A formação dos objetos – Arqueologia do Saber

Como acontece a formação dos objetos no discurso? O que é um objeto dentro de um discurso? Aprenda aqui como Foucault entende que os discursos se relacionam com seus objetos.

Da série “A Arqueologia do Saber“.

A formação dos objetos - Arqueologia do SaberPrimeiramente, deve-se entender que a unidade de um discurso envolve algo para além da história (concebida como continuidade ou progresso) e para além de blocos homogêneos de conceitos, objetos, modos de enunciação e temas, também é necessário perceber que o que interessa para uma boa análise discursiva é a apreensão das regras de formação de uma formação discursiva, sendo elas “as condições a que estão submetidos os elementos dessa repartição (objetos, modalidade de enunciação, conceitos, escolhas temáticas). As regras de formação são condição de existência, mas também de coexistência, de manutenção, de modificação e de desaparecimento em uma dada repartição discursiva”[1].

A dúvida seguinte é, como descobrir as regras de formação? Na terceira seção do segundo capítulo da Arqueologia do Saber, resenhada neste texto, Foucault se pergunta como descobrir as regras de formação dos objetos.

A formação dos objetos

Ao se debruçar sobre a psicopatologia, Foucault percebe que, caso estabeleça um corte cronológico provisório no século XIX e observe as novas formas de inserção e exclusão do louco no hospital psiquiátrico, perceberá a emergência de diversos objetos sob os quais a psicopatologia se ocupa, muitas vezes frágeis e próximos da morte, mas que definem a loucura em suas manifestações, como

agitações motoras, alucinações e discursos que se desviam (que já eram considerados como manifestações da loucura, se bem que fossem reconhecidos, delimitados, descritos e analisados de outro modo), vimos surgir alguns que se referiam a registros até então não utilizados: perturbações ligeiras de comportamento, aberrações e problemas sexuais, fatos de sugestão e hipnose, lesões do sistema nervoso central, déficits de adaptação intelectual ou motora, criminalidade. Em cada um desses registros, múltiplos objetos foram nomeados, circunscritos, analisados, depois corrigidos, novamente definidos, contestados, suprimidos. Pode-se estabelecer a regra a que seu aparecimento estava submetido?[2]

Com esta dúvida em mente, Foucault concebe três fases para identificar as regras discursivas:

A) Identificar superfícies primeiras de emergência, ou seja, mostrar onde os conceitos podem surgir para depois disso serem designados como doença, anomalia, alienação, demência, neurose, psicose ou qualquer outra classificação. Todas as superfícies de emergência dependem da sociedade em particular analisada. Segundo Foucault, “permanecendo no século XIX, é provável que elas fossem constituídas pela família, pelo grupo social próximo, o meio do trabalho, a comunidade religiosa”. São esses grupos que, “se não transferem para a medicina a responsabilidade da cura e do tratamento, pelo menos o fazem com a carga da explicação”[3].

B) As instâncias de delimitação também são importantes no momento de compreender as regras de formações dos objetos. Por exemplo, a medicina com certeza tornou-se a instância superior para delimitar a loucura como objeto, mas não é a única, pois atuou junto com

a justiça, e particularmente a justiça penal, (com as definições da escusa, da irresponsabilidade, das circunstâncias atenuantes e do uso de noções como as de crime passional, de hereditariedade, de perigo social), a autoridade religiosa (na medida em que se estabelece como instância de decisão que separa o místico do patológico, o espiritual do corporal, o sobrenatural do anormal, e na medida em que pratica a direção de consciência mais para um conhecimento dos indivíduos do que para uma classificação casuística das ações e das circunstâncias), a crítica literária e artística (que, no curso do século XIX, trata a obra cada vez menos como um objeto de apreciação que deve ser julgado, e cada vez mais como uma linguagem que deve ser interpretada e em que é preciso reconhecer os jogos de expressão de um autor).[4]

C) E também é preciso analisar as grades de especificação, que são os sistemas segundo os quais “separamos, opomos, associamos, reagrupamos, classificamos, derivamos, umas das outras, as diferentes ‘loucuras’ como objetos do discurso psiquiátrico”, diz Foucault[5]. Para ele, essas grades podem ser identificadas – no século XIX – como a alma (como grupo de faculdades hierarquizadas mais ou menos interpenetráveis), o corpo (como uma interligação de órgãos comunicantes em um elemento tridimensional), a vida e a história individual (como a vida em suas etapas, suas fases como conjunto de repetições cíclicas, sequência linear de fases – como os três estágios do positivismo ou as fases oral, anal, fálica e genital do sujeito freudiano).

