Em um relacionamento sério com a rua

Capela é um morador de rua que, assim como muitos outros de sua época, relata sua vida na internet.

Da série Contos de uma São Paulo Privada

Quem era Jorge Mirelle Tarcio perante Capela? Apenas nomes em um documento antigo, da época em que ainda se fazia esse tipo de procedimento no papel. Para Capela, esses três signos eram apenas algo que foi chamado um dia. Quando atualizou suas redes sociais, já há alguns anos com sua nova alcunha, junto de uma foto do início de seu relacionamento com Sara, era um sinal da chegada de tempos melhores.

Capela era mais bonito. Apesar de se parecer muito com Capeta, e isso lhe assustava um pouco. Mas como um dono de bar lhe disse uma vez: “Mantenha seus amigos perto e seus inimigos mais perto ainda.”, na ocasião o homem disse não ligar que ele dormisse da calçada ao lado de seu estabelecimento, mas na sua calçada já era um problema.

Chateou-se um pouco, pois achava que o homem era seu amigo, já que o deixava carregar seu celular algumas vezes nas tomadas do seu bar. Ainda, para piorar, lhe disse que a frase em questão era de sua autoria, mas Capela não acreditou, apesar da cabeça avoada que as pessoas possuíam naqueles tempos, era muito comum se esquecer, confundir a autoria das coisas, mas se ele não se lembrava de onde vinha Capela, como querer julgar alguém? Procurou pela frase na internet, mas o máximo que achou foi endereços mortos do que pareciam ser sites sobre cinema.

“MiA Kza nóVa!”

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Porém, agora não precisava se preocupar com permissões para dormir nos cantos, tinha uma bela residência embaixo de um viaduto: um carro abandonado e confortável! O melhor era que nem precisava se preocupar em colocar lâmpadas ou algum tipo de iluminação, pois do outro lado da rua tinha uma grande boate que iluminava seu carro-casa com luz roxa e relaxante. E o segurança, um homem oriental de dois metros de altura e rabo de cavalo, lhe deu a senha do wi-fi em troca de Capela guardar uma vaga para seu carro, em frente da boate, durante o dia.

Essa não era a sua primeira casa. Tivera outra, há muito tempo, na qual, com certeza, morou por vários anos. Lembrava-se dos detalhes do azulejo, a textura da parede e muitas outras nuances da residência. Só que não recordava como chegar a ela, a localização precisa do lugar, para colocar na internet, já que, antes, tinha a sensação de poder ir com os olhos fechados. Talvez nem existisse mais, assim como as pessoas que moravam nela. Na sua mente, os habitantes eram menos detalhados que suas lembranças da casa. Sentia um peso emocional referente a cada indíviduo, só que não havia feição ou rosto nenhum. Essas informações estavam escondidas atrás dos motivos de não ter mais casa e andar pelas ruas, há tanto tempo; parecia haver dentro de sua cabeça um grande muro, cheio de sensações ruins, o qual já havia desistido de escalar, onde alguém que lhe ajudava, dando um trocado ou comida, tentava chegar perto com perguntas como “O senhor tem família?”. Claro que ele tinha família! O que era Sara e seu celular?!

Sim, preferia se focar na sua nova vida! Em sua casa-carro. Tanto que começou um canal de vídeos online intitulado Vida na Caussada, mostrando seu dia a dia.

Vida nova, rotinas atualizadas.

Como mostrou em um de seus primeiros vídeos, observava da janela, quando um grupo de garotos de cabelos coloridos e roupas que mudavam de cor e tocavam música saia da boate e atravessava para o seu lado da calçada, para fumar. Aí ele esperava, encarando as brasas sendo sugadas aos pouquinhos, com ou sem a ajuda dos fumantes. Torcia, praguejava baixo, para que jogassem fora com um pouco de fumo dentro.

            Caso isso ocorresse, ia sorrateiro, e, depois de pegar a bituca, corria de volta para sua casa-carro, embaixo do viaduto.  Colocou o nome do vídeo de “+ 1 traguinho p paçar a noit!” [1], mas teve que refazer, porque o celular morreu no meio do uploading. O problema de morar na rua era que seus aparelhos celulares tinham uma vida útil muito mais curta do que a de um aparelho novo, que já não era tão longo. Sempre quando achava um, o máximo que durava era algo por volta de uma semana.

Por sorte, sempre havia caixas e mais caixas de aparelhos velhos deixadas sob o viaduto. Pegava o máximo que podia levar nas mãos e os carregava, para ver qual deles ainda funcionava. Quando o segurança da boate não o deixava usar as tomadas do estabelecimento, caso a casa estivesse cheia ou seus superiores estivessem lá, tentava entrar escondido no shopping, onde usava uma das cabines de recarregamento. Carregava o máximo que podia, jogava os que não estavam funcionando fora, e, com isso, às vezes tinha aparelhos suficientes para dois meses!

Próxima a sua residência automotiva, havia uma lanchonete Fast Food especializada em comida senegalesa, e sempre quando tinha uns trocados ganhados comprava, ou às vezes pedia, caso sobrasse, um prato de arroz com Mafê. Guardava a luvinha de plástico dada na lanchonete, para comer com a mão, pois servia para muitas coisas, desde guardar seus trocados a seus dentes que iam caindo, mas logo não teria mais que se preocupar com isso.

