arqueologia foucaultiana. Aqui, faremos uma pequena resenha sobre a relação do saber, da ciência e da ideologia proposta pelo autor francês na Arqueologia do Saber.

Mas como ele concebe o conhecimento? Ou melhor, o que pode ser “relativo” ao conhecimento? Talvez o “saber”. E o que é saber em Foucault? Como o próprio diz na Arqueologia, “ao invés de percorrer o eixo consciência-conhecimento-ciência (que não pode ser liberado do index da subjetividade), a arqueologia percorre o eixo prática discursiva-saber-ciência”. O que isso significa? basicamente que o que interessa na arqueologia é um conhecimento como dominação, como prática discursiva e como pano de fundo para um discurso científico, não para uma verdade científica.

O que é o saber em Foucault?

O saber é fruto de lutas, de guerra e do desejo. Não do desejo que se demonstra através do discurso, mas pelo desejo ao próprio discurso. O saber é a luta contra um mundo que não tem regras, que não tem linearidade, que é descontínuo e frágil. Por isso que engendra relações de poder: o saber forma configurações de poder que ao mesmo tempo o dão força enquanto ele próprio justifica discursivamente esse poder.

Mas isso é olhar o saber em sua ontologia. Em que é constituído esse saber? O próprio Foucault nos ajuda nesta questão:

[Os elementos do saber] são a base a partir do qual se constroem proposições coerentes (ou não), se desenvolvem descrições mais ou menos exatas, se efetuam verificações, se desdobram teorias. formam o antecedente do que se revelará e funcionará como um conhecimento ou uma ilusão, uma verdade admitida ou um erro denunciado, uma aquisição definitiva ou um obstáculo superado […] Um saber é aquilo que podemos falar em uma prática discursiva que se encontra assim especificada: o domínio constituído pelos diferentes objetos que irão adquirir ou não um status científico.[1]

O saber também é o espaço em que o sujeito pode tomar posição para agir dentro do discurso. Ou seja, é um conjunto de funções que articulam um dado discurso – segundo o mestre, “neste sentido, o saber da medicina clínica é o conjunto das funções de observação, interrogação, decifração, registro, decisão, que podem ser exercidas pelo sujeito no discurso médico”. Além disso, o saber é “o campo de coordenação e subordinação dos enunciados em que os conceitos se definem, se aplicam e se transformam [e o saber] se define por possibilidades de utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso.

O saber só nasce com uma prática discursiva definida e toda prática discursiva pode se definir pelo saber que está formado sob ela.

O saber, então, muito menos estrito que os discursos, é um conjunto ordenado e sistêmico de enunciados que podem ou não fazer parte dos discursos que emergem do saber e que podem ou não fazer parte da ciência. O saber também, indo além dos enunciados, são as técnicas utilizadas para conseguir as enunciações necessárias – como no exemplo do autor sobre a medicina psiquiátrica, exposto acima).

Saber e ideologia

Quando a ciência emerge num dado saber, ou seja, quando ela se localiza dentro de um campo de saber e quando ganha um papel definido (que é variável em cada diferente formação discursiva), aparece a ideologia.

A influência da ideologia sobre o discurso científico e o funcionamento ideológico das ciências não se articulam no nível de sua estrutura ideal (mesmo que nele possam traduzir-se de uma forma mais ou menos visível), nem no nível de sua utilização técnica em uma sociedade (se bem que esta possa aí entrar em vigor), nem no nível da consciência dos sujeitos que a constroem; articulam-se onde a ciência se destaca sobre o saber. Se a questão da ideologia pode ser proposta à ciência, é na medida em que esta, sem se identificar com o saber, mas sem apagá-lo ou excluí-lo, nele se localiza, estrutura alguns de seus objetos, sistematiza algumas de suas enunciações, formaliza alguns de seus conceitos e de suas estratégias.[2]

A ideologia, portanto, deve ser analisada como prática discursiva, não como algo que pode ser utilizado ou que é consciente para os sujeitos. Para se analisar a ideologia é necessário passar pela formação discursiva que possibilitou sua existência, além dos conceitos, objetos, formas de enunciação e escolhas teóricas que estão presentes na formação analisada.

Foucault ainda termina com um número de quatro proposições sobre a ideologia que resume sua discussão:

  1. A ideologia não exclui a cientificidade. Poucos discursos deram tanto lugar à ideologia quanto o discurso clínico ou o da economia política: não é uma razão suficiente para apontar erro, contradição, ausência de objetividade no conjunto de seus enunciados.

  2. As contradições, as lacunas, as falhas teóricas podem assinalar o funcionamento ideológico de uma ciência (ou de um discurso com pretensão científica); podem permitir determinar em que ponto do edifício esse funcionamento se dá. Mas a análise de tal funcionamento deve ser feita no nível da positividade e das relações entre as regras da formação e as estruturas da cientificidade.

  3. Corrigindo-se, retificando seus erros, condensando suas formalizações, um discurso não anula forçosamente sua relação com a ideologia. O papel da ideologia não diminui à medida que cresce o rigor e que se dissipa a falsidade.

  4. Estudar o funcionamento ideológico de uma ciência para fazê-lo aparecer e para modificá-lo não é revelar os pressupostos filosóficos que podem habitá-lo; não é retornar aos fundamentos que a tornaram possíveis e que a legitimam: é colocá-la novamente em questão como formação discursiva; é estudar não as contradições formais de suas proposições, mas o sistema de formação de seus objetos, tipos de enunciação, conceitos e escolhas teóricas. É retomá-la como prática entre outras práticas [3].

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. Ciência e Saber IN: A Arqueologia do Saber. 8ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p.219-220.

[2] FOUCAULT, Michel. Ciência e Saber… p.223.

[3] FOUCAULT, Michel. Ciência e Saber… p.224.

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