A formação das estratégias – Arqueologia do Saber

Última refutação de Foucault sobre os analistas do discurso de sua época. É possível encontrar a unidade do discurso a partir dos temas e das teorias? Veja aqui!

Da série “A Arqueologia do Saber“.

foucault-with-idea-1Além de analisar o discurso a partir dos objetos, das modalidades enunciativas e dos conceitos, Michel Foucault também se concentra na formação das estratégias.

Esta é a penúltima seção do capítulo As Regularidades Discursivas, em que Foucault se debruça sobre a possibilidade de definir a unidade discurso a partir dos temas que nele são formados.

É a sua última refutação às pretensões das análises discursivas de sua época, ao mesmo tempo, é a reafirmação da arqueologia como procedimento realmente fiel à irredutibilidade do discurso.

Foucault entende que a própria constituição de um discurso a partir de seus vários conceitos, objetos e modos de enunciação produz um certa coerência que forma, segundo seu grau, temas ou teorias.

O próprio autor dá como exemplo a formação do tema da linguagem originária, na gramática do século XVIII; da teoria do parentesco entre as línguas indo-europeias, criada na filologia do século XIX; do tema, no século XVIII, da evolução contínua das espécies ao longo do tempo ou; da teoria dos fisiocratas, de uma circulação de riquezas a partir da produção agrícola.

Analisar os temas e as teorias (todas definidas sob o manto das escolhas estratégicas) não é algo fácil, já que não é possível começar a pesquisa arqueológica com um modelo fechado, já pronto. Sempre é necessário investigar os discursos segundo suas próprias peculiaridades. Por isso, Foucault enumera algumas direções de pesquisa necessárias para chegar à formação das escolhas estratégicas:

A) Determinar os pontos de difração possíveis no discurso. O que são esses pontos de difração? Eles se caracterizam como[1]:

1) Pontos de incompatibilidade, “dois objetos ou dois tipos de enunciação, ou dois conceitos, podem aparecer na mesma formação discursiva, sem poderem entrar […] em uma única e mesma série de enunciados”, explica Foucault.

2) Pontos de equivalência, quando dois elementos incompatíveis, mas que nasceram sob as mesmas regras, com condições de aparecimento idênticas, “em vez de constituírem uma pura e simples falta de coerência formam um alternativa”, diz o autor.

3) Pontos de ligação de uma sistematização, em meios a essas incompatibilidades e equivalências, abre-se um leque de formas coerentes de objetos, modos enunciativos e conceitos que se formam justamente por conta de tais presenças. Desta forma, as equivalências e incompatibilidades dão possibilidades de soluções diversas para o mesmo problema dentro do discurso.

B) É interessante que nem todos os jogos de enunciados possíveis são de fato praticados[2]. É por isso que é necessário observar quais são as instâncias de decisão, em que os jogos praticados são assim outorgados, para isso, precisa-se definir “em primeiro lugar, o papel desempenhado pelo discurso estudado em relação aos que lhe são contemporâneos e vizinhos. É preciso, pois, estudar a economia da constelação discursiva à qual ele pertence. Este discurso pode desempenhar, na verdade, o papel de um sistema formal de que outros discursos seriam as aplicações em campos semânticos diversos”, explica o autor. Os discursos também podem se opor, como no caso da história natural e da gramática, em que há a oposição de uma “teoria dos caracteres naturais e a teoria dos signos de convenção”. Por fim, pode-se perceber relações de delimitação entre os discursos, que se distinguem em seus métodos, seus instrumentos ou domínio de aplicação. Se trata sempre de um jogo de inclusão ou exclusão de enunciados do interior de um dado discurso. Então, por exemplo, pode-se encontrar um objeto em que as regras de formação não explicam a sua ausência do discurso, mas a análise das relações do discurso com seus vizinhos pode explicar perfeitamente, já que se trata de uma análise maior, de um nível elevado.

C) Análise das práticas não discursivas, já que o discurso pode exercer funções fora do campo estritamente discursivo[3]. Sendo assim, Foucault assinala que a instância que decide as escolhas estratégicas e que se situa em relação às práticas não discursivas compreende os regimes de apropriação do discurso, ou seja, a propriedade do discurso: quem fala, porque se fala, quem tem esse direito (e como esse direito se dá) e como se organiza todo o acesso ao corpus de enunciados já prontos. Também se observa, neste ponto, as posições possíveis do desejo em relação ao discurso. Mas aqui, o desejo não é somente produto de uma fantasia, como o desejo abstrato de dinheiro que o discurso da análise da riqueza poderia fazer emergir, mas é toda possibilidade de satisfação derivada, um elemento de simbolização, ou até a forma do proibido. Mas ainda aqui, todas as posições são relacionadas às regras de formação do discurso.

