Raridade, exterioridade, acúmulo – Arqueologia do Saber

O enunciado não é parte de uma riqueza inesgotável. Pelo contrário, ele é raro. Clique aqui e entenda o que é essa raridade estabelecida pela arqueologia do saber de Foucault.

Da série “A Arqueologia do Saber“.

A análise enunciativa leva em conta um efeito de raridade. [1]

foucault-with-idea-1O que é a raridade encontrada a partir da análise enunciativa de Foucault? Se foi necessário aprender como a descrição dos enunciados[2] se relaciona com a análise do discurso, foi justamente para entender que nem tudo é sempre dito.

De certa forma, caso se observe a riqueza do vocabulário e sua gramática correspondente, será fácil perceber que poucas coisas são de fato ditas: a análise enunciativa procura justamente o princípio de rarefação, do não preenchimento, do campo das coisas formuladas possíveis. Isso significa que os enunciados são estudados no limite do não dito, portanto, naquilo que os separa do que não foi dito, naquilo que os faz ser enunciados enquanto todos os outros são excluídos.

Mas não se deve pensar que o estudo da exclusão toma por princípio alguma repressão. É considerado que o enunciado ocupa exatamente seu lugar próprio, desta forma, não há um não dito oculto por detrás do enunciado, que o encobriria (ocupando, sendo assim, um lugar falso sobre o não dito, como uma ideologia). O enunciado é estudado tendo como objetivo entender como ele se isola em relação aos outros enunciados e qual posição específica ele ocupa.

Os enunciados não são uma malha infinita de possibilidades, “mas sim coisas que se transmitem e se conservam, que têm um valor, e das quais procuramos nos apropriar; que repetimos, reproduzimos e transformamos”[3]. E sua raridade é uma demonstração (e causa) desta característica. É por isso que há diversas estratégias de manipulação do enunciado, como o comentário, a tradução e a multiplicação dos significados que ele pode ter em sua prática.

Interpretar é uma maneira de reagir à pobreza enunciativa e de compensá-la pela multiplicação do sentido; uma maneira de falar a partir dela e apesar dela[4].

A análise enunciativa propõe, portanto, ao investigar o enunciado em sua raridade, analisar as relações de poder que ele movimenta e justifica em sua própria existência (não só em sua “aplicação prática”). Por isso que esta análise específica sempre passa pela exterioridade, busca a oposição interior e exterior, busca na descrição histórica uma maneira de adentrar no interior de suas relações.

Para isso, é necessário:

1) Considerar o campo dos enunciados em sua especificidade. Ele não pode ser tido – como fazem os estruturalistas – como a tradução de operações e procedimentos que acontecem no inconsciente (nem que acontecem na consciência e nem mesmo como vestígio de operações que se fazem em outro local);

2) Esquecer o sujeito individual. O campo enunciativo não precisa do sujeito soberano para se constituir, pelo contrário, ele satisfaz sua promessa ao encontrar as diferentes posições que o sujeito pode ocupar em relação aos enunciados;

3) Como consequência do ponto acima, é necessário não colocar o discurso numa temporalidade que remete à consciência. Este não é seu modelo. Não se deve esperar construir uma história das coisas ditas que teria como fundo um esqueleto da história da consciência individual.

Sendo assim, não há um cogito na análise dos enunciados. Não há um “eu digo”, mas há um “diz-se”. Não no sentido do senso comum, do “dizem por aí”, mas sim no sentido da exterioridade do dizer. O que é dito não depende do sujeito consciente que diz, mas sim de um jogo de relações que delimita quem pode dizer algo sem precisar utilizar o sujeito como centro de análise.

A delimitação, portanto, é feita através das relações que formam a posição no discurso. Posição essa que pode ser ocupada por indiferentes sujeitos que tenham características para ocupá-la.

O acúmulo, na análise enunciativa, entra como uma definição de onde se encontram os enunciados. Não estão interiorizados sob a forma da lembrança, mas não estão presos em documentos indiferentes. Na verdade, os enunciados podem ser reativados ao longo do tempo, a partir de um sistema simples entre leitura-traço-decifração-memória. Podem ser retirados de seu sono e incluídos em novas relações.

Cabe à análise dos enunciados descobrir exatamente o que colocou o enunciado numa situação de esquecimento, de sono, o que o desativou.

É necessário ver a análise enunciativa a partir de três características, então:

1) É necessário entender os enunciados em sua remanescência. Quando fala de remanescência, Foucault não diz sobre memória individual ou coletiva, mas do suporte material (e das relações que este suporte movimenta) da existência de um enunciado ao longo do tempo. O livro é um exemplo.

2) Os enunciados têm uma forma de aditividade própria. Isso porque os enunciados matemático, por exemplo, não se amontoam da mesma forma que os enunciados da medicina. São regras diferentes para amontoamento, para adição. As leis que conferem uma certa “harmonia” de grupo para diferentes enunciados não são iguais ao longo do tempo nem entre diferentes saberes.

3) A análise dos enunciado supõe sua recorrência. É necessário entender que recorrência significa não só a atualização do enunciado, mas as condições necessárias para sua atualização, para sua repetição, assim como novas relações que modificam a maneira como o enunciado se distribui ou se organiza.

É tarefa da análise arqueológica,

Descrever um conjunto de enunciados, não como a totalidade fechada e pletórica de uma significação, mas como figura lacunar e retalhada; descrever um conjunto de enunciados, não em referência à interioridade de uma intenção, de um pensamento ou de um sujeito, mas segundo a dispersão de uma exterioridade[5].

Ela não precisa encontrar um ser que funda o enunciado, como uma consciência pensante e ativa, que dá vida às palavras e que acende a existência das coisas, a análise enunciativa pretende,

descrever um conjunto de enunciado para aí reencontrar não o momento ou a marca de origem, mas sim as formas específicas de um acúmulo, não é certamente revelar uma interpretação, descobrir um fundamento, liberar atos constituintes; não é, tampouco, decidir sobre uma racionalidade ou percorrer uma teleologia. É estabelecer o que eu chamaria de bom grado, uma positividade[6].

A análise discursiva, portanto, pretende definir o tipo de positividade de um discurso, ou, em outras palavras,

Analisar uma formação discursiva é, pois, tratar um conjunto de performances verbais, no nível dos enunciados e da forma de positividade[7].

A pesquisa arqueológica não busca origem, mas acúmulos (e, para isso, investiga a história do enunciado), não se foca na totalidade, mas sim na raridade. Ela se preocupa em descrever as relações de exterioridade dos enunciados, não se importa com um certo fundamento transcendental que carregariam.

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. Raridade, exterioridade, acúmulo IN: A Arqueologia do Saber. 8ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p.145.

[2] A Descrição dos Enunciados IN: A Arqueologia do Saber: resenha detalhada. Colunas Tortas, acessado em 04/02/2016.

[3] FOUCAULT, Michel. Raridade, exterioridade, acúmulo… p.147.

[4] FOUCAULT, Michel. Raridade, exterioridade, acúmulo… p.147.

[5] FOUCAULT, Michel. Raridade, exterioridade, acúmulo… p.152-153.

[6] FOUCAULT, Michel. Raridade, exterioridade, acúmulo… p.153.

[7] FOUCAULT, Michel. Raridade, exterioridade, acúmulo… p.153.

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