Sonhar Acordado

Para àqueles que desfrutam de deixar a imaginação ativa e livre na hora em que o corpo pede um repouso. Sonhar de olhos abertos pode ser melhor do que se eles estiverem fechados.

PRIMEIRO ATO

[Apartamento quarto e sala de 60 m². Clima escuro e fresco. Há uma estante de livros à direita, o toalete depois do hall e cozinha do lado oposto. A sala composta por abajur rústico, sofá verde musgo aconchegante, uma cama box sem pés. Objetos de decoração espalhados pela casa, cada um representa um lugar ou uma situação de prestígio. Cortina vermelha de veludo para abafar os raios do sol. É noite, Música do The Police toca.]

CENA I

(Sara)

[Na porta, Sara retorna depois de um dia cheio de labuta, tira os sapatos, os coloca ao lado da porta e entra de meias em casa. Deixa a bolsa cair no chão, o terno aprumado na cadeira. Um monte de papéis sobre a mesa].

Contas, contas e mais contas…

Um bilhete azul chama-lhe a atenção:

“Homens e mulheres cometem errares, erros, falhas, fatos”, seres humanos semeiam com problemas sua própria terra, e tropegam nas pedras de sua imaginação falsa e errada, e a vida é dura.

Cadê o autor? Wladi sempre faz isso… Urg.

CENA 2

(Sara)

[Pega o bilhete azul e segue em direção da cozinha. Na porta da geladeira há inúmeros outros bilhetes. Ela pega um ímã de geladeira do Bob Marley e cola o bilhete azul na porta].

Mais um para lembrar! – diz em voz alta.

Tira as calças e fica de blusa e calcinha bem à vontade no sofá. Aciona a secretária eletrônica…

CENA 3

(Wladi deixa recado)

Que loucura foi aquela festa ontem?

Risadas soltas.

(Sara)

Não é? Precisamos parar de beber e de usar ilícitos.

Ri e desliga automaticamente o telefone.

CENA 4

(Sara)

Começa a tocar música melancólica e depressiva. Luz amarela apenas na sala. Acende um cigarro de maconha. Rega a planta que apelidou carinhosamente de Ivone. Estica-se no sofá.  Deitada, ela começa a se recordar da festa passada. Fica em silêncio apreciando a fumaça que sai do cigarro. Ela sente que faz parte da música, que se tornou uma nota musical e plana ali. Várias luzes começam a piscar em intervalos de poucos segundos. Luz colorida atrás de outra. Ela gargalha sozinha.

CENA 5

(Zé, Sara)

[Zé, teu vizinho de frente aperta a campainha. Sara escuta em câmera lenta. Através do olho mágico vê quem a incomoda. Abre a porta. A música segue].

Hey, Sara, tudo joia? Ouvi a música e saquei que tu estaria aqui… Bem, tô precisando de um salve, rola?

Ah! Claro, tô até fumando um.

Dá para perceber – explica Zé.

Sara passa a bola para Zé.

– E teu dia, tudo certo?

De boa, na mesma vibe e você conseguiu vê aquela parada?

Que parada Zé?

A do trabalho… Da menina que plagiou teu artigo.

Hum, ainda estou vendo isso. Tive que acionar um advogado, você sabe como é né? Como essas coisas são um processo…

E o teu chefe?

O que que tem ele?

O que falou a respeito…

Ah sô, ele não mandou ela embora, está esperando a decisão judicial sair. Mas, você sabe como é né, ele come aquela vadia, então… Ele não defende e não sai da linha. Macaco velho né? Tá na dele tranquilo, comendo ela até não servir mais. Aí ela sai e logo ele arruma outra, ou uma estagiária com tudo durinho e em cima!

Espertão o bode velho!

Você sabe o quanto eu trabalho duro naquela redação dos infernos. Sempre que uma pauta bomba quem é que quebra o galho? A idiota aqui… Tô me cansando viu. Com vontade de jogar tudo pro alto e ir pra América Central, talvez for morar em Trinidade e Tobago, abrir um bar na praia e ficar de boa, escrevendo sem pressão, talvez lá até conseguisse finalmente bolar um romance.

Tô ligado! Não parece nada mal, se rolar me leva…

CENA 6

(Zé, Sara)

Sara!

Hummm. Que foi?

Posso trocar o som?

Por quê?

Porque tá pesado demais…

[Okay… Sara vai até o tocador de música e põe Chopin]

Putz! – Indica Zé.

O que foi agora?

Ainda continua pesado…

Já troquei o som…

Tá bom! Estou preocupado com você.

E, por quê? Tá de boa…

Reparei que direto tu tá escutando essas músicas depressivas. Tá tudo bem mesmo?

Não precisa se preocupar Zé. É fase, depois passa como as outras já passaram. E você sabe que eu produzo até mais quando estou assim.

Eu sei, mas…

Sara olha de rabo de olho. Zé ironicamente tira sarro. Você tá gatinha assim, à vontade e melancólica.

Deixa de ser besta Zé. Toda vez você diz isso.

Talvez seja porque você não sai dessa fase.

Uma hora passa.

Tomara.

CENA 7

(Zé, Sara)

[Sara vai até o quarto e na mesa de cabeceira pega um livro e retorna à sala]

Quero te mostrar esse livro, Zé, se chama Vício dos vícios, um cara da psicanálise que escreveu.

Interessante – pondera Zé depois de uma bola.

E você tá querendo parar de fumar Sara?

Não, Zé! Por que faria isso? O livro não fala de drogas. Fala de comportamento humano, a vaidade… Que para o autor, a vaidade está em toda ação humana e isso é constituído desde em que somos crianças, ele dá uma porrada de exemplos e realmente faz sentido! Estou intrigada com essas questões…

Vou querer emprestado!

Claro. Vai na página 18…

Zé, em voz alta, lê:

“Os homens gostam de coisas que os fazem sentir especiais, únicos, pois a nossa vaidade assim o exige. Não é difícil perceber que todos os conceitos que nos rebaixem sejam muito mal recebidos, mesmo pelos cientistas e intelectuais. Que os contemporâneos de Darwin tenham ficado enfurecidos com ele, porque demonstrou nossa falta de originalidade como espécie não é de se estranhar. Que agrade mais os nossos ouvidos frases como: “você é ótimo”, “para você tudo será bom e dará certo com facilidade”, do que as verdades, tipo: “você não suporta a sua insignificância e falta de originalidade e usa qualquer meio para se destacar”, também não é para se ter dúvidas. Poucas pessoas têm a coragem de saber a verdade quando ela pode abalar a vaidade; poucas têm força suficiente para suportar este tipo de golpe. É para elas que se endereça esse livro”.

CENA 8

(Zé, Sara)

Do caralho! – retruca Zé depois de ler.

Pois é. Agora faz o favor de devolver, que vou digeri-lo mais um pouco. Afinal, amanhã é dia de branco.

Sara acompanha Zé até a porta.

Ele devolve o livro e indaga: Não quer companhia hoje?

Fatigada, Sara retruca: Nunca se cansa, Zé?

Tento né… Quem sabe um dia você me dá moral.

Beleza. Por que não tenta amanhã?

Boa noite!

Boa.

[Sara abre um pouco a janela e fecha as cortinas. Segue em direção do banheiro. Tira toda a roupa, liga o chuveiro. Nesta hora toca Noturno de Frederic Chopin. Chora em soluços. Depois do banho, põe o roupão, enche o copo d’água e o leva para o quarto. Com pouca iluminação do abajur, fica instigada e segue na leitura].

Em seguida, tudo escurece. Segue para o próximo ato.

***

Aproveite e leia: A dor de existir

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