Verdade, correspondência e convenção – David Bloor

O que é a verdade para a sociologia do conhecimento de David Bloor? Clique e entenda!

Da série “Sociologia do Conhecimento“.
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A discussão sobre a concepção de verdade na teoria do Programa Forte da Sociologia do Conhecimento está relacionada com os princípios metodológicos estabelecidos no livro Conhecimento e imaginário social, de David Bloor. Os sociólogos, segundo essa perspectiva, precisam tratar de modo igual, para propósitos de explicação, crenças verdadeiras e falsas. Mas o que se quer dizer quando se fala em verdade? Diz-se, de início, que é uma crença, julgamento ou afirmação que corresponde à realidade e que capta e retrata como as coisas como elas são no mundo[1].

No entanto, essa concepção comum da verdade é bastante vaga para Bloor. A correspondência destacada entre conhecimento e realidade, da qual ela depende, é difícil de se caracterizar de modo claro. “Em vez de tentar definir o conceito de verdade com mais precisão, uma abordagem diferente será adotada. Ela consiste em perguntar que uso é feito do conceito de verdade e como a noção de correspondência funciona na prática”[2].

Bloor introduz, então, o exemplo da teoria do flogisto, desenvolvida pelo químico e médico alemão Georg Ernst Stahl no início do século XVIII. Segundo essa concepção, os corpos combustíveis possuiriam uma matéria chamada flogisto, liberada ao ar durante os processos de combustão. Os químicos da época sabiam como prepará-lo, mas as ideias que eles tinham a respeito das propriedades e do comportamento do gás eram bem diferentes das que atualmente são reconhecidas. A crença era de que o flogisto seria absorvido por uma substância que denominavam minium ou cal de chumbo. Nesse processo, o minium transformava-se em chumbo.

flogisto

Uma demonstração foi feita por Joseph Priestley, utilizando um tubo invertido cheio de flogisto, selado por uma cuba com água. Sobre a água, em um crisol, flutuava um pouco de minium. Ao ser aquecido pela luz solar, concentrada por uma lente, o minium transformou-se em chumbo. E, como indicação de que a substância tinha absorvido o flogisto, o nível da água no tubo aumentou expressivamente. Bloor destaca esse como um caso em que o resultado foi o esperado; uma demonstração de que a teoria correspondia com a realidade (se o nível da água subiu, é porque ela ocupou o espaço que antes pertencia ao gás flogisto).

Um empirista poderia questionar, propõe Bloor, que é possível ver o nível da água subir, mas não se vê efetivamente o gás adentrar nos poros do minium. A experiência não mostra essa ação, pelo menos não da forma como se é possível ver em um banho a água descer pelo ralo. “A realidade que a teoria postula, portanto, não está visivelmente de acordo com a teoria”[3]. Não se vê correspondência com a teoria.

O indicador de verdade que efetivamente utilizamos é se a teoria funciona. Damo-nos por satisfeitos quando encontramos uma visão teórica do mundo que opere isenta de dificuldades. O indicador de erro é o fracasso em estabelecer e manter essa relação de funcionamento com previsões bem-sucedidas. Uma forma de expor esse ponto seria dizer que há um tipo de correspondência que de fato utilizamos: não a correspondência da teoria com a realidade, mas a correspondência da teoria com ela mesma. A experiência, tal como interpretada pela teoria, é submetida ao crivo da consistência interna sempre que isso for considerado importante. O processo de avaliar uma teoria é interno. Não é interno no sentido de ser desligado da realidade, pois é óbvio que a teoria está atrelada a ela pelo modo como designamos os objetos, nomeamos e identificamos substâncias e eventos. Mas, uma vez que as ligações tenham sido estabelecidas, o sistema como um todo deve manter certo grau de coerência. Uma parte tem que conformar à outra[4].

Voltando ao experimento, ao final do processo, Priestley percebeu que algumas gotículas de água se formaram no interior do tudo. Provavelmente, essa situação não era esperada. A teoria não mencionava esse evento. Tal fato poderia indicar uma falta de correspondência entre o que se percebia com o experimento e o que a teoria afirmava. Mas isso não fez o pesquisador considerar a teoria falsa por uma falta de correspondência com seu funcionamento interno. “O que ocorreu foi que uma situação anômala surgiu em uma dada concepção teórica sobre o experimento. O que Priestley fez foi remover a anomalia ao elaborar a teoria (…) o seu guia aqui não foi a realidade, mas a própria teoria. [Diante da situação] ele concluiu que o minium deveria conter água, algo que ninguém havia percebido”[5].

Na teoria científica atualmente defendida, não se diz que o flogisto foi absorvido pelo minium ou que a água surgiu do minium, e sim que o gás do tubo é o hidrogênio e que o minium é óxido de chumbo. Na reação, com o aquecimento, o oxigênio se desprende do óxido e deixa o chumbo; o oxigênio combina-se com o hidrogênio e forma a água; o gás é consumido, o que faz elevar o nível da água.

Visualmente, o experimento feito hoje é o mesmo, praticamente, mas a concepção teórica é bem diferente. “Não mais do que Priestley, temos acesso aos aspectos ocultos da realidade, assim como nossas concepções são também apenas uma teoria. De maneira indiscutível, estamos completamente justificados em preferir a nossa teoria, pois sua coerência interna pode ser mantida em um número maior de casos de experimentos e experiências teoricamente interpretadas”[6].

Se pensar a verdade como a correspondência entre a realidade e a teoria é um termo vago, por que não se abandona essa concepção por completo? Bloor, então, destaca três funções associadas a essa discussão sobre a verdade. A primeira é a função discriminatória. Essa função se constitui porque há a necessidade de ordenar e selecionar as crenças, distinguindo as que funcionam das que não. Nesse sentido, “verdadeiro” e “falso” são rótulos tipicamente utilizados e associados a esta ideia.

