A verdade de si em dois regimes distintos: o exame de consciência na antiguidade e a confissão cristã

Foucault (2014) constrói uma forte oposição entre a antiguidade greco-romana e o cristianismo no que tange a relação do sujeito com a verdade. O autor aponta que as práticas de confissão cristãs impõem um regime de verdade bastante diferente das práticas de cuidado de si gregas ou romanas.

foucault (1)Foucault[1] constrói uma forte oposição entre a antiguidade greco-romana e o cristianismo no que tange a relação do sujeito com a verdade. O autor aponta que as práticas de confissão cristãs impõem um regime de verdade bastante diferente das práticas de cuidado de si gregas ou romanas.

Na confissão, o indivíduo guiado deve dizer a verdade de si tendo em vista uma relação com a penitência e a renúncia de si, ao passo que na filosofia antiga a verdade emergiria de outro lugar e teria outro estatuto na relação com o sujeito.

Um regime de verdade é entendido por Foucault como formas de constranger os indivíduos a atos de verdade, estabelecendo para estes atos condições de efetivação e efeitos específicos. Esta forma de constrangimento em relação à produção da verdade requer uma obrigação. Tal perspectiva mobilizada pelo autor fará compreender a verdade não apenas em si mesma, ou seja, algo exterior à própria verdade faz constranger os indivíduos na prática destes atos de verdade, constituindo, pois, o seu regime de manifestação.

Desta forma, a verdade se dá, num regime, através de um suplemento, na medida em que é necessário para a “amarração” dos indivíduos a determinados atos que se mostram como verdades e são, contudo, ou não-verdades ou indiferentes à própria divisão entre verdadeiro e falso (atos de natureza não verificáveis). Da mera constatação da verdade como uma evidência até as formas de comprometimento do sujeito em relação ao verdadeiro ― criando direitos e deveres em relações aos homens, constituindo um império da verdade, como qualifica Foucault ― existe um hiato, justamente aí reside o caráter de regime de verdade. A verdade em si mesma não seria suficiente para a construção deste império, de forma que há de se supor, portanto, a existência de uma “afirmação que não é da ordem lógica da constatação ou da dedução, que é antes uma espécie de comprometimento, de profissão”[2]. Está afirmação diz: “é verdade, logo, você deve obedecer” de tal forma que não existe nada na verdade em si mesma que pudesse fazer conduzir à conclusão de “dever obedecer”. Como argumenta Foucault (2014), este “logo” não é um “logo” lógico já que não pode repousar sobre nenhuma evidência.

No entanto, mostra Foucault, há uma especificidade no regime de verdade tendo em vista que a verdade (se) dissimula, no interior do funcionamento do seu próprio regime, eximindo a necessidade da manifestação da verdade de seus atos coercitivos de obrigação, tendo em vista que a verdade se mostra desde sempre como suficiente a si mesma: “a força da coercividade da verdade está no próprio verdadeiro”. A obrigação se mostra num regime de verdade enquanto uma não-obrigação (mas sim uma necessidade) tendo em vista o caráter específico da força da verdade. Desta forma, num regime de verdade há a sobreposição ou coincidência entre a obrigação do reconhecimento da verdade com a sua constatação enquanto evidência.

Nas práticas de cuidado de si antigas o sujeito guiado ― aquele que busca a verdade de si tendo em vista a aplicação de certas práticas que seriam ensinadas pelo mestre ― ao contrário do sujeito cristão, é muito mais incitado a “não falar”, tendo em vista que o próprio silêncio faria parte importante neste processo que vise o cuidado e conhecimento de si. O silêncio, e não a confissão, é parte importante para a reflexão do aluno acerca dos ensinamentos do mestre. Tais práticas são formas de ascese do indivíduo. Quem deveria falar a verdade, portanto, na filosofia antiga, era o mestre. Contudo, a verdade que este mestre antigo teria a falar não dizia respeito a uma verdade de si enquanto um “referente do enunciado”; o mestre não iria ensinar um conhecimento dele mesmo se este conhecimento já não estivesse implicado em seus próprios atos de enunciação: uma coincidência entre o sujeito da enunciação e o sujeito de seus atos[3].

