Local de fala ou, qual é a essência da verdade?

Como funciona o conceito de local de fala dentro da internet? O local de fala não é muito mais que um dispositivo de exclusão e inclusão. Entenda aqui o por quê.

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Ilustração: Pawel Kuczynski.

Neste texto, abordarei o conceito de local de fala, seu uso epistemológico e seu uso político.

No fim do texto, você poderá ver outros artigos sobre o assunto e entender o contexto das críticas aqui presentes.

Começando: o que é local de fala, segundo a militância tipicamente da internet (que eu chamo de militância dementadora)?

Política Vs Epistemologia

Eu vou falar sobre duas variações do conceito de local de fala. Classifico uma como parte do discurso político e a outra como parte do discurso da militância dementadora. Ambas tem algo em comum.

As duas consideram que um assunto em específico deve ser tratado pelo grupo que mais está ligado a ele, por exemplo: a luta feminista deve ser tratada por mulheres, assim como a luta do movimento negro deve ser tratada por negros. A diferença de ambos, pelo que eu observo, está no próprio fundamento do termo. O que quero dizer com isso?

Segundo a versão política do conceito de local de fala, seria politicamente estratégico que os sujeitos que estão diretamente relacionados com uma luta sejam seus porta-vozes principais.

É fortalecedor e politicamente eficiente que os movimentos negros, por exemplo, sejam liderados e conduzidos por negros. Você percebeu qual é o ponto principal? Se trata de uma posição política e você pode vê-la aqui (Imprensa Feminista), por exemplo.

Como a militância dementadora lida com o local de fala? De maneira epistemológica. Estar no local de fala é ter a verdade. A verdade eclode do local de fala, é no local de fala em que ela está latente, esperando o sujeito correto retirá-la de seu refúgio.

Se, de um lado, estamos falando sobre estratégia política, do outro lado, estamos falando sobre epistemologia. Existe, portanto, uma diferença incrível entre os dois discursos.

Qual é esta diferença?

Eles não estão no mesmo local (ironias à parte). Eles falam sobre coisas diferentes e, apesar de falarem sobre o mesmo objeto concreto (que são as lideranças, protagonismo e as rotas dos movimentos sociais), falam sobre objetos do conhecimento completamente diferentes.

Organização política Vs Grupo de apoio

A grande vantagem em se organizar politicamente é conseguir agir dentro e fora da institucionalidade. Partidos políticos e movimentos sociais sabem disso. Todo mundo sabe disso.

É por isso que, ao mesmo tempo em que tentam eleger vereadores ou deputados para modificar leis e favorecer os grupos socialmente excluídos, também criam espaços para aprendizado político e promovem intervenções políticas em eventos específicos (como atos ou protestos).

Política é feita de contato, de conflito e de dissonância. Não existe samba de uma nota só na política.

As organizações políticas têm uma estratégia de ligação, de calor corporal, de aproximação: elas precisam conquistar consciências, precisam aumentar seu poder de influência e precisam criar espaços de resistência.

É por isso que o conceito de local de fala é algo do campo político: ele serve para – a partir de luta, de conflito, portanto, de política – abrir espaços para grupos que não têm esses espaços. A verdade é sempre prática, não é algo que vem de uma essência do sujeito.

Os grupos de apoio trabalham de outra maneira.

É próprio do grupo de apoio focar suas ações no fortalecimento do indivíduo, no aumento da ligação entre os participantes do grupo e – se tratando dos grupos de apoio da militância dementadora – afastar aqueles que não são essencialmente parte do todo.

A palavra essência define muita coisa.

Ser do grupo é ter uma marca de origem: a cor da pele, a genitália, a sexualidade. É sempre algo que pode ser visto ou expressado. Você passa a ter cartão VIP de entrada quando consegue mostrar que você é de dentro, que tem o passaporte correto.

De um jeito mais profundo: somente se você compartilha desta essência particular você pode ser possuidor da verdade. Pior ainda, como eu já disse no artigo sobre a militância dementadora, a verdade é aquilo que foi vivido coletivamente pelo grupo, mas que você precisa destacar dentro de sua vivência pessoal.