Mas por si só, esses três planos de diferenciação não conseguem dar conta da caracterização do objeto da psicopatologia e da explicação de suas regras de formação, é necessário encontrar as relações que ligam esses três planos entre si, que fazem com que essas diversas instâncias se ajudem na hora de classificar o louco, que fazem com que a medicina entre na família e faça desta superfície de emergência um local privilegiado para o nascimento do louco ou as relações que obrigam o corpo, a alma e a história individual se imbricarem em uma positividade discursiva.

É por isso que, repetindo, o autor francês relaciona os objetos da psicopatologia, com os três planos descritos acima. Por exemplo, quando tentamos ver as grades de especificação, é impossível deixar de perceber no discurso psiquiátrico uma gama de relações específicas que envolvem categorias penais e graus de responsabilidade diminuída juntamente com planos psicológicos de classificação, “as faculdades, aptidões, os graus de desenvolvimento ou involução, os modos de reagir ao meio, os tipos de caracteres adquiridos, inatos ou hereditários”, explica Foucault[6], tudo isso estabelece relações variadas.

Mas para além das relações dentro do plano das grades de diferenciação, há também as relações entre as instâncias de delimitação médicas e judiciárias, que envolvem a estimativa médica da responsabilidade de um crime prescrito pela instância judiciária cometido por um sujeito, ou até mesmo os filtros de questionários médicos, da narrativa biográfica e a busca dos antecedentes criminais.

Por último, as superfícies de emergência se misturam quando percebemos que as normas familiares se relacionam com as normas penais, sexuais, comportamentais e etc. Além, é claro, da relação entre as restrições: a hospitalar e a prisional, que têm seus próprios meios pedagógicos, suas maneiras de analisar o sadio e o patológico, de identificar a cura ou as condições para a libertação.

É por isso que Foucault conclui, “generalizemos: o discurso psiquiátrico, no século XIX, caracteriza-se não por objetos privilegiados, mas pela maneira pela qual forma seus objetos, de resto muito dispersos”[7].

As relações discursivas

É aqui que Foucault sistematiza quatro observações sobre a emergência dos objetos:

1) O aparecimento de um objeto é sempre visto a partir de suas condições históricas e condições para que ele se inscreva em um domínio de parentesco com outros objetos. Daí, saem inúmeras relações estabelecidas entre instituições e entre o próprio enunciado (que se refere ao objeto) com outros enunciados. Explica Foucault, “isso significa que não se pode falar qualquer coisa em qualquer época; não é fácil dizer alguma coisa nova; não basta abrir os olhos, prestar atenção, ou tomar consciência, para que novos objetos logo se iluminem e, na superfície do solo, lancem sua primeira claridade […] [o objeto] existe sob condições positivas de um feixe complexo de relações”[8].

2) As relações ditas acima não estão presentes no objeto, elas se formam entre instituições, técnicas, tipos de classificação, processos econômicos e sociais, formas de comportamentos, sistemas de normas. “elas não definem a constituição interna do objeto, mas o que lhe permite aparecer, justapor-se a outros objetos, situar-se em relação a eles, definir sua diferença, sua irredutibilidade e, enfim, sua heterogeneidade”, explica o autor[9].