O mestre deve obedecer ao princípio da parrhesía: “dever dizer porque é necessário, porque é útil, porque é verdadeiro”. Tal princípio deve unir uma forma de dizer (enquanto técnica), mas não se resumir a ela, tendo em vista que o discurso do mestre não deve se resumir à retórica, mesmo que não prescinda dela como um meio a se chegar à verdade. A parrhesía, diz Foucault[4], deve unir tanto uma técnica quanto uma ética. Existe, então, por parte do discípulo da antiguidade uma apropriação dos ensinamentos do mestre tendo em vista a constituição de um sujeito que se “habilitará a tomar-se ele próprio sujeito de veridição”. Foucault frisa desta forma a importância desta característica da filosofia antiga que diz respeito a não dissociação entre o cuidado de si e o conhecer a ti/si mesmo, entre dizer a verdade e praticá-la.

São Thomas, de Caravaggio.
São Thomas, de Caravaggio.

O indivíduo guiado por esta filosofia antiga deveria se tornar um “sujeito de verdade”, sendo esta verdade compreendida não como prévia ao sujeito que viria conhecê-la como pura interioridade (como nas práticas de confissão cristãs), mas como forma do sujeito se implicar com a própria verdade, se ocupar com ela. Há um envolvimento subjetivo com a verdade na antiguidade que seria completamente diferente das formas de subjetivação cristãs. Tais diferenças entre estas formas de subjetivação pela verdade dizem respeito, portanto, às formas como um sujeito é constituído em certo regime de verdade e como o sujeito é implicado no discurso de verdade que enuncia e em que (se) enuncia.

O ato de confissão cristão, aponta Foucault[5], se dá sob a forma do indivíduo reconhecer as próprias faltas e falhas cometidas que são verbalizadas, por meio de uma mediação institucional, para um interlocutor que é o confessor. Este confessor estabelece então uma pena tendo em vista a concessão de uma remissão. O funcionamento deste ato impõe uma obrigação quanto à manifestação da verdade de si que, como argumenta Foucault, se diferencia das formas de adquirir a consciência de si presentes na filosofia antiga e pagã. A confissão implica a manifestação da verdade do indivíduo em sua “profundidade”

não apenas sob a forma de um simples exame de si consigo, mas sob a [a forma] de uma relação complexa com o outro, ou com os outros, ou com a comunidade eclesial, tudo isso tendo em vista extinguir certa dívida do mal e obter assim o resgate dos castigos que foram merecidos por esse mal e prometidos  a título de punição. Em outras palavras, desde a origem, o cristianismo estabeleceu certa relação da manifestação individual de verdade e dívida do mal[6].

O cristianismo, pontua então Foucault, irá atrelar fortemente o exame de si à obediência através de um dispositivo em que três elementos estão interligados: o princípio da obediência sem fim, princípio do exame incessante e o princípio do reconhecimento exaustivo das faltas.

A ideia de “discrição” – discretio – como um conjunto de capacidades que o indivíduo deveria ter acerca da moderação – aprender a separar o que é demais ou que ainda não é bastante em relação à própria conduta – era um tema comum à filosofia grega. Contudo, argumenta Foucault, a discrição ganha contornos novos com o cristianismo. Para analisar esta mudança, Foucault se baseia sobretudo nos textos de Cassiano. Neste autor cristão, diz Foucault, a discretio não recai tanto na crítica ao polo que diz respeito ao relaxamento da própria conduta, mas sim sobre o excesso de ascese. Esta discretio de Cassiano vai criticar precisamente o rigor excessivo da vida monástica. O contexto em que tal concepção de discretio se inseria remonta à necessidade da Igreja enquanto instituição de regular as práticas de ascese: era preciso administrar a exigência de “perfeição” quanto à busca da salvação individual visto que a própria ideia de perfeição absoluta era vista como algo inapropriado, enquanto uma potencial armadilha de Satanás.