A segunda função é a retórica. Tais rótulos cumprem um papel na argumentação, na crítica e na persuasão. Não se crê só no que está sob o controle dos estímulos do mundo físico, há um componente social no conhecimento; não há uma adaptação mecânica ao mundo. “A linguagem da verdade está profundamente ligada ao problema da ordem cognitiva. (…) [a verdade] é pensada como algo que transcende a mera crença (…) é o nosso modo de colocar um ponto de interrogação em tudo aquilo que desejamos pôr em dúvida, modificar ou consolidar”[7].

Essa função é similar à discriminatória, mas com uma diferença: os rótulos agora são vistos com ares de transcendência e autoridade. Para Bloor, esta autoridade de uma concepção teórica de mundo só pode advir das ações e opiniões das pessoas. Ela é uma categoria social que apenas os humanos podem exercê-la. “Esforçamo-nos para transmiti-la às nossas opiniões e assunções mais arraigadas. A natureza tem poder sobre nós, mas apenas nós possuímos autoridade”[8].

A terceira é denominada de função materialista. O pensamento humano assume instintivamente a existência em um ambiente externo comum, com uma estrutura determinada. Esse ambiente externo é estável o bastante para vários propósitos práticos. “Os detalhes de seu funcionamento são obscuros, mas, apesar disso, muito sobre ele é presumido como certo (…) a existência de uma ordenação externa do mundo nunca é objeto de dúvidas. Pressupõe-se que ele seja a causa de nossa experiência e a referência comum do nosso discurso. (…) Quase sempre, quando utilizamos a palavra “verdade”, queremos dizer apenas isto: como o mundo é”[9].

Ao explicar sobre essas funções, Bloor destaca que “a ideia de verdade nunca deve ser confundida com os critérios que são utilizados, em qualquer contexto particular, para julgar se uma alegação específica deve ser aceita como verdadeira. Isso seria assumir que a mera noção de verdade pode funcionar como critério substancial de verdade”[10].

Então o autor introduz a ideia de se pensar a verdade como uma convenção social. O problema, acrescenta Bloor, é que essa noção gera muita oposição e crítica. Quando se fala que algo é uma convenção, logo se pensa que é arbitrário. Isso dá a ideia de que os resultados e as teorias são verdadeiros apenas por conta de uma decisão, e, por conta disso, qualquer decisão poderia ser tomada. Sobre isso Bloor diz que convenções não são arbitrárias e que nem tudo pode se tornar uma convenção.

As teorias têm que funcionar com o grau de precisão e dentro do âmbito que convencionalmente se espera delas. Tais convenções não são nem autoevidentes, nem universais, nem estáticas. Além disso, as teorias científicas e os procedimentos têm de ser consoantes a outras convenções e propósitos que prevalecem em um grupo social. Eles encontram um problema “político” de aceitação como qualquer outra recomendação política[11].

Outra objeção sobre a noção de considerar o conhecimento como produto de um processo de convenção social é a de que essa perspectiva possa por em risco o pensamento crítico. No entanto, Bloor assinala que a teoria prevê que a crítica radical do conhecimento será possível somente em determinadas circunstâncias: a primeira é a de que mais de um conjunto de critérios e convenções estejam disponíveis e que mais de uma definição de realidade seja concebível; a segunda diz que é necessário que existam alguns motivos para explorar tais alternativas. O autor acrescenta que numa sociedade diversificada a primeira condição sempre será satisfeita. Com relação à produção científica, a segunda condição nem sempre será seguida, já que os cientistas irão avaliar que por vezes ganha-se mais com a conformidade aos procedimentos e às teorias normais do que com seu afastamento.

Para clarificar que as convenções não se interpõem à crítica radical, Bloor traz um exemplo sobre Francis Bacon. Para o sociólogo do Programa Forte, Bacon “foi um dos grandes propagandistas da ciência”, “um crítico implacável daquilo que via como a escolástica degenerada das universidades”. Ocupando esse lugar, ele gostaria de ver um tipo de conhecimento associado aos artesãos e artífices, um conhecimento prático, útil e ativo. Para chegar à crítica, o filósofo usou-se de critérios, hábitos, interesses e convenções de uma parte da sociedade como referência para ponderar outros tipos de aprendizado. “Não buscou, e não poderia ter encontrado, nenhum critério suprassocial”[12].

Bloor, seguindo o princípio da reflexividade, acrescenta que tem que ser possível aplicar esse relato à própria sociologia do conhecimento, sem que isso signifique solapá-la. A essa questão, o autor adiciona a ideia de que não há motivo para um sociólogo, ou qualquer outro cientista, se envergonhar em ver que suas teorias e métodos provêm da sociedade, sendo produto de influências e de recursos coletivos (de modo peculiar à cultura e às circunstâncias presentes).

Dizer que os métodos e resultados da ciência são convenções não os faz “meras” convenções. Seria cometer a inqualificável tolice de pensar que convenções são coisas que podem ser trivialmente satisfeitas e nem um pouco exigentes por natureza. Não poderia haver engano maior[13].

Referências

[1] BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social. São Paulo: UNESP, 2009. p.64.

[2] BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social… p.64.

[3] BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social… p.66.

[4] BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social… p.66.

[5] BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social… p.67.

[6] BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social… p.67.

[7] BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social… p.69.

[8] BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social… p.69.

[9] BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social… p.70.

[10] BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social… p.71.

[11] BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social… p.73.

[12] BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social… p.74.

[13] BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social… p.75.

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