Sujeito e objeto: uma falsa dicotomia

Sujeito e objeto fazem parte de uma dicotomia não existente na sociologia contemporânea. Veja como esta oposição se desdobra.

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O sujeito marcado pelo poder. Pintura de Cara Thayer e Louie van Patten.

A pretensão deste texto está aquém de uma resenha sistemática dos autores que serão utilizados sub-repticiamente a cada parágrafo. No entanto, não sistematizar uma resenha possibilita uma escrita rápida e fluida, talvez mais didática e menos truncada.

A dicotomia entre sujeito e objeto está sob uma análise introdutória que visa mostrar a possibilidade de observá-la sob uma perspectiva menos mecânica e talvez mais produtiva.

A constituição do sujeito

O sujeito não é um ser que começa a partir do nada. Da mesma forma, também não é um fantoche fabricado para os desígnios do poder. A relação que se dá na constituição do sujeito está para além da mera primazia da máquina social que o forma ou da consciência autodeterminada que desbrava o mundo, esse grande objeto sensível pronto para ser percebido e absorvido pelo sujeito.

É por isso que a noção de agência é importante. O agente social da sociologia contemporânea não é aquele sujeito livre da sociologia weberiana, não é o sujeito que dá significados para as ações de acordo com sua própria racionalização do mundo, seguindo preceitos de tradição, de racionalidade instrumental ou de afetos: muito pelo contrário, o agente social na definição da sociologia contemporânea tomando como base Foucault, Bourdieu, Giddens entre tantos outros autores que deram um passo à frente em relação ao estruturalismo, é aquele que foi constituído pelas estruturas do mundo exterior a ele e que, durante o processo de socialização, as introjeta transformando suas coordenadas em uma estrutura interna.

Esta estrutura interna, que pode ser tida como uma estrutura cognitiva (já que é constituída pelas regras que vão definir as práticas do sujeito no mundo) não é somente negativa, mas é também (e primordialmente) positiva. Não é uma estrutura que só reprime, mas é um conjunto de disposições que indicam o que fazer em cada situação particular.

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Pierre Bourdieu

Essa indicação não é mecânica e nem linear: se trata de um conjunto de possibilidades práticas tomando como princípio a posição do sujeito dentro da estrutura social, dentro dos grupos sociais que participa e etc. Este é o habitus da sociologia de Bourdieu.

Levando para o lado da relação saber-poder – o poder que move relações afirmando a verdade do saber, e o saber que legitima o poder por meio de discursos com efeitos de verdade -, o sujeito constituído nunca é só uma peça na engrenagem da máquina estatal: para longe disso, Foucault sublinhava que é talvez mais importante observar a positividade do poder do que sua negatividade. Ou seja, o poder forma sujeitos para agirem de uma forma específica, não só para deixarem de agir da forma considerada perigosa pelos aparelhos estatais.

O poder constitui as positividade do sujeito: suas práticas. O saber dá uma dimensão enunciativa para elas: permite a sua existência simbólica. Sujeito e objeto estão unidos.

O sujeito livre

É por conta do que foi exposto acima que a liberdade nos moldes das reivindicações iluministas é impossível. A emancipação como liberdade de fazer, sentir e pensar livremente não é possível.

Desta forma, o sujeito como aquele que decide o que o mundo significa, que decide por onde anda e que decide quais os destinos de sua vida é um sujeito epistemologicamente falso. Ele não pode acontecer. Existe um a priori histórico que permite algumas posições para o sujeito em relação aos discursos e que já define seu objeto (e portanto diz sobre o que falar).

O sujeito ideal

Mas há um segundo ponto que pode ser considerado mais importante ainda para uma análise não centrada no sujeito: a extensão das formas de saber e das relações de poder.

Quando nós falamos que no Ocidente há um discurso que preza pelo consumismo, estamos falando de todo o Ocidente? Quando falamos que existem coordenadas ideológicas reproduzidas pelas instituições em nossa sociedade que são formadoras dos sujeitos à elas submetidos, estamos falando de todos os sujeito da mesma maneira?

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Louis Althusser. Autor de Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado.

Por exemplo, segundo Althusser, o Estado precisa ser visto como um aparelho. O aparelho estatal consiste em seus aparelhos específicos de cunho repressivo (como a polícia e o exército) e de cunho ideológico (como a escola e a igreja). Esta perspectiva do Estado enquanto uma máquina de produzir e reproduzir práticas e valores é interessantíssima, mas é correto afirmar que os sujeitos submetidos aos aparelhos estatais acabam se tornando seus sujeitos ideais?

Simplesmente falar sobre os aparelhos sem se atentar aos próprios sujeitos e à multiplicidade de suas vidas é justamente não considerar a agência. O agente social significa o mundo positivamente, não é só um pedaço de barro a ser esculpido (e eu acredito que essa nem era a visão de Althusser, já que ele simplesmente não tomou a agência enquanto objeto de pesquisa, mas se preocupou em descrever toda a aparelhagem estatal e sua força sobre os sujeitos).

