Tempos difíceis

A miséria nos Estados Unidos é alarmante. Como diz Žižek, vivemos tempos em que a ficção é mais realidade do que a própria realidade. Clique aqui e veja.

Por Átila Da Rold Roesler[1] em colaboração com o Colunas Tortas.

Começo esse singelo texto com uma confissão: admito que tenho tentado me omitir ao que acontece “lá fora”, me esforçado para não assistir ao noticiário, procurado me concentrar apenas no trabalho (enxugando gelo!), alguma atividade física (o mínimo possível!), música (Bowie morreu…), arte (aliás, gibi é arte?), esportes (Gauchão 2016 vem aí!). Eu confesso. Mea culpa. My bad.

Sou persistente, mas não consigo mais. Parece impossível deixar de se indignar com os tempos difíceis que estamos atravessando. Estou convicto que nos encontramos numa espécie de pântano, atolados até a alma, do qual não temos como escapar. Mas quando falo que “estamos” nessa situação, não me refiro somente ao Brasil de hoje e, sim, à aldeia global, ou seja, à humanidade. Somos todos da mesma espécie, eu acho. Crise política, crise econômica, crise humanitária, crise ambiental… Aliás, o que me lembra a letra da música da Legião Urbana: “Nas favelas e no senado / Sujeira prá todo lado / Ninguém respeita / A constituição / Mas todos acreditam / No futuro da nação” (Que país é este?). Não há o que não haja.

Os problemas da sociedade brasileira não são muito diferentes dos demais países, inclusive, daqueles chamados de “primeiro mundo”. A grave desigualdade social atinge até mesmo o grande Império norte-americano, cujo modelo é constantemente citado como exemplo a ser seguido e que serve de inspiração para muitos. Só que não[2]. O país mais rico do mundo tem “acampamentos de miséria” cada vez mais numerosos desde a crise econômica de 2008[3]. O elevado número de sem-teto em Los Angeles, lugar dos sonhos improváveis, fez a cidade declarar “estado de emergência” em razão da invasão de acampamentos de moradores de rua[4].

A Big Apple, famosa pelos musicais da Broadway e suas grandes lojas de departamento, atingiu o recorde histórico de moradores de rua, cerca de 60 mil sem-teto, entre eles, 25 mil crianças. Nova York é a cidade com maior índice de desigualdade de renda dos EUA[5]. No velho mundo, a Europa atravessa uma crise econômica e humanitária sem precedentes em que a própria Zona do Euro está ameaçada[6]. Países como Grécia, Portugal e Itália se encontram à beira de uma catástrofe iminente devido às dívidas impagáveis com o Banco Mundial, segundo o FMI[7]. Para piorar: a crise dos refugiados só agrava a situação caótica da economia desses países e abre espaço para a intolerância racial e religiosa.

Número de pessoas sem-teto chega a 60 mil em Nova York, coincidindo com as baixas temperaturas históricas (Foto: BBC)
Número de pessoas sem-teto chega a 60 mil em Nova York, coincidindo com as baixas temperaturas históricas (Foto: BBC)

Diante de tudo que se passa, Löwy tem razão: “a civilização capitalista é um trem suicida rumo ao abismo”[8]. O que me faz lembrar do filme Expresso do Amanhã (2013), do diretor sul-coreano Joon-ho Bong, onde mesmo após o fim da civilização como a conhecemos, a miséria e a desigualdade social continuam a provocar uma sangrenta luta de classes[9]. Na história, cada classe social deve se conformar com o “seu lugar”, porque “é assim que as coisas funcionam” e, afinal, “o trem precisa se  mover”.

Filósofo esloveno, autor de Bem-vindo ao deserto do real, Primeiro como tragédia, depois como farsa, entre outros. Foto: Prospect Magazine.

Como diz Žižek, vivemos tempos em que a ficção é mais realidade do que a própria realidade[10]. O filósofo eslavo cita os movimentos sociais, a irresignação com o sistema, o anarquismo em sua forma mais pura, tudo retratado no filme Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2014), do diretor Christopher Nolan. Mas, ao contrário do que acontece no final do filme do diretor sul-coreano, o sistema recupera o poder e segue em frente em O Cavaleiro das Trevas. Porque o Batman é o Batman, afinal. Mas o que importa é que não podemos continuar fazendo as mesmas coisas, repetindo os mesmos erros e esperar que – por um milagre – tudo melhore. Está esgotado.