Fazia muitos vídeos mostrando a decoração de sua casa. Quando achava Tablets antigos e grandes, os usava como porta retratos de figuras que arrancava dos cartazes da rua ou cartões postais que achava. Capela sempre preferia as paisagens de campos, coisas bem verdes e coloridas.

Luv <3

Às vezes, deixava que Sara fosse junto com ele na corrida pelas bitucas ou refeição, mas estava preocupado com a sua saúde, ultimamente. Então ela ficava dentro do carro, e caso fizesse aquele velho olhar de reprovação, começava uma mega discussão, mesmo que sua saúde não estivesse muito boa para isso. Ela sempre fazia esse mesmo olhar, quando percebia que ele havia ido ao outro lado, na rua da boate, para ver pornografia em seu celular. Mas, depois de uma briga feia, havia prometido que não iria mais fazer aquilo.

Sara era muito ciumenta, mesmo depois que Capela assumiu seu relacionamento nas redes sociais. Ela devia ser mais grata, pois, apesar das suas diferenças, ele não pensou duas vezes em dizer para todos que a amava.

Conheceram-se fazia quase um ano, quando Capela dormia no escadão do Teatro Municipal. Viu-a, pela primeira vez, encostada do outro lado do calçadão, sozinha, assim como ele. Foi se aproximando aos poucos, fazendo aquela técnica clichê de puxar conversa a respeito do tempo, pedindo um cigarro ou mesmo apenas um “Como vai?”. Um dia, tomou coragem e a convidou para dar um passeio no largo do Anhangabaú. Ficaram conversando a tarde toda, até que tiveram de se esconder da chuva embaixo do viaduto, onde trocaram o primeiro beijo. Desde então, corriam por aí juntos, se defendendo dos outros moradores de rua e dos guardas privados. Quando comemoraram seis meses juntos, Capela fez um vídeo de seis minutos, em homenagem a Sara, usando cada minuto para exaltar uma qualidade de sua musa. O vídeo acabou tendo alguns minutos a mais, porque Capela usou o final para retrucar ofensas de seu canal concorrente, o Malandriagem de Pete Godoy, também moradora de rua.

Contudo, a sua relação estava se desgastando e ela estava cada vez mais frigida. O estado de saúde de Sara não estava nada otimista. Começou aos poucos, pequenas manchas e bolhas surgiram em partes diferentes do corpo de sua amada. Logo a situação fora piorando e sua pele estava cheia de feridas enormes. Capela desconfiava que Sara havia pego essa doença de outro parceiro, mas nunca conseguiu lhe tirar algo a respeito disso.

Um dia, no desespero, teve que implorar para o segurança da boate deixá-lo carregar seu celular, e aquele, no meio de seus gritos, lhe fez essa gentileza. Ficou o dia inteiro procurando uma solução para a doença de Sara na internet, até fez um vídeo de apelo por ajuda, mas em todos os fóruns ou sites de perguntas que descrevia os sintomas e mandava a foto de suas feridas, recebia as mesmas respostas cheias de deboches e ofensas: como era possível existir tamanha loucura? Era a primeira vez que viam alguém namorar uma propaganda de tamanho real da modelo carioca Jussara Bossa feita em papelão.

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Conversou com Sara, e achou melhor que cada um devesse seguir o seu caminho, antes que ela acabasse lhe passando sua doença, o que sabia que ela não desejava. Colocou-a na esquina da Boate e, depois de uma semana, ela desapareceu, em um dia chuvoso. Capela deduziu que já havia encontrado alguém, As pessoas se apaixonavam muito rápido, naqueles tempos. Não perdeu tempo e mudou seus status nas redes sociais para solteiro novamente.

“O Futuro a Dus PrTnC!”[2]

Já estava conversando com uma stripper online chamada Thais, que conheceu em um pop up que clicou acidentalmente, em um site adulto. Apesar de sempre conversar sobre os mesmos assuntos, era uma morena muito linda que sempre lhe dava atenção. Na verdade, Thais era apenas uma Inteligência Artificial que respondia automaticamente com frases eróticas as perguntas que qualquer um fizesse. Mas Capela já estava pensando em como iria lhe fazer a proposta para ir morar com ele em sua casa-carro, que agora havia aumentado um cômodo, pois fizera um quartinho para gravar seus vídeos.

Raspou a barba e cortou o cabelo com uma maquininha de segunda mão, que comprou de um vendedor paquistanês que passou pelo viaduto. Barganhou até chegar a uns poucos trocados que estava guardando dentro de uma luva de plástico –  iria comprar um presente para Sara, em comemoração a um ano de namoro.

Tirou uma foto sorrindo, em frente a sua casa-carro, e postou em todas as suas redes sócias, com uma palavra, que descrevia perfeitamente como Capela era totalmente diferente de Jorge Mirelle Tarcio:

“SuCssso!”

Notas

[1] ↑ Um Traguinho para passar a noite!!!

[2] ↑ “O Futuro a Deus pertence!”

***

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