Doença mental e sociedade – Doença Mental e Psicologia

A sociedade é fato indiscutível na emergência da doença mental, afinal, a doença só pode ser tal coisa quando é classificada assim pela sociedade. Desta forma, para além da fenomenologia e da psicanálise, há outro viés necessário na empreitada foucaultiana.

Da série “Doença Mental e Psicologia“.

FoucaultApós entender que havia um método geral erroneamente aplicado sobre a patologia orgânica e a patologia mental, obrigando a última a utilizar o procedimento de análise de classificação análogas aos da primeira e, portanto, ficando fadada ao erro, Foucault percebeu que seria necessário estabelecer uma crítica à psicologia até seus limites em cada faceta que ela própria revela.

Primeiramente, seu aspecto evolucionista foi destrinchado: a psicologia de Jackson e Freud consideravam o desenvolvimento psicossexual como uma linha progressiva, detentora virtual de todas as patologias mentais que, por sua vez, seriam regressões à estágios anteriores daqueles em que o sujeito se encontra. Se, por uma lado, a doença apaga funções complexas, como o estabelecimento de diálogos, ela conserva outras mais estáveis e simples, aonde o diálogo é substituído pelo monólogo. Ou seja, a conduta do doente não é a regressão de um comportamento passado, mas é a conduta passada localizada no presente, com sentido fixado no presente, não sendo uma pura negatividade e sim uma criação.

Mas esta criação só poderia ser observada de perto na história individual do doente. A razão da história ter destaque na análise de Foucault está no fato dela ser a ligação do passado ao presente. Ela os coloca em tensão e faz da conduta presente não ser uma mera repetição do passado, pois ao trazer a conduta passada, a insere em novas relações com novos significados. Entretanto, ainda assim não é possível encontrar a emergência da doença, apesar de já ser possível perceber um fundamento de todas elas e da história psicológica humana como um todo: a angústia.

A angústia é presente em toda vida do sujeito, é seu eterno medo, criador dos mecanismos de defesa, e aquilo que é liberado nas tensões adultas. Por isso, é considerada por Foucault como um a priori existencial. Sendo como tal, Foucault procura entender a doença a partir do que ela é numa abordagem fenomenológica, e entender a dinâmica da angústia nas doenças mentais de uma perspectiva interior. Porém, mesmo assim não foi possível entender porque algumas pessoas ficam doente e outras não e porque algumas conseguem superar suas tensões enquanto outras firmam compromisso com a neurose.

As análises precedentes fixaram as coordenadas com as quais as psicologias podem situar o fato patológico. Mas se mostraram as formas de aparecimento da doença, não puderam demonstrar-lhe as condições de surgimento. O erro seria crer que a evolução orgânica, a historia psicológica, ou a situação do homem no mundo pudessem revelar estas condições. Sem dúvida, é nelas que a doença se manifesta, é nelas que se revelam suas modalidades, suas formas de expressão, seu estilo. Mas é noutra parte que o desvio patológico tem, como tal, suas raízes.[1]

Foucault cita Boutroux para inserir a sociedade nas análises psicológicas, já que as leis da psicologia seriam relativas a uma determinada “fase da humanidade”, muda-se de fase, também de leis psicológicas: o que o filósofo francês faz é levar este princípio a Durkheim para compreender que a doença mental só é considerada assim quando está em uma cultura que assim a reconhece. “A doente de Janet que tinha visões e apresentava estigmas, teria sido, sob outras condições, uma mística visionária e taumaturga”[2].

Durkheim, pai da sociologia científica, pensava definir a patologia a partir de princípios evolucionistas e estatísticos: quando o fenômenos se afastasse da média da sociedade (em dados estatísticos), deveríamos o considerar patológicos, eles seriam resquícios de uma fase anterior da sociedade ou anúncios de uma posterior. Ruth Benedict, por sua vez, considerou a doença como o conjunto de virtualidades que a própria sociedade estudada negligencia ou reprime, como o comportamento individualista numa cultura Zuni. Ambos caem num problema parecido: fazem da doença um objeto de negatividade e virtualidade.

A definição de doença para Durkheim é aquilo que ela não é (o normal da média) e sua morbidez se situa no fato de ser qualquer coisa que não a média. Em Benedict algo é doença na medida em que não se integra na cultura local. A virtualidade está justamente na definição da doença a partir das possibilidade que nela se manifestam (possibilidades essas, não mórbidas), que são relativas sempre ao afastamento possível de um normal, num lado, um afastamento estatístico, no outro e um afastamento antropológico. Aqui, ambos os autores caem no mesmo erro dos psicólogos: esquecem da positividade da doença.

É fato que em algumas culturas, as doenças reconhecidas como tais ainda têm um valor social, uma função específica, um status. Foucault cita o exemplo clássico dos Berdache, entre os Dakota da América do Norte: os homossexuais “têm um status religioso de sacerdotes e mágicos, um papel econômico de artesãos e criadores, ligados a particularidades de sua conduta sexual”[3]. Lá, apesar de não haver uma especificidade clara da doença, há funções específicas em outras esferas da sociedade. Ao contrário, entre os Zulu, para ser xamã é necessário demonstrar condutas classificadas na Europa como histéricas e hipocondríacas (claramente doentes para ambas as sociedades), como choro excessivo, ultra sensibilidade, convulsões, o que demonstra não só que a doença é aceita como fase preparatória para o exercício de um papel social (de xamã), mas como o papel social requer a doença.

Ou seja, a tentativa de fazer da doença um movimento de negatividade, o que Durkheim e os psicólogos americanos, conforme critica Foucault, fazem é não se reconhecer no doente que perseguem. No momento em que a doença é encontrada, se exclui o doente. A questão que fica para ser respondida nos próximos capítulo é: como a doença ganhou, em nossa sociedade, seu sentido atual de desvio e como o doente alcançou o status de exclusão? Após responder essas questões, é necessário entender como a nossa sociedade se exprime nessas formas mórbidas que pretende excluir de seu funcionamento.

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia. Traduzido por Lilian Rose Shalders. Título original: Maladie mentale et psychologie (Presses Universitaires de France). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p.49.

[2] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.49.

[3] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.50-51.

4 Comentários

  1. Caro Vinícios

    Gosto, aprecio, curto, aprende…porque tudo que vc escreve envolve e, muito me faz pensar.
    Muito obrigada! Você é um dos melhores.
    Um abraço carinhoso.

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