Mas nunca fora do discurso

O pesquisador só conseguirá individualizar uma formação discursiva após definir o sistema de formação das diferentes estratégias. Sendo assim, a análise das riquezas nos séculos XVII e XVIII, só pode ser individualizada a partir do sistema que gerou, ao mesmo tempo, “o mercantilismo de Colbert e o “neomercantilismo” de Cantillon; a estratégia de Law e a de Paris-Duverney; a opção fisiocrática e a opção utilitarista”[4], diz Foucault.

O autor termina com,

Esse sistema será definido se se puder descrever como os pontos de difração do discurso econômico derivam uns dos outros, se comandam e se pressupõem (como de uma decisão a propósito dos preços); como as escolhas efetuadas dependem da constelação geral em que figura o discurso econômico derivam uns dos outros, se comandam e se pressupõem (como de uma decisão a propósito do conceito de valor deriva um ponto de escolha a propósito dos preços); como as escolhas efetuadas dependem da constelação geral em que figura o discurso econômico (a escolha em favor da moeda-signo está ligada ao lugar ocupado pela análise das riquezas, ao lado da teoria da linguagem, da análise das representações, das mathesis e da ciência da ordem); como essas escolhas estão ligadas à função exercida pelo discurso econômico na prática do capitalismo nascente, ao processo de apropriação de que é objeto por parte da burguesia, ao papel que pode desempenhar na realização dos interesses e dos desejos. O discurso econômico, na época clássica, define-se por uma certa maneira constante de relacionar possibilidades de sistematização interiores a um discurso, outros discursos que lhe são exteriores e todo um campo, não discursivo, de práticas, de apropriação, de interesses e de desejos.[5]

As escolhas estratégicas, portanto, não são escolhas tomadas fundamentalmente antes do discurso, não são visões de mundo ou instrumentalizações hipócritas do discurso, feitas por diferentes grupos em conflito. Também não são discursos em germe, que mais tarde se desenvolverão para um discurso ideal. O discurso não é um ideal degradado pela prática, não existe progresso no discurso.

Os interesses das classes não define a escolha estratégica, já que não é o puro interesse de um grupo (que não sofreria as consequências do discurso) sobre outro (que, por sua vez, seria a grande vítima), que constitui o discurso. Os interesses dos diferentes grupos são possibilitados a partir do discurso e nele se desenvolvem e criam materialidade. As escolhas estratégicas, portanto, são “maneiras sistematicamente diferentes de tratar objetos de discurso […] maneiras reguladas (e descritíveis como tais) de utilizar possibilidades de discursos”[6], escreve Foucault.

Desta forma, as escolhas estratégicas precisam ser olhadas como possibilidades dentro do discurso, não tanto como instrumentos conscientes ou inconscientes dos diferentes sujeitos. Na verdade, essas possibilidades fazem parte da própria constituição do sujeito e de seu posicionamento em relação ao discurso.

A formação das escolhas estratégicas, por fim, não precisa ser relacionada nem a um projeto ideal de discurso, que seria concretizado num tempo longínquo, nem a uma esfera de opiniões, em que os diferentes sujeitos emitem pareceres superficiais sobre uma polêmica da época.

Elas se dão a partir das regras encontradas depois do uso dos direcionamentos de pesquisa descritos acima. E sua formação se define pelas regras que as constituem, pela regularidade da dispersão das diferentes estratégias, da emergência de novas estratégias ou da exclusão de escolhas nunca vistas na prática discursiva.

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. A formação das estratégias IN: A Arqueologia do Saber. 8ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p.78.

[2] FOUCAULT, Michel. A formação das estratégias… p.79.

[3] FOUCAULT, Michel. A formação das estratégias… p.80.

[4] FOUCAULT, Michel. A formação das estratégias… p.81.

[5] FOUCAULT, Michel. A formação das estratégias… p.81.

[6] FOUCAULT, Michel. A formação das estratégias… p.82.

3 Comentários

  1. Em a formação das estratégia – arqueologia do saber, M. Foucault estabelece uma relação dialógica entre o enunciante e o enunciado, provocando uma tensão entre as estruturas discursivas e as estruturas epistêmicas. Essa tensão exerce um papel importante na ressignificação dos discursos e ou das teorias a ele subjacentes.

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