Por uma revalorização da percepção – Merleau-Ponty e Godard

“O que aprendemos de fato ao considerar o mundo da percepção? Aprendemos que nesse mundo é impossível separar as coisas de sua maneira de aparecer.”

“O que aprendemos de fato ao considerar o mundo da percepção? Aprendemos que nesse mundo é impossível separar as coisas de sua maneira de aparecer.” (1)

O final do século XIX, mas principalmente todo o desenvolver do séc. XX foram períodos de contestação e revolução nos âmbitos político, moral, filosófico e estético. Dentre as mudanças ocorridas neste período, o fenomenólogo e existencialista francês Maurice Merleau-Ponty destaca, em sua obra Conversas (1948), a diminuição da supervalorização do conhecimento científico como sendo conhecimento absoluto e o único legítimo, assim como uma revalorização da percepção, da experiência sensível, que muito influenciou tanto a filosofia como a arte.

Maurice Merleau-Ponty (1908-1961)

Seu entendimento de que não apenas o conhecimento científico merece validade, mas também aquele percebido por nossos sentidos, fundamenta-se, sobretudo, na observação de que ambos estarão sempre impregnados de características humanas, pois nossa experiência no mundo nunca é a experiência de um observador externo a ele, de algum tipo de espírito puro e absoluto, mas sim a de seres com um espírito que existe conjuntamente a um corpo.

“Entre nós e as coisas estabelecem-se, não mais puras relações entre um pensamento dominador e um objeto ou um espaço completamente expostos a esse pensamento, mas a relação ambígua de um ser encarnado e limitado com um mundo enigmático que ele entrevê, que ele nem mesmo para de frequentar, mas sempre por meio de perspectivas que lhe escondem tanto quanto lhe revelam, por meio do aspecto humano que qualquer coisa adquire perante o olhar humano.” (2)

Não existe ser, da maneira que pretende a ontologia, a não ser por suas qualidades sensíveis e percebidas. As qualidades sensíveis são indissociáveis do ser; é sua associação simultânea que confere ao ser uma existência, e o percebemos na medida em que ele tem alguma significação para nós. Neste sentido, sendo as experiências multiformes, também serão múltiplas as formas de perceber o mundo, o que, por sua vez, não significa um tipo de relativismo em relação ao conhecimento. Para Merleau-Ponty há um mundo objetivo que é apreendido, contudo, por perspectivas diversas, cuja soma é também uma forma de conhecimento.

“A unidade da coisa não se encontra por trás de cada uma de suas qualidades: ela é reafirmada por cada uma delas, cada uma delas é a coisa inteira.” (3)

Arte clássica e arte moderna

No que diz respeito à pintura, o filósofo nota que a pintura clássica, em geral caracterizada pelo esforço de fidelidade máxima ao objeto retratado, assim como pelo uso da perspectiva, é enfim a submissão de visões livres, que contemplassem as particularidades da percepção do pintor, a uma visão analítica, afastando-se assim da experiência perceptiva que será valorizada por muitos pintores a partir de Cézanne.

“[As pinturas da arte clássica] estão longe, o espectador não está compreendido nelas, elas são afáveis, e o olhar desliza com facilidade sobre uma paisagem sem asperezas que nada opõe à sua facilidade soberana. Porém, não é assim que o mundo se apresenta a nós no contato com ele que nos é fornecido pela percepção.” (4)

Se acreditamos ter uma grande intimidade com nossa capacidade perceptiva, temos essa crença confrontada no momento em que uma obra de arte, como um filme, um poema ou uma pintura exige de nós que a exploremos a partir de outros ângulos que não o cotidiano, o da mera representação pragmática, do qual faz uso, na maioria das vezes, a fotografia e a palavra.

“Perceber”, sendo diferente de “definir”, requer que levemos em conta o modo singular através do qual as coisas se-lhe-nos apresentam, ou seja, suas particularidades em detrimento de um “universal”. A arte moderna não tem seus objetos retratados como eles são conhecidos. Nela, a percepção, com suas particularidades, busca efetivar-se livremente. E se queremos reaprender a ver o mundo através da percepção, precisamos restituir às artes seu devido prestígio, apreciando-as em sua manifestação e não em comparação com o mundo “real” (cuja objetividade nós sequer podemos apreender por inteira) e considerando que seu objetivo não é o de meramente representar a realidade, mas sim criar uma nova significação para o que se retrata.