Esta discretio cristã é, portanto, profundamente difícil de obter, tendo em vista que até mesmo os mais santos dos homens não poderiam de fato saber a medida exata de sua própria moderação. Eis o ponto em que a discretio cristã difere da discretio antiga, afirma Foucault[7]:

A discretio da sabedoria antiga, a possibilidade para o sábio antigo de diferenciar o demais do de menos, a quem ele deve? Ele deve a seu logos, a esse logos, a essa razão que ele tem em si e que é absolutamente clara a seus próprios olhos, contanto, é evidente, que não seja passageiramente obscurecida pelas paixões; é, em todo caso, a si mesmo, e somente a si mesmo, que o sábio antigo vai pedir sua medida. O santo cristão, o asceta cristão, por sua vez, não pode encontrar sua medida em algo que estaria em si mesmo. Não pode pedir a si mesmo o princípio de sua própria medida. Em suma, a discretio é indispensável. Só tem um problema: é que ela falta ao homem.

Desta forma, qualifica Foucault, o sábio antigo se diferencia do sábio cristão no seguinte aspecto: enquanto o primeiro renunciava a querer dominar o mundo, tendo o seu pequeno império circunscrito ao domínio de si mesmo; o segundo, por sua vez, por mais que fosse interpelado por toda uma multidão de soberanos que lhe pediam conselhos, ele não tinha o domínio de si próprio. Um terceiro personagem marca a distinção entre estes dois sábios: o diabo. É a figura do diabo que torna o homem, por mais asceta e santo que seja, a duvidar de si mesmo sistematicamente, visto que a todo o momento o homem pode estar sendo enganado por esta presença maligna. É justamente no ponto em que o homem julga estar mais próximo a Deus que podemos encontrar a verdadeira e permanente influência do diabo no discernimento dos homens. A discretio passa a ser, desta forma, deslocada: enquanto para os antigos se tratava de um discernimento em relação ao valor das coisas e à moderação sobre as paixões, para os cristãos a discretio recai na representação que o sujeito tem de si mesmo e no valor da própria consciência.

O exame de consciência, portanto, difere entre a antiguidade e a era cristã: enquanto o primeiro se dá a posteriori, tratando-se de uma atividade de inspeção sobre o que o indivíduo efetivamente fez no seu dia; o segundo se dá no exato momento do pensamento, o exame de si deve ter como material o próprio pensamento no seu desenrolar. Nas palavras de Foucault, o exame de si cristão incide sobre o “material do pensamento” e não apenas sobre o conteúdo objetivo das ideias. A verdade recai então em diferentes lugares: no exame cristão a verdade que se analisa é a de si mesmo e não meramente a de uma ideia ou ato em suas objetividades, ao passo que na antiguidade se tratava efetivamente da verdade em relação às ideias e atos concretizados pelo sujeito.

Tendo em vista a extrema dificuldade de adquirir a discretio no cristianismo, a confissão cristã funciona então, por meio da verbalização, como um guia para a discretio já que a fala das faltas cometidas é a prova de que o sujeito está no caminho do bem, tendo em vista que as ideias más tenderiam ficar retidas no silêncio. Disto resulta a necessidade de um exame incessante e constante de si o que significa, nas palavras de Foucault, uma “perpétua discursivização de si mesmo”. Tais práticas destoam em grande parte das formas de direção de consciência da filosofia antiga, pois, segundo Foucault, se tratava, na antiguidade, do sujeito poder estabelecer a sua própria instância de jurisdição, ao passo que no cristianismo o sujeito deve se inscrever num regime de veridição tendo em vista a total obediência ao outro.

Referências Bibliográficas

[1] FOUCAULT. Michel. Do governo dos vivos. Curso dado no Collège de France (1979-1980). São Paulo: Martins Fontes, 2014.

[2] FOUCAULT. Michel. Do governo dos vivos.

[3] FOUCAULT. Michel. A hermenêutica do sujeito. Curso dado no Collège de France (1981-1982). São Paulo: Martins Fontes, 2006.

[4] FOUCAULT. Michel. A hermenêutica do sujeito. 

[5] FOUCAULT. Michel. Do governo dos vivos.

[6] FOUCAULT. Michel. Do governo dos vivos.

[7] FOUCAULT. Michel. Do governo dos vivos.

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