“Não se pode escapar do consumo”, revela Zygmunt Bauman

Em maio de 2014, Núria Escur, do jornal espanhol La Vanguardia, entrevistou Zygmunt Bauman no Hotel Majestic, em Barcelona. O resultado foi bárbaro.

Em maio de 2014, Núria Escur, do jornal espanhol La Vanguardia, entrevistou Zygmunt Bauman no Hotel Majestic, em Barcelona. O resultado foi bárbaro.

A entrevista, reproduzida na íntegra abaixo, é recheada de bons insights sobre o mundo pós-moderno, em que o sociólogo declara até mesmo que “é muito difícil encontrar uma pessoa feliz entre os ricos”. A felicidade, pode-se interpretar, tem a ver com a satisfação de expectativas. O pobre consegue ser feliz com mais frequência exatamente porque a sua vida pede pouco para ser satisfeita. Se “pessoa pobre que consegue tomar café da manhã, almoçar e, com sorte, jantar… é automaticamente feliz”, explica Bauman.


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A tradução é de André Langer, doutor em sociologia pela Universidade Federal do Paraná.

Núria Escur – Gostaríamos de saber mais de você que de suas ideias, embora não sei se são indissociáveis. É muito ou pouco consumista?

Bauman – Não se pode escapar do consumo: faz parte do seu metabolismo! O problema não é consumir; é o desejo insaciável de continuar consumindo… Desde o paleolítico os humanos perseguem a felicidade… mas os desejos são infinitos. As relações humanas são sequestradas por essa mania de apropriar-se do máximo possível de coisas.

Núria Escur – Nas manhãs de domingo as famílias britânicas não vão à missa, mas ao centro comercial. É esse o nosso novo templo?

Bauman – Sou muito cauto na hora de comparar consumismo e religião. A religião é uma transgressão, te leva para além da tua vida. Na América, antes, a tradição era que se reunisse a família ao redor da mesa para comer e conversar. Nos últimos anos, apenas 20% das famílias fazem isso!

Núria Escur – Rompeu-se essa ideia nuclear de família?

Bauman – Sim, era uma interação física. Agora, ao contrário, cada qual pega a sua comida, senta-se na frente do computador e come. O ser humano de hoje passa sete horas e meia diante de algum tipo de tela. Se a interação com alguém na rede não te interessa, aperta um botão e adeus.

Núria Escur – Nas relações humanas não é tão fácil desconectar.

Bauman – O corpo a corpo te obriga a te confrontar com a diferença. Administrá-la com os sentimentos, elaborá-la. Um efeito colateral dessa dissociação é que se perdeu a vontade do trabalho “bem feito” também nas relações. Perdemos a capacidade de nos relacionarmos com esmero.

Núria Escur – Pertencemos à espécie do homo eligens, “o animal que escolhe”, nos recorda em A riqueza beneficia a todos? (Paidós). Se te mandam, escolhem por ti; se escolhes, renuncias. Com o que Bauman fica: mandar sobre tua vida – logo, escolher – ou obedecer?

Bauman – Escolhe se te deixam. A liberdade é mais uma ideia do que um exercício – que também – porque só sou livre na medida em que posso agir sobre a minha vida sem interferir nas liberdades alheias.

Núria Escur – Qualquer coisa que alguém escolhe modifica o contexto.

Bauman – Porque resitua a liberdade de outros. O importante é ter a oportunidade de exercê-la. Neste momento, só há um grupo muito reduzido de homens livres e uma grande massa que fica fora do jogo.

Núria Escur – As classes médias perdem terreno e parte delas estão se convertendo em proletariado, uma classe que você chamou de “precariado”.

Bauman – Lamento não ter lido o último livro de Thomas Piketty antes de escrever o meu, porque cita coisas interessantes. Por exemplo, que os direitos humanos são algo que herdamos da Revolução Francesa. Nosso horizonte – que marca a distribuição da riqueza – deveria ser o bem comum. Os ricos agem com toda essa riqueza – a maioria a herdaram – com absoluta impunidade. Acreditam que eles nunca poderão falir.

Núria Escur – As 85 pessoas mais ricas do mundo acumulam uma riqueza equivalente aos quatro bilhões de pessoas mais pobres. Qual é a pessoa pobre mais feliz que conheceu e a rica mais infeliz com que já se encontrou?

Bauman – Oh! É muito difícil encontrar uma pessoa feliz entre os ricos.

Núria Escur – Bom, então comecemos pelos que não têm nada.

Bauman – Uma pessoa pobre que consegue tomar café da manhã, almoçar e, com sorte, jantar… é automaticamente feliz. Nesse dia conseguiu seu objetivo. O rico – cuja tendência obsessiva é enriquecer mais – costuma meter-se numa espiral de infelicidade enorme. A grande perversão do sistema dos ricos é que acabam sendo escravos. Nada os sacia, entram em colapso, uma catástrofe!