3) Aqui, Foucault afirma a diferença das relações discursivas em relação a outros dois tipos de relações:

  • Existem as “primárias” (ou reais) que são definidas independentemente de qualquer discurso ou de qualquer objeto de discurso. São as relações entre normas, técnicas, instituições, formas de comportamentos, sistemas de normas, processos econômicos e sociais. Segundo Michel Foucault, “sabe-se que entre a família burguesa e o funcionamento das instâncias e das categorias judiciárias do século XIX há relações analisáveis em si mesmas”[10].
  • E existem as “secundárias” (ou reflexivas): estas podem estar formadas no próprio discurso e têm a ver com o que os próprios sujeitos da enunciação no discurso falam sobre as coisas que lhes dizem respeito. Vai dizer Foucault, “o que, por exemplo, os psiquiatras do século XIX puderam dizer sobre as relações entre a família e a criminalidade não reproduz tampouco o jogo das relações que tornam possíveis e sustentam os objetos do discurso psiquiátrico”[11].

4) Por fim, o que resta é conseguir enxergar o sistema de relações que podem ser chamadas propriamente de discursivas. Observar, adicionalmente, as relações discursivas e seu jogo com os dois tipos de relações descritos acima.

  • As relações discursivas não estão nunca no interior dos discursos, não fazem o papel de ligação entre conceitos e palavras. Ao mesmo tempo, também não estão fora do discurso, lhe impondo formas: elas se situam no limite do discurso, “oferecem-lhes objetos de que ele pode falar, ou antes (pois essa imagem da oferta supõe que os objetos sejam formados de um lado e o discurso, do outro), determinam o feixe de relações que o discurso deve efetuar para poder falar de tais ou tais objetos, para poder abordá-los, nomeá-los, analisá-los, classificá-los, explicá-los etc […] Essas relações caracterizam […] o próprio discurso enquanto prática”, diz Foucault[12].

Então, é encontrado um conjunto de regras imanentes a uma prática que define esta mesma prática em sua especificidade. Não se trata de observar uma forma constante ao longo do tempo, nem uma configuração ou a continuidade de um dado conjunto de objetos. O que interessa é a permanência estável do sistema de formação do discurso estudado, ou seja, na psiquiatria, o que permanece estável são as relações entre as superfícies em que podem aparecer os objetos, o domínio que o discurso forma, os pontos de emergência dos objetos e etc. São essas relações que os delimitam, especificam e os analisam.

Aqui, nós percebemos que o que importa para Foucault não são as palavras, seus significados e suas origens, muito menos encontrar algo que está para além do discurso, uma essência ou um núcleo duro “real” das coisas. Não importam as palavras e as coisas. O que importa são as regras que possibilitam a emergência dos objetos, essa é a regularidade buscada. Não se deve tratar o discurso como um conjunto de signos (puramente), mas sim como uma prática que forma sistematicamente os objetos de que fala.

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. As formações discursivas IN: A Arqueologia do Saber. 8ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p.47.

[2] FOUCAULT, Michel. A formação dos objetos IN: A Arqueologia do Saber. 8ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p.49-50.

[3] FOUCAULT, Michel. A formação dos objetos… p.50.

[4] FOUCAULT, Michel. A formação dos objetos… p.51.

[5] FOUCAULT, Michel. A formação dos objetos… p.51.

[6] FOUCAULT, Michel. A formação dos objetos… p.53.

[7] FOUCAULT, Michel. A formação dos objetos… p.54.

[8] FOUCAULT, Michel. A formação dos objetos… p.54-55.

[9] FOUCAULT, Michel. A formação dos objetos… p.55.

[10] FOUCAULT, Michel. A formação dos objetos… p.55.

[11] FOUCAULT, Michel. A formação dos objetos… p.55.

[12] FOUCAULT, Michel. A formação dos objetos… p.56.

3 Comentários

  1. Caro Vinícius,

    De antemão, agradeço por esse esforço sintético.
    Está me ajudando muito na compreensão de alguns elementos conceituais da perspectiva de discurso foucaultiana. Se caso você tiver para me indicar algum artigo que trate desses elementos de uma forma mais ” didática “, agradeço. Estou iniciando os meus estudos em Foucault.

    Abraço !

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