O objetivo destas observações é demonstrar que o sujeito ideal descrito pelos modelos macro não existe. Não existe “O homem”, “A mulher”, “O marxista”, “A francesa”, “O islâmico” e etc. Essas denominações são modelos aplicados a esmo sem qualquer correspondência com a prática.

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Da mesma forma, não existe “O discurso” como um ente que cobre tudo e todos. O discurso é uma prática e esta é sempre algo que funciona microscopicamente, movendo relações capilares de poder. Nenhuma prática pode ser tomada como modelo para aplicação universal. É necessário, quando se fala em discurso, delimitar um espaço geográfico, linguístico, social e político, portanto, como o próprio Foucault ensina na Arqueologia do Saber.

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Michel Foucault, autor de Vigiar e Punir.

Os aparelhos estatais também não podem ser concebidos como entes que dominam todo o espaço geográfico do Estado-nação estudado. Eles só existem como prática: os aparelhos só estão realmente lá quando há a prática de sua função, ou seja, quando uma aula é ensinada na escola ou quando a polícia está reprimindo a população. Onde está o aparelho quando uma tradição milenar não racional-instrumental é ensinada no interior de um Estado pouco interessante aos olhos do Estado? O Estado não cobre tudo, ele só pretende cobrir tudo: a crença no Estado que tudo vê é, na verdade, o resultado da boa ação dos aparelhos ideológicos de Estado, que transformam a vigilância estatal em um dado, não é uma prática que precisa de qualquer agente para acontecer.

Falsa dicotomia

A falsa dicotomia entre sujeito e objeto está localizada na perspectiva unilateral do processo social. Da visão puramente macro ou puramente micro ― puramente externa ou puramente interna. É a tentativa de fazer da realidade social uma primazia do indivíduo (individualismo metodológico) ou das estruturas (mecanicismo determinista).

Mas essa dicotomia tem uma função: ele serve para duas coisas: 1) retirar a possibilidade de ação dos grupos impossibilitados de agir, colocando-os como meros fantoches de uma teleologia que os engloba e os define; 2) (no caso do individualismo metodológico) colocar a responsabilidade do que acontece nas costas dos indivíduos e evitar um olhar macro e estrutural.

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Nietzsche.

Numa perspectiva Nietscheana, a opção da liberdade é um jeito de assumir para si o mérito das coisas: o livre-arbítrio é o poder de quem manda sobre quem executa, “O que se chama ‘livre arbítrio’ é essencialmente o sentimento de superioridade que se sente ante um subalterno. ‘Eu sou livre, ele deve obedecer’, eis o que há no fundo de toda vontade, a certeza intima que constitui o estado de ânimo de quem manda”, diz o mestre. Já o determinismo é o jeito de fugir da vida. Resumindo: “uns não querem por preço algum abandonar sua ‘responsabilidade’, a fé em si, o direito pessoal de seu mérito (as raças vaidosas estão deste lado); os outros, pelo contrário, não desejam se responsabilizar por nada, ser culpados de nada, e, a partir de um auto-desprezo interior, querem depositar o fardo de si mesmos em algum outro lugar”.

Indo num caminho parecido, Zygmunt Bauman define a liberdade como a possibilidade de se mover. Num sentido amplo: liberdade é poder. Liberdade é a possibilidade de movimentar mais poder e sentir a sociedade como um espaço mais fluido, menos denso. Quem não é livre não consegue se mover, situa-se num mundo de difícil mobilidade, um mundo denso e pesado ― não conseguem movimentar poder.

Conclusão

O sujeito e o objeto não se confundem, mas se estruturam de maneira concomitante. São constituídos em uma série confusa e ao mesmo tempo rígidas de saberes e configurações de poder. O sujeito faz o objeto do conhecimento da mesma maneira que o objeto do conhecimento é um determinante na constituição do sujeito. Além disso, para além do objeto do conhecimento, os saberes e as relações de poder são constituintes e reproduzidas pelos sujeitos. Formam-se neles e são validadas pela prática deles. Um grande nó.

Discurso e poder estão antes dos objetos de conhecimento, já que estão em uma dimensão pré-conceitual. São as regras que definem a possibilidade da emergência dos conceitos, objetos, modos de enunciação e temas dos diferentes discursos, assim como hierarquizam e dão posições para os sujeitos ocuparem no discurso, os colocando em diferentes status. Saber-poder-subjetividade é a palavra final.

4 Comentários

  1. Texto muito bem elaborado! No entanto, não percebo uma ruptura com a dicotomia sujeito e objeto. Pareceu-me uma neo-fenomenologia
    romântica, com determinações mais sensível, deslocando-se da ontologia filosófica para um sociologia adjunta enquanto objeto interacional com o sujeito cognoscente. Os atores envolvidos, sujeito e objeto, são translados para o campo social. Entretanto, interessante. Talvez próxima também da epistemologia genética de Piaget com tempero de Vygotsky.

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