A Obra

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Da série Contos de uma São Paulo Privada

O projeto de um grande complexo de condomínios foi estabelecido no acordo entre seis empreiteiras, antes de ocorrer o leilão. A Repartição colocou a venda o terreno, mas já havia fechado os compradores, antes de anunciar – na verdade fez uma mega venda de títulos podres que teriam seu prejuízo engolido, até o fim da sua posse da Zona de Fragilidade econômica em São Paulo. As seis empresas repassaram o contrato de serviço em ordem decrescente, da com o maior capital, para a que possuía o menor.

Por isso, a obra, que ocupa um antigo e extenso conjunto de prédios comerciais e domiciliares próximo ao Viaduto 9 de julho e a Rua Santo Antonio, estava em um lento processo já fazia seis anos, pois eram quatro partes compostas por vários blocos de condomínios.

As vigas levantadas para os futuros edifícios da parte Oeste, que haviam sido importadas da Croácia, estavam envoltas em mato e envernizadas com a urina dos cachorros que ficavam no entorno, para caçar os ratos. Os únicos contratos abertos eram com os dos vigias noturnos que habitavam essa parte. Sentados em suas guaritas, eles monitoravam as câmeras de infravermelho e os micro drones de segurança. Todos se reuniam para observar, eufóricos, quando um pichador ou morador de rua fugindo da chuva era acertado por um dado carregado com um composto químico que gerava ataques de pânico e imobilização.

Na parte Sul, dois prédios foram levantados e havia uma equipe de 50 pessoas se revezando entre pinturas, instalações elétricas e colocação de azulejos. As obras ficavam paradas por alguns dias,  pois era necessário esperar pela entrega de materiais. Enquanto isso, alguns funcionários haviam organizado um campeonato de truco online que juntou quase o valor de dois meses de salário como prêmio. Mas foi interrompido, porque um grupo de participantes travou os servidores do campeonato tentando trapacear

A área Norte estava sendo ocupada pelos partidos políticos e pelos 75 despedidos da obra, após duas semanas de contrato. As vagas haviam sido abertas há menos de um mês, quando foi confirmado que a primeira leva de materiais seria entregue, mas após a entrega ter sido feita, na realidade, há dois meses para a região Leste e já estar sendo usada, as demissões aconteceram Com as estruturas nuas da parte Oeste, os ocupantes estabeleceram residências nos esqueletos de ferro, com lataria de carros abandonados e plaquetas de madeira. A Recon, empresa de segurança privada que cuida da região, já fez duas incursões, para expulsar os manifestantes; o que apenas resultou na morte de sete pessoas.

No meio das confusões e silêncios das outras áreas, era quase impossível de acreditar como as obras da parte Leste estavam ocorrendo de maneira fluida e sem muitos problemas. Foi a primeira região que começou a realizar as obras e, devido aos materiais em excesso entregues erroneamente, foi possível que o trabalho fosse contínuo. Seis prédios já haviam sido revestidos com massa corrida, e, desses, dois já estavam tendo as instalações elétricas quase concluídas.

A empreiteira encarregada contratou os serviços de um famoso grupo de incentivo ao trabalho, pois essa parte seria usada como modelo nas propagandas publicitárias. O grupo introduziu uma técnica de serviços em trios. As equipes eram formadas no momento das entrevistas online. Quando o candidato ou candidata era admitido já se encaixava com as duas próximas pessoas que haviam passado. No único dia de treinamento, os funcionários eram instruídos nessa dinâmica de trios: pensariam como uma única pessoa e receberiam o valor de apenas um, dividido em três. Caso o grupo fosse bem sucedido em bater as suas metas, ganharia um bônus que deixaria o salário próximo ao de duas pessoas, para ser dividido entre os três.

Para a motivação dos empregados, era passado um vídeo famoso, no qual um grande empresário, vindo de uma rica família formada por um jogador de futebol de algumas décadas passadas, incentivava técnicas de se trabalhar em trios, dando um falso exemplo dos soldados soviéticos na Segundo Guerra Mundial (chamada agora de A Grande Guerra dos 32 anos do século XX ) que eram mandados para o campo de batalha em trios: um com o rifle, outro com apenas a munição e um soldado sem nada, e essa técnica estimulava o trabalho em equipe.

Mas naquele período avançado das obras, muitos já haviam saído. Mesmo pelo preenchimento quase instantâneo das vagas, havia alguns grupos quebrados em dupla ou até mesmo com uma pessoa. Os almoços e jantares eram tirados de cinco em cinco trios, de acordo com a escala. Por causa do modo como as obras estavam seguindo, o horário de almoço foi aumentado para uma hora, sendo permitido usar vinte minutos deles para acessar as redes sociais e aplicativos, norma trabalhista já um pouco antiga, feita para controlar a distração de funcionários.

Esses minutos eram muito bem aproveitados. Os funcionários mexiam no celular, enquanto tiravam os pedaços de espuma do capacete dos cabelos. As suas tigelas de alumínio ainda continham pedaços de suas refeições, distribuídas para todos na obra. Era um misto de carne e gordura artificiais que devia ser consumido a uma certa temperatura, especificamente calculada pelo garfos térmicos que as empresas davam, mas que deviam ser devolvidos depois do expediente, para evitar roubos do alimento. Caso fosse digerido em uma temperatura diferente, tinha uma consistência pastosa e gosto quase intragável. Vinha em blocos embalados a vácuo, que eram entregues  para os funcionários despejarem em suas tigelas.

No fim do expediente, o som da Sirene, mesmo apenas tocada em nas áreas Sul e Leste, ecoava por toda a parte. Acabava causando muitas sensações mistas entre todas aquelas pessoas que ali habitavam as quatro áreas.

O alivio do final de uma jornada cansativa, o cumprimento na troca de postos, encher a ração das bacias dos cachorros, a tristeza de mais um dia desempregado e enganado, ser impotente frente a um cano que cospe fumaça e balas de borrachas, não conseguir passar o sinal da manilha para o parceiro.

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