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“O acrobata”, Pablo Picasso

Uma obra de arte é, assim, uma “totalidade tangível na qual a significação não é livre, por assim dizer, mas ligada, escrava de todos os signos, de todos os detalhes que a manifestam para mim, de maneira que, tal como a coisa percebida, a obra de arte é vista ou ouvida, e nenhuma análise ulterior, por mais preciosa que possa ser posteriormente e para fazer o inventário dessa experiência perceptiva e direta que tive com relação a ela.” (5)

Cinema, percepção e “Alphaville”, de Jean-Luc Godard

Quando Conversas foi escrito, ou melhor, enunciado, uma vez que a obra é resultado de algumas conferências feitas por Merleau-Ponty, o cinema ainda tinha muito por explorar e trilhar, mas o filósofo estende sua análise também a esta arte que, segundo ele, tampouco deve ser percebida apenas em sua mensagem, em sua fotografia ou, talvez, em sua trilha sonora, mas sim na composição e na singularidade destes componentes em cada filme.

O cinema parece ser um âmbito muito significativo para este tipo de análise, já que une a palavra, o som e a imagem em seu escopo, e deve necessariamente ser considerado em seu conjunto percebível.

“Porque, finalmente, o que poderia constituir a beleza cinematográfica não é nem a história em si, que a prosa contaria muito bem, nem, por uma razão muito maior, as ideias que ela pode sugerir (…). O que conta é a escolha dos episódios representados e, em cada um deles, a escolha das cenas que figurarão no filme, a extensão dada respectivamente a cada um desses elementos, a ordem na qual se escolhe apresentá-los, o som ou as palavras com as quais se quer ou não associá-los, tudo isso constituindo um certo ritmo cinematográfico global.” (6)

E não parece ser precisamente isso o que Jean-Luc Godard propõe na construção – muitas vezes enigmáticas – de seus filmes? Cenas fragmentadas, personagens apaixonados e que agem frequentemente em função de suas paixões, ângulos de câmera incomuns em que, durante um diálogo, apenas um personagem é filmado (possivelmente até mesmo de costas), etc. Podemos dizer que os filmes de Godard exploram as diversas possibilidades perceptivas e, com isso, vão de acordo com o que é proposto pela arte moderna, exposta por Merleau-Ponty.

Dentre outros exemplos no cinema e, é claro, na literatura, o filme Alphaville (1965), de Godard, traz à tela uma sociedade futurística regida por princípios exclusivamente racionais e lógicos, cujos habitantes desconhecem o amor e a poesia, e trata objetivamente da perseguição da técnica e do cientificismo em detrimento da percepção. Nesta sociedade, regida por Alpha 60, um computador inteligente, o ideal que se busca é o puro avanço técnico. “As pessoas se tonaram escravas da probabilidade”, diz um dos personagens.

26530Um agente secreto vindo dos “países exteriores”, disfarçando-se de jornalista, busca convencer o professor criador do computador a destruí-lo, tendo como alternativa seu assassinato. Como em 1984, de George Orwell, em Alphaville as palavras de “potencial perigoso” são proibidas e excluídas do dicionário, e pessoas são condenadas à morte por agirem ilogicamente. Mas o computador regente deixa entrever que sua supremacia deve-se menos a uma tirania própria do que a um resultado lógico da conduta dos homens, visto que uma conclusão lógica é tida como um imperativo.

Se à percepção cabe um olhar que contemple as coisas em seu conjunto, assim como um olhar que considere seu modo de aparecer como indissociável de seu modo de ser, uma sociedade que se assemelhe de alguma forma à Alphaville está condenada a perdê-la. “Uma palavra isolada, ou um detalhe isolado de um desenho, podem ser compreendidos, mas o significado do todo escapa-nos”, diz o computador Alpha 60.

Para que não corramos este risco, o melhor é que não aceitemos simplesmente que “a relação da percepção com a ciência é a mesma da aparência com a realidade” (7), como o é para Descartes, mas sim que nos lembremos de que somos seres cuja constituição se dá a partir de nossa relação com o mundo; com tudo e todos que do mundo fazem parte, e sempre como um elemento dele integrante, e não a ele exterior. Além disso, podemos questionar, por fim, se o conhecimento científico, que não deve ser desprezado, é por si só suficiente para que tenhamos uma existência completa, ou mais próxima de suprir todas nossas necessidades.

“O que transforma a noite em luz?”, interroga o computador ao suposto jornalista, que responde: “a poesia”.

Cena do filme “Alphaville”

Referências

(1) MERLEAU-PONTY, M., Conversas, São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 56
(2) Ibidem, p. 30
(3) Ibidem, p.22
(4) Ibidem, p.13
(5) Ibidem, p.67
(6) Ibidem, p. 61
(7) Ibidem, p.5

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