O mérito das almas merecidas

Um dia qualquer, nas margens poluída de um rio, a meritocracia ira atingir o natural. Clique e leia!

Ninguém tem muitas reclamações a respeito de Dimitri. Seus supervisores costumam descreve-lô como “entediado, mas eficiente”, pois sempre está disposto a realizar o que lhe é mandando, só não muda muito sua expressão, para criar uma imagem melhor de si. Vai de um lado para outro carregando caixas pelos corredores do mercado, as tira do estoque e coloca os produtos na prateleira. Apesar da falta de velocidade, sempre consegue cumprir sua meta do dia.

Dimitri é uma capivara macho de quase dois metros de altura. Tem cerca de 150 quilos e, aos 34 anos de idade, tem todos os pelos do corpo grisalhos.

Foi o primeiro de sua raça a vir trabalhar na cidade. Nasceu com fobia de água e por isso acabou sendo abandonado pela sua família com 12 anos de idade, quando todos migraram para a outra ponta do rio. Nenhum deles deixou que Dimitri subisse nas suas costas, pois eram capivaras meritocratas, que já nasceram com os humanos passando pelas bordas do rio, e com isso aprenderam a entender a sua língua, mas não a falar, ouvindo sempre que todos deviam se esforçar para conseguirem seus objetivos, sem exceções.

Sozinho, Dimitri acabou subindo a ribanceira e indo procurar por emprego na cidade. Teve que realizar um empréstimo para conseguir comprar roupas e sapatos, pela necessidade de ir formalmente a uma entrevista. Depois de alguns dias procurando, conseguiu o emprego de repositor, e já haviam se passado 22 anos.

Quando acabava o seu expediente de dez horas, a primeira coisa que fazia era tirar seus sapatos. pois andar em duas patas já fora algo muito doloroso para Dimitri conseguir, e os sapatos só pioravam isso. Soltava o cinto que prendia a calça jeans tamanho extra grande e colocava para fora a camisa laranja que fazia parte do uniforme.

Sempre se sentava sozinho no ônibus, pois acabava ocupando os dois espaços no banco. Quase todos os dias, passava do ponto em que descia, pois caia profundamente no sono. Costumava tentar de sua maneira avisar ao cobrador para que o acordasse na parada certa, mas este nunca o fazia. A maioria o via com desdém e morria de rir, quando Dimitri saia desesperado, quase levando os bancos do ônibus junto com ele.

Adorava chegar em casa e assistir televisão; tirava toda a roupa e se deitava no tapete Afegão vendo programas de venda e troca de bijuterias e, depois de um tempo, começou a perceber um sorriso preestabelecido em seu rosto. Cochilava confortavelmente no tapete, então no meio da madrugada acordava e ia para sua cama, pois precisava estar de pé para o trabalho às seis horas. Na maioria dos dias, acordava com uma dorzinha na coluna. Dimitri precisava trocar seu colchão.

Quando chovia era um tormento, pois ainda não perdera seu medo de água. Se fosse uma semana ou mês de chuvas continuas, comprava um atestado falso com um conhecido que era enfermeiro, caso fosse só um ou dois dias, tinha descontado de seus dias, sem problema.

Ficava olhando pela janela a água descer, na esperança de que um dia teria coragem de sair alegre pela chuva, dando cambalhotas nas poças. Essas imagens de um tempo mais alegre e longe dos medos fizeram Dimitri se inscrever em um curso de natação, há alguns meses. Não havia ainda frequentado as aulas, mas era apenas uma questão de tempo.

Deixou a sunga, a touca e os óculos para nadar que comprou com um dinheiro que estava juntando com seu décimo terceiro dos últimos sete anos. Ficavam pendurados na porta e quando as coisas estavam difíceis, olhava alegre para aqueles artefatos, visualizando o momento de iniciar seu curso e perder o medo d’água, ganhando assim o mérito para estar com os seus iguais.

8 Comentários

  1. Texto instigante. Nos leva a refletir acerca das nossas ações como meritocratas frente aos Dimitris que encontramos nos nossos contextos sociais e de como nos apropriamos da “falta” centrada no outro para constituir a nossa normalidade meritocrata. Excelente texto.

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