Ou seja, sua vida particular precisa estar de acordo com uma vivência coletiva, pois só dentro da vivência coletiva a sua vida particular ganha espaço legítimo dentro da narrativa coletiva específica dos grupos de apoio.

Esses grupos trabalham tanto com a empatia por conta disso: quando você não participa integralmente da história coletiva, da vivência do grupo, só lhe resta ter empatia por aqueles que participam e chorar pelo sofrimento que passam, incorporando essas mazelas para si.

É por isso que esses grupos gastam tantas calorias em classificar, ordenar e discutir as opressões. O ponto principal da militância dementadora é coletivizar o sofrimento e, ao mesmo tempo, fazer aqueles que não sofreram terem vergonha de serem não-sofredores.

É claro que um não-sofredor não existe por definição, por que sofrimento é uma sensação subjetiva que responde a um estímulo externo. Não é objetivo (mas a exploração do trabalho é objetiva, viu?).

No entanto, sofrimento é uma categoria perfeita para entender o objeto principal da militância dementadora. Ela não se preocupa com relações de poder ou exploração do trabalho, mas sim (diretamente) com o sofrimento e com a empatia.

E o conceito de apropriação cultural tem relação a isso, já que ele torna o consumo de objetos identitários do grupo específico um consumo exclusivo.

Uma exclusividade que funciona como revolução, porque inverte a relação do oprimido com o opressor num ponto específico da vida, que é a vida virtual. É ali que os grupos de apoio proíbem o uso de turbantes.

Desta forma, a revolução da internet é mediada pelo consumo.

Local de fala como dispositivo de exclusão e inclusão

O nome desta seção é meio estranho. O conceito de local de fala que estou falando longamente é aquele que emerge da internet. Desta forma, todo local de fala é da internet, mesmo quando a internet extrapola os monitores e vai pros DCE’s.

Eu afirmo que existe uma especificidade nesta ideologia particular da internet. Existe um jeito próprio de formular problemas e de criar objetos do conhecimento.

O local de fala, sendo assim, é um operador lógico que permite a entrada ou saída do sujeito de dentro do circuito da palavra, dos fluxos de enunciados e, por último, da definição da verdade.

Mas não podemos ser inocentes. O que mais se vê são pessoas que discordam da vivência coletiva e são ignoradas, são consideradas como “mais um com sua vivência”. Isso não é difícil de ver.

O local de fala não é somente um lugar em que as pessoas que têm a mesma essência podem trocar experiências sobre o mundo, mas, como já disse acima, é necessário que haja sincronia entre a vivência individual e a coletiva.

Disso se conclui que o local de fala é um dispositivo de coerção e homogeneização. O local de fala, da maneira como é utilizado pela militância dementadora, é o que separar “nós” e “eles”. “Eles” podem ser quaisquer pessoas, desde que não sejam parte da vivência coletiva do grupo de apoio.

E é aqui que você vai me entender:

Justamente por ser um grupo de apoio, não é aceitável haver pessoas que não fortaleçam o núcleo central.

O local de fala não é um espaço vazio, é um movimento positivo de seleção, inclusão e exclusão.

Ao mesmo tempo, é um conceito suplementar ao da apropriação cultural, já que limita uma pauta (inclusive sua discussão) aos portadores da verdade, que são aqueles que pertencem ao local de fala.

Algo fora disso seria um tipo de apropriação.

Local de fala no Facebook

Este intertítulo não faz muito sentido, afinal, o local de fala que estou tratando é substancialmente dos grupos de Facebook. Mas o que vou falar é justamente da maneria como ele é exigido nos grupos de Facebook.

De certa forma, isso não é importante, mas é interessante entender como o local de fala age positivamente na realidade virtual.

O local de fala é sempre pedido! É sempre evidenciado: serve como castração do não-sofredor que não tem vergonha de não sofrer. Mas a parte mais interessante vem agora.

