A Vontade e a crítica às utopias – Emil Cioran

Para Emil Cioran, a angústia surge da consciência do que significa “querer” e da dupla impossibilidade tanto de afirmar como de negar a vontade. As utopias, por sua vez, são a expressão por excelência do caráter da vontade, sendo elas uma instância última da história que se pretende, sem perspectiva de êxito, alcançar.

Antes de iniciar este texto, gostaria de fazer uma ressalva sobre a infelicidade que é ver o pensamento de Emil Cioran ser usado para legitimar outros pensamentos por sua vez infelizes, embora saiba que não é apenas com ele que isto acontece. Pessoalmente, penso que a autodestrutiva “consciência de nossa temporalidade” que percorre a obra de Cioran deixa em aberto, apesar do sugerido fatalismo, o que disso se deve seguir. O principal é que Cioran não propõe uma fórmula redentora para o mundo, e sua crítica aos que o fazem, a como e porque o fazem, é uma contribuição a partir da qual muito temos o que aprender.


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A vontade e a crítica às utopias

Em seu desígnio geral, a utopia é um sonho cosmogônico ao nível da história. [1]

Schopenhauer, assim como, Nietzsche, admitiu que a vontade é a constituição essencial do homem. Para o primeiro, a vontade é fonte de sofrimento, uma vez que consiste em uma aspiração perpétua que nunca encontra sua satisfação final. Quando o homem não deseja, é invadido pelo tédio, e a existência é igualmente dolorosa. A única forma de livrar-se desta dor que resulta da vontade é extinguir esta última. Já o segundo, tendo admitido o conceito de Schopenhauer, acredita, no entanto, que é apenas por meio da afirmação da vontade que o homem pode efetivar-se no mundo, criar seus próprios valores e sentidos autênticos para a existência. Para ele, a vontade é potência.

Emil Cioran (1911-1995)

Para Emil Cioran, contudo, a angústia surge da consciência do que significa “querer” e da dupla impossibilidade tanto de afirmar como de negar a vontade. Todos os males do mundo são causados por suas pretensões universais, diz o pensador, e embora o mais sensato seja negá-la, isto não é possível. Em sua obra História e Utopia, temos uma descrição da História como algo sintomático: um desenvolvimento que se dá, segundo o autor, sem nenhum motivo; um movimento em direção a nada. As utopias, por sua vez, são a expressão por excelência do caráter da vontade, sendo elas uma instância última da história que se pretende, sem perspectiva de êxito, alcançar.

Querer, no sentido pleno da palavra, é ignorar que se quer, é se recusar a deter-se no fenômeno da vontade. [2]

A sociedade que se ambiciona por meio das utopias deriva, de certa forma, da nostalgia de um estado semelhante ao descrito pela “idade de ouro” da mitologia grega ou pelo Éden do cristianismo; estado este que sequer conhecemos de fato e que representa uma época em que o homem ignorava sua temporalidade e, por isso, não sofria: vivia em um estado de eterno presente.

Assim como acontece nos atos individuais, as ambições da sociedade, expressas de forma mais notória nas utopias, dirigem-se a um estado inalcançável de felicidade que existe, sobretudo, como ideia. Desta forma, a inexistência deste objetivo último em uma sociedade condenaria sua própria existência enquanto tal, assim como um indivíduo sem vontade condena-se a si mesmo à estagnação, a uma existência cadavérica.

“Tudo o que vive se aprecia”, disse Cioran em Breviário de Decomposição. Tudo o que vive, por reafirmar sua existência diariamente, expressa, em cada ação, uma grande dose de amor próprio. Do mesmo modo, toda ação exige uma grande fé em suas proporções. ”Arriscaríamos o menor projeto sem a convicção íntima de que o absoluto depende de nós, de nossas ideias e de nossos atos, e de que podemos assegurar seu triunfo em um prazo bastante breve?”[1] Pois esta é a ambição dos revolucionários: alcançar essa etapa histórica última. O que acontece na esfera de nossas atividades diárias dá-se também na esfera da História. Neste sentido, uma revolução é uma expressão da vontade tanto quanto um gole de café.

O elixir da vida e a cidade ideal procedem de um mesmo vício do espírito, ou de uma mesma esperança.[3]

O vício da reforma é, na verdade, o vício da expansão do indivíduo sobre a realidade, seu momento de legislador ou de tirano. Além disso, o que almejam as utopias acaba por ser uma “sociedade de marionetes”. Em sua leitura dos autores utópicos (menciona Thomas Morus, Cabet, Owen, Fourier e Morris), Cioran percebe neles certa ingenuidade e o que ele chama de “ausência de instinto psicológico”, pois os homens nelas descritos desviam-se drasticamente dos homens verdadeiros: desinteressados, prontos para o sacrifício e para esquecer-se de si.

Capa de uma edição da obra “Utopia” (1516), escrita por Thomas Morus.

Ironizando a pretensão das utopias, o pensador chega inclusive a sugerir que a sociedade ideal, aquela em que os homens não prejudicassem uns aos outros, seria uma sociedade de abúlicos (pessoas desprovidas de vontade). Trata-se de uma expressa e proposital contradição, uma vez que, como já foi dito, a vontade é constituinte de tudo o que vive, inclusive do homem, não sendo possível aboli-la. Sobretudo o homem não suportaria o tédio de uma sociedade perfeita, supondo esta ter sido alcançada: é o próprio medo deste tédio que o faz agitar-se, inventar e reinventar a História.

A história não seria, em última instância, o resultado de nosso medo do tédio, desse medo que sempre nos fará amar o sabor e a novidade do desastre, e preferir qualquer desgraça à estagnação? A obsessão pelo inédito é o princípio destruidor de nossa salvação.[4]

Qual, então, é a nossa alternativa, fadados a um paraíso que nunca existiu e nunca existirá? Em um vislumbre de esperança raro em sua obra, Cioran, no desfecho de História e Utopia, nos faz entrever que é na própria impossibilidade de nos livrarmos do desejo deste paraíso, responsável por todas as nossas ações e sofrimentos, que podemos descobri-la. Tentarmos, “no princípio intemporal de nossa natureza”, escapar ao tempo. Desta forma, sobrepomo-nos mesmo à história: esta negação da identidade que, por meio dela, procuramos.


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Referências

[1] CIORAN, E. História e Utopia. Tradução: José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. Voltar ao texto.

[2] Idem.

[3] Idem.

[4] Idem.

2 Comentários

  1. Muito obrigado pelo texto, este e outros que li de você sobre esse cara. Pelo que estou achando, ele está derrubando Schopenhauer e Nietzsche, algo que eu achava que seria impossível, ficando sempre o dilema Vontade louca versus Vontade de Potência. A lógica do Cioran no momento me parece imbatível. Não se trata de uma solução simpática mas me parece bem verdadeira. Resta ler os livros. Que descoberta.

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