O que “1984”, de George Orwell, pode nos dizer sobre o mundo atual? O Ocidente, a guerra contra o terror e a islamofobia

*Quando este texto foi escrito, o atentado à sede da revista de Charlie Hebdo ainda não havia ocorrido. Devido às inseparáveis questões que permeiam tanto o atentado quanto os temas tratados abaixo, acrescentei uma nota sobre o caso ao final do texto.

Presenciamos em 2014, o presidente dos Estados Unidos declarar ao mundo que estava em guerra contra o Estado Islâmico,  iniciando mais um ciclo na “Guerra ao terror” iniciada pela família Bush. No livro “1894”, George Orwell nos deixa duas ideias essenciais para entender o mundo contemporâneo: o conceito de guerra ininterrupta e a manipulação do passado. Ao concluir que uma sociedade hierárquica fatalmente iria entrar em colapso caso se alcançasse uma igualdade material e intelectual entre os seus indivíduos, só havia um jeito de uma minoria se sustentar no topo da ordem social vigente: a manutenção da pobreza e ignorância. Mas em mundo que vive de produção de riquezas, mais precisamente do consumo dessas riquezas, “como manter as rodas da indústria em ação sem aumentar a riqueza real das pessoas?” perguntou Orwell. Sua resposta foi imediata: COM A GUERRA ININTERRUPTA. Perpetuar inúmeras guerras mantém a produção – e o consumo – material em massa sem oferecer conforto em excesso à população, impedindo também que, a longo prazo, se tornem inteligentes e conscientes demais de sua importância nessa roda giratória de produção. “A guerra, como veremos, não apenas efetua a necessária destruição como a efetua de uma forma psicologicamente aceitável.” Mas como isso é possível? Como justificar o gasto trilionário em armamentos de guerra enquanto milhões passam fome e se encontram sem moradia, como relativizar a matança de milhares de jovens soldados e civis inocentes? Como tornar isso tudo, “psicologicamente aceitável”?Orwell também oferece a resposta: a manipulação da memória histórica. “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado” diz um personagem do livro. Ao forjar a História, isto é, modificar o passado, populações inteiras podem ser levadas a acreditar que qualquer coisa é natural, que as coisas “sempre foram assim”, e principalmente, banalizar a morte. O falseamento da História mata. E mata bastante.

A “Guerra às drogas” iniciada por Richard Nixon na década de 60 continua a matar pobres, em sua maioria latinos e negros, pelas periferias do continente americano, sem o menor sinal de sucesso. Oras, quem conhecesse a história dos Estados Unidos saberia que essa política é sinônimo de fracasso. Nem estavam tão distantes assim dos anos 20, da “Lei Seca” proibindo o consumo de álcool que, portanto, se tornou o item mais consumido pela população estadunidense da época, para a felicidade dos grandes contrabandistas de álcool, como o famoso Al Capone. É história básica jogada pra debaixo do tapete. Por que a política de Guerra às drogas, que falhou miseravelmente em todos os lugares em que foi implantada continua em vigor? Talvez, se olharmos pelo prisma Orwelliano, perceberemos que na verdade ela é um projeto que deu certo. Lucra-se mais com a guerra às drogas do que com sua legalização. Aliás, uma curiosidade interessante: não é irônico que a população dos Estados Unidos consuma mais da metade dos psicofármacos produzidos do mundo? Ah mas essas drogas são legalizadas, obviamente. Droga legalizada pode. Não importa se hoje, nos Estados Unidos, ocorrem mais overdoses de remédios do que de crack ou heroína. A história é mutilada: cospe-se em Al Capone e na Psicologia.

Saddam Hussein foi um dos aliados preferidos de Washington, a despeito dos milhares de curdos que eram sistematicamente assassinados pelo ditador.  Posteriormente, se tornou o diabo na terra. O inimigo externo. O satã. Não pela limpeza étnica que promovera em seu país, mas porque saiu do papel que lhe fora atribuído pelos mestres da guerra do Ocidente. Afinal, limpeza étnica nunca foi prioridade nossa, basta ver os inúmeros povos assassinados ao longo da história do século XX, muitos sob a observação de helicópteros Apaches estadunidenses, que ironicamente recebem esses  nomes em homenagem aos indígenas antepassados, vítimas da primeira limpeza étnica nesse continente. Infelizmente não a última da nossa História, mas provavelmente a menos lembrada.

Também foi assim com Bin Laden. Na década de 80, o então presidente dos EUA, Ronald Reagan, comparava o Talibã aos pais fundadores dos Estados Unidos da América. Oras, em menos de uma década eram inimigos mortais. Impossível não lembrar do continente fictício de Orwell, Oceania, que hora era aliado, hora era inimigo ferrenho dos outros continentes fictícios da obra. O importante era estar em guerra contínua. O talibã, monstro cruel e fanático necessário para justificar as atrocidades cometidas em nome da democracia, foi criação nossa. O ocidente alimentou a víbora que lhe picou no dia 11 de setembro de 2001.

Hoje, 2014, Obama discursa na TV explicando que agora o inimigo do Ocidente é o Estado Islâmico. Não será o último. O conceito de guerra ininterrupta parece que veio pra ficar, travestido pelo mantra “em defesa da liberdade e democracia”.