Dentro do Facebook não há barreiras físicas. O local de fala só pode se concretizar, então, com a aceitação do grupo intrometido em não entrar em assunto que não é seu. Em outras palavras, o gosto amargo do local de fala vem através do favor que os opressores fazem aos oprimidos em não adentrar em seus locais de fala.

O local de fala, no Facebook, é só um favor. Não é política, é sentimento.

Quem, em sã consciência, vai pedir que o opressor faça o favor de não adentrar em seu espaço? Só na internet, em que ser militante é um estilo de consumo, um jeito de lidar com o corpo; em que a militância é uma forma de transformar a si próprio em uma pessoa cool.

Como o sofrimento é a pedra angular da militância da internet, o local de fala é respeitado pelos não sofredores que morrem de vergonha de não sofrerem (segundo as definições de sofrimento da militância dementadora).

Isso é tão verdade que eu proponho um desafio. Vá até a padaria e, na fila do pão, puxe assunto sobre qualquer coisa com alguém considerado privilegiado. Depois, quando a pessoa for abrir a boca para dar sua opinião, experimente pedir local de fala.

O que vai acontecer?

Nada.

O que isso evidencia?

Que local de fala é um pedaço da ideologia específica da internet. E que, quando sai da internet, só sai do espaço da internet, mas ainda mantém as mesmas regras. É como nas universidades, locais óbvios que essa militância vai parar após terminarem o Ensino Médio, onde esta ideologia entra de pouco em pouco: as regras permanecem, mas agora no cara-a-cara.

Realmente, vivemos tempos interessantes.

***

Leitura obrigatória

Para quem quiser entender passo-a-passo sobre o que eu estou falando, primeiro veja minha opinião sobre a militância da internet, a qual cunhei o termo “militância dementadora”, clique aqui;

Para entender minha opinião sobre o conceito de apropriação cultural, clique aqui.

Agora, se você quer entender quais são os problemas do conceito de desconstrução na militância virtual, clique aqui.

7 Comentários

  1. Olá, estou preparando um projeto para escrever mais sobre essa questão de lugar de fala e vivência e gostaria de saber se tem algum livro ou artigo acadêmico com uma referência mais concreta sobre essas questões.

    Abraço

    1. Me parece importante o que o Foucault diz sobre a ‘Vontade de Verdade’, isto está nas conferencias que ele fez no Brasil publicado em um livro que se chama ‘a verdade e as formas jurídicas’.

  2. Gostaria de problematizar esta afirmação: “As duas consideram que um assunto em específico deve ser tratado pelo grupo que mais está ligado a ele, por exemplo: a luta feminista deve ser tratada por mulheres, assim como a luta do movimento negro deve ser tratada por negros.”

    Sugiro que vc substitua “deve ser tratado” por “deve ser protagonizado durante debates pelo”.

    Assim, a frase ficaria: “As duas consideram que um assunto em específico deve ser deve ser protagonizado pelo grupo que mais está ligado a ele, por exemplo: a luta feminista deve ser tratada por mulheres, assim como a luta do movimento negro deve ser tratada por negros.”

    Percebeu a diferença?

    Quando vc troca “tratado” por “protagonizado”, vc retira o peso da exclusividade que não deveria estar implicado no conceito de local de fala. Abraços.

    1. Não, Rodrigo.

      Isso que vc pontua é somente uma diferença de léxico. O significado do termo em sua prática ainda será o de “tratar” não o de “protagonizar”.

      Claro, levando em conta que eu estou falando de uma faceta específica da internet, desta ideologia.

  3. Apesar de parecer dedutível do seu texto eu acho melhor perguntar mesmo: Quando o local de fala na internet tem esse propósito de tentar calar os “intrometidos em assuntos que não são seus”, você acredita que a militância esteja criando um clima de unanimidade ao rejeitar as opiniões divergentes, e que isso pode colaborar fortemente com autoritarismo?

    1. Não sou o autor mas diria que com a mais absoluta certeza, e que para esse caminho que tendem esses conceitos que monopolizam a verdade a fala e a ação política, e que assumem por exemplo que se você é homem branco e cis não têm o direito nem de argumentar ou ser ouvido pois essencialmente seu discurso será opressor.

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