A volta da extrema-direita, o ressurgimento do fascismo como conduta coletiva, a agonia da esquerda, a manipulação midiática, enfim, tudo leva a crer que a única saída possível é o aeroporto, ou melhor, uma base de lançamentos de foguetes espaciais porque aeroporto não adianta mais. Ou, então, é preciso urgentemente repensar a democracia e o sistema econômico global no qual estamos inseridos. Uma nova forma de democracia é possível. Aristóteles jamais pensaria numa democracia irresponsável como a que está instalada atualmente. O conceito de democracia para o filósofo grego era outro, mais fragmentado, caótico e lento, mais participativo[11].

É inegável que a democracia precisa melhorar. Uma nova democracia, aberta ao diálogo, comprometida com o povo, onde os representantes eleitos consultem suas bases antes de votar e de decidir o que é melhor para a sociedade se faz imprescindível. Hoje, os movimentos sociais e estudantis fazem um contraponto importantíssimo às mazelas de nossa democracia atual. Por isso é preciso tolerância com todas as manifestações que vêm das ruas, inclusive, com os sem-teto, com os sem-terra, com os sem-nada. Mas vai além disso: uma nova democracia global precisa ser inventada, já que os problemas econômicos e sociais que nos afligem não são locais ou regionais, mas atingem toda a humanidade. E como disse: ainda acho que somos todos humanos. And last but not least, o sistema econômico criado para o consumo desenfreado de bens e produtos precisa ser repensado. Precisamos gastar os recursos das nações com vistas a suprir as necessidades humanas, e não seus desejos.

Referências

[1] O autor é juiz do trabalho na 4ª Região.

[2] Desigualdade nos EUA atinge maior nível no século. O Globo, acessado em 14/01/2015.

[3] País mais rico do mundo, EUA têm ‘acampamentos da miséria’. BBC, acessado em 14/01/2015.

[4] Los Angeles declara estado de emergência após aumento do número de sem-tetos, Estado de São Paulo, acessado em 14/01/2015.

[5] Número de pessoas sem-teto chega a 60 mil em NY. G1, acessado em 14/01/2015.

[6] Chegou a hora para a União Europeia: democratização ou dissolução. Revista Fórum, acessado em 14/01/2015.

[7] Portugal no pódio dos países mais endividados. Economico, do portal Sapo, acessado em 14/01/2015.

[8] Michael Löwy: Civilização capitalista é um trem suicida rumo ao abismo. Revista Fórum, acessado em 14/01/2015.

[9] “Expresso do Amanhã” mostra a luta de classes em um cenário pós-apocalíptico. Grupo Independente, acessado em 14/01/2015.

[10] Žižek, Slavoj. Problemas no paraíso: Do fim da história ao fim do capitalismo. Zahar, 2015.

[11] Aristóteles. Política. Tradução de Mário da Gama Kury. 3ª ed., Brasília, UnB, 1997.

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6 Comentários

    1. Agradeço a opinião, mas tenho a leve impressão de que o significado de anarquia no texto é o mesmo significado do senso comum, não da política. Afinal, o mesmo significante carrega quantos significados a prática lhe der.

  1. A crise é global, portanto não há solução à vista e a democracia existente perdeu completamente seu rumo, assim precisa ser repensada, reinventada, etc. Estas e outras coisas óbvias, tem sido repetido constantemente. Isso prova o dilema em que todos nós estamos metidos, isto é, sabemos que as coisas andam mal mas também não sabemos o que dizer, exatamente, para resolver e nem pra melhorar. Assim, como nos sentimos na obrigação de dizer alguma coisa, de preferência que faça algum eco, então ficamos a dizer coisas ao vento. Eu, particularmente, não acho que isso seja ruim. O autor pegou o que todo mundo está dizendo e fez uma síntese que, se não acrescenta nada serve de alerta para o que precisamos fazer, só que o problema é tão difícil que o máximo que conseguimos dizer é que é necessário e que temos que continuar tentando.Isso é importante.

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