Arqueologia e a história das ideias – Arqueologia do Saber

A arqueologia do saber não é uma história das ideias, seu objetivo é a reescrita de um conjunto de obras tendo como base as regras de formação do discurso a qual fazem parte. Sua artimanha é a análise das descontinuidades, da especificidade do discurso.

Da série “A Arqueologia do Saber“.

O quarto capítulo da Arqueologia do SaberA Descrição Arqueológica, começa com uma pequena seção explicativa.

O objetivo de Foucault em Arqueologia e a História das Ideias é mostrar em quê, exatamente, a arqueologia se separa da supracitada história das ideias.

Mas, talvez seja difícil perceber essa separação, afinal, o objetivo inicial de Foucault em delimitar grandes unidades discursivas que se diferenciassem dos livros, da obra, dos temas ou do autor, o levou a criar conceitos, como o de positividade e formação discursiva, sem, no entanto, o retirar explicitamente do campo da história das ideias.

Será, então, que sua investigação estacionou num campo já bastante conhecido e, ironicamente, que tentava ser negado pelo filósofo? Para descobrir, Foucault delimitará a disciplina da história das ideias. Se trata de um continente com fronteiras mal desenhadas, um esforço em narrar o erro, o marginal, o secundário, não o primário, não a verdade. Diz o autor,

[A história das ideias não conta] a história das ciências, mas a dos conhecimentos imperfeitos, mal fundamentados, que jamais puderam atingir, ao longo de uma vida obstinada, a forma da cientificidade (história da alquimia e não da química, dos espíritos animais ou da frenologia e não da fisiologia, história dos temas atomísticos e não da física)[1].

A história das ideias, sendo assim, analisa muito mais as opiniões do que o saber, muito mais os erros do que a verdade, “não das formas do pensamento, mas dos tipos de mentalidade”[2].

Uma de suas qualidades é a possibilidade de mostrar em quais momentos noções filosóficas se transformaram em pauta para discussões científicas. É, para além de um certo tipo de análise material, um estilo. Ela descreve

A passagem da não filosofia à filosofia, da não cientificidade à ciência, da não literatura à própria obra. Ela é a análise dos nascimentos surdos, das correspondências longínquas, das permanências que se obstinam sob mudanças aparentes, das lentas formações que se beneficiam de um sem-número de cumplicidades cegas, dessas cumplicidades que se ligam pouco a pouco e, de repente, se condensam na agudeza da obra[3].

A história das ideias tem como grandes temas a gênese, a continuidade e a totalização. É assim que hoje, segundo Foucault, ela se liga a maneira tradicional de fazer história. Através de sua descrição, também fica difícil entender o porquê da necessidade de romper com este estilo de pesquisa histórica, já hegemônica.

Segundo Foucault, é normal que qualquer um que se baseie nos métodos da análise histórica tradicional ou na história das ideias, acuse a análise do discurso de traição à história. Mas é necessário demarcar espaço, “ora, a descrição arqueológica é precisamente abandono da história das ideias, recusa sistemática de seus postulados e de seus procedimentos, tentativa de fazer uma história inteiramente diferente daquilo que os homens disseram[4]”, salienta o autor.

Foucault enumera quatro diferenças marcantes entre as duas formas de fazer história:

  1. A propósito da determinação de novidade;
  2. A propósito da análise das contradições;
  3. A propósito das descrições comparativas;
  4. A propósito da demarcação das transformações.

1) “A arqueologia busca definir não os pensamentos, as representações, as imagens, os temas, as obsessões que se ocultam ou se manifestam nos discursos, mas os próprios discursos, enquanto práticas que obedecem a regras”[5]. Ela não trata o discurso como algo que deva ser interpretado, como a história das ideias faz, porque no discurso não há nada oculto.

2) O objetivo da arqueologia não é encontrar uma continuação entre os discursos, não é traçar uma linha do tempo de sucessão, mas sim de encontrar a especificidade de cada discurso. O ponto em que ele é irredutível a qualquer outro. “Ela não vai, em progressão lenta, do campo confuso da opinião à singularidade do sistema ou à estabilidade definitiva da ciência; não é uma ‘doxologia’, mas uma análise diferencial das modalidades de discurso”[6].

3) “A arqueologia não é ordenada pela figura soberana da obra; não busca compreender o momento em que esta se destacou do horizonte anônimo. Não quer reencontrar o ponto enigmático em que o individual e o social se invertem um no outro”[7]. Não interessa, para a arqueologia, a instância do criador. Não é disso que ela se preocupa, mas sim os tipos e regras de práticas discursivas que atravessam essas obras.

4) Não é objetivo da arqueologia, também, tentar retratar o todo, aquilo que pôde ser pensado, desejado, experimentado ou visado num ato de enunciação. Sua pretensão é mais modesta, ela é como uma reescrita, é a reescrita de uma obra tendo como base suas regras de formação. “É a descrição sistemática de um discurso-objeto”[8].

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. Arqueologia e a história das ideias IN: A Arqueologia do Saber. 8ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p.167.

[2] FOUCAULT, Michel. Arqueologia e a história das ideias… p.167.

[3] FOUCAULT, Michel. Arqueologia e a história das ideias… p.168.

[4] FOUCAULT, Michel. Arqueologia e a história das ideias… p.169.

[5] FOUCAULT, Michel. Arqueologia e a história das ideias… p.169.

[6] FOUCAULT, Michel. Arqueologia e a história das ideias… p.170.

[7] FOUCAULT, Michel. Arqueologia e a história das ideias… p.170.

[8] FOUCAULT, Michel. Arqueologia e a história das ideias… p.171.

 

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