Vale lembrar que há mais de um século, a Arábia Saudita é um dos principais aliados do Ocidente naquela região. O fato de nos vender barris de petróleo parece pesar mais que a falta de liberdade e direitos humanos no país, principalmente em relação às mulheres. Mas isso nunca incomodou os Estados Unidos ou a ONU a ponto da Arábia Saudita se tornar o grande inimigo da liberdade e da democracia. Por enquanto. Aliás, quem tem poder de veto na ONU? Estados Unidos, China, Rússia, Reino Unido e França: justamente os países que são os maiores produtores de armamentos do planeta. Glória a Deus, vejam como estamos bem. Enquanto a Arábia Saudita continuar nos alimentando de petróleo, jamais representará um perigo à liberdade. Lá, ouvi uma vez, eles amam tanto a democracia que tratam de mantê-la guardada à sete chaves para que ninguém a use.

Hoje, janeiro de 2015, dois terroristas tornam Paris o mais recente palco da guerra entre o Ocidente e Oriente. Curiosamente, na chamada pela mídia de “maior  marcha internacional contra o terrorismo do mundo” estão presentes os líderes de nações que não só praticam o terrorismo na África, Ásia e Oriente Médio como atentam contra a liberdade de expressão com seus mega empresários detentores de grande parcela dos meios de comunicações.

Nunca o mundo esteve tão insano e obsceno. Como Charlie Hedbo se sentiria ao ver que seus maiores inimigos em vida estão agora usando seu nome como trunfo político e militar pra justificar sua epopeia imperialista? A tentativa de nós ocidentais interpretarmos aqueles cuja cultura difere muitíssimo do nosso ideal de civilização já mostra nossa incapacidade pela própria denominação que fornecemos a eles: Oriente. O nome por si só já é uma invenção Ocidental para distinguirmos aqueles cujos hábitos estão distantes de nós não só geograficamente mas também no plano das ideias. A dificuldade já nasce da própria inexistência de um Oriente como um todo, como Edward Said definiu: o que temos é uma série de orientalismos, quase todos impregnados pelo nosso etnocentrismo.

Compreender as diferenças entre Ocidentais e não-ocidentais é tarefa complexa porque vemos o mundo pela lente que nos foi dada desde cedo: nossos valores, hábitos, noções morais, etc. Quando se trata da história humana, o velho e o novo coexistem e estão em continua transformação e desenvolvimento. Como Ocidental, não posso aceitar o modo como as mulheres são tratadas em Estados onde o Islamismo e seu guia de hábitos(as Sunas) prevalecem. Também não posso aceitar atentados contra a liberdade de expressão, contra civis, etc. Mas também, como Ocidental, não posso me privar de condenar o nosso velho e perigosismo hábito de varrer a história pra debaixo do tapete e fingir que não temos nada a ver com isso. A nossa total falta de autocrítica nos torna míopes para o óbvio: as causas do fundamentalismo islâmico são, em maioria, consequências de nossas próprias ações. Fomos nós, os Ocidentais, que criamos e financiamos o monstro que hoje quer nos devorar. Por interesses econômicos e ideológicos plantamos o ódio e agora nos recusamos a colher. Foi assim com a União Soviética invadindo o Afeganistão e foi assim com os Estados Unidos financiando os talibãs.

Como Hanna Arendt acreditava, a questão não é duvidar da culpa do crime e nem mesmo justificá-lo(no caso, os atentados terroristas), mas buscar compreendê-lo como tal. Se há algum compromisso real com a paz por parte do Ocidente, ele precisa passar por essa autocrítica para que ainda exista alguma esperança contra o ódio. Certa vez um professor me disse que a História estava sempre correndo o risco de se tornar uma ciência monocórdia quando se resumia à leitura de autores de uma mesma ideologia, ao pensamento único e ao mesmo tempo coletivo, repetindo como papagaio as mesmas e mesmas palavras, evitando assim o livre pensamento, abrindo mão de pensar por conta própria, culminando muitas vezes até mesmo na total preguiça de pensar. Nunca mais fui o mesmo depois daquelas aulas, mesmo que não tenha deixado de ser esquerdista convicto, pelo contrário, fui me tornando cada vez mais convencido que a dialética de Marx está vivíssima em pleno século XXI. Mas isso não me impede de utilizar aqui, as palavras de um teórico estadunidense, conservador e franco apoiador do liberalismo ocidental, a definição sobre a questão Ocidente x Oriente que é, pra mim, quase perfeita: “O Ocidente ganhou certa hegemonia no mundo não pela superioridade de suas idéias, seus valores ou religião, mas sim por sua superioridade EM APLICAR A VIOLÊNCIA ORGANIZADA. Os ocidentais muitas vezes esquecem desse fato, OS ‘NÃO-OCIDENTAIS’, NUNCA.” (traduçao livre) – Samuel Huntington, em Choque de Civilizações

4 Comentários

  1. Eu não entendo, como pode-se ler um livro como 1984, e não entender que a obra é um relato cristalino do que é na prática o socialismo, a ideologia de esquerda. Ler 1984, e continuar se intitulando esquerdista, é algo que pra mim não faz sentido.

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