Núria Escur – Diz que vivemos a “síndrome da impaciência”. Poderemos fugir do desastre com instrumentos como o movimento Slow?

Bauman – O problema não está no ritmo das coisas – embora o movimento Slow me parece muito interessante –, mas em que deveríamos mudar integralmente o nosso modelo de vida. No meu país, 50% dos alimentos acabam no lixo antes de retirá-los das embalagens! Estamos acabando com a sustentabilidade do planeta, somos uns predadores.

Núria Escur – Você participou da Segunda Guerra Mundial, combateu com o Exército polonês, trabalhou para os serviços de informação militares… Qual foi o pior momento da sua vida e como conseguiu recuperar-se?

Bauman – Ao final, a vida não é um campeonato de futebol, onde podes dizer “olha, aquele jogo foi o pior”. Mas lhe responderei com uma anedota que pode parecer evasiva, mas não é. Certa vez, o grande poeta Goethe – quando tinha quase a minha idade – foi entrevistado por Eckermann. “Diga-me, você teve uma vida feliz?”, perguntou-lhe. E Goetherespondeu: “Pois, olhe, sim, tive uma vida feliz. Pois bem, não me pergunte se tive uma só semana feliz”.

Núria Escur – Então, a felicidade não é a soma de momentos de felicidade, como dizem alguns?

Bauman – Não, a felicidade é o gozo que dá ter superado os momentos de infelicidade. Ter conseguido transformar teus conflitos, porque sem conflitos as nossas vidas, a minha vida, teriam sido uma verdadeira chatice.

Núria Escur – Terá visto tantas circunstâncias que se repetem ciclicamente – sociedades cheias de esperança, outras devastadas, as que ficam destruídas, as que logo se recuperam… Isso o tornou mais cético?

Bauman – Eu prefiro identificar-me com o “homem esperançado”. Há uma dinâmica da história que te leva ao ceticismo como atitude, porque o otimista diz “estamos no melhor dos mundos” e o pessimista pensa “bom, tanto faz se o otimista tem razão”. Sobre isso, recomendo-lhes Generativi di tutto il mondo, unitevi!, de M. Magatti e Ch. Giaccardo, um manifesto publicado este ano e que nos apresenta um conceito novo: a sociedade generativa.

Núria Escur – O que significa esse conceito que acaba de ser cunhado: sociedade generativa?

Bauman – A sociedade de consumo é uma montagem que consiste em que colhas tudo o que há ao teu redor para te preencher. O manifesto gerador propõe o contrário: tudo o que tu podes dar à sociedade, é a única coisa que pode nos salvar.

Núria Escur – Como explicaria sua “modernidade líquida” – definição perfeita da sociedade pós-moderna, consumista e banal – a uma criança?

Bauman – Ensinaria isto (Bauman pega um biscoito em forma de estrela) e diria: “se isto fosse uma pedra, mesmo que eu a girasse, a virasse… não seria afetada por nada. Depois lhe mostraria este copo cheio de água e lhe diria: “isto, simplesmente decantando, vês?, se modifica”. E se agora não estivéssemos no Hotel Majestic, além disso, derramaria a água sobre a mesa…

Núria Escur – Adiante, adiante.

Bauman – Bom, bastaria para explicar a essa criança que a sociedade onde vive é flexível e extraordinariamente móvel. Antes, se você dava um soco na realidade, a realidade não se movia. Tente fazê-lo agora! Antes se sonhava poder trabalhar durante décadas na mesma fábrica, agora a Meca dos jovens é trabalhar no Vale do Silício… E, quando muito, ficam oito meses!

Núria Escur – Quando analisa dois totalitarismos – o nazismo e o comunismo – conclui que os nazistas eram criminosos, mas não hipócritas. Executavam o que proclamavam. “O comunismo, ao contrário – acrescenta –, foi uma fortaleza de hipocrisia”. Já não é comunista, segue sendo de esquerda?

Bauman – Sou socialista. Efetivamente, os nazistas eram transparentes: queriam infligir o mal e o fizeram. Sem espaço para dúvidas. O comunismo foi uma grande farsa, nos enganou. Albert Camus já chamou a atenção para esse fato: o comunismo é o mal sob slogans de ‘buenismo’. Por isso, nas fileiras comunistas surgiu a real rebelião intelectual.

Núria Escur – O desencanto, então, foi consequência dessa grande farsa comunista?

Bauman – Absolutamente. Trouxe a decepção e a dissidência. Igualdade? Bem, foram alcançadas algumas cotas. Mas, e a liberdade? Nada. E a fraternidade? Ainda menos! Essa foi sua grande contradição.


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