O homo psychologicus (conclusão) – Doença Mental e Psicologia

"Há uma boa razão para que a psicologia não possa jamais dominar a loucura; é que ela só foi possível no nosso mundo uma vez a loucura dominada e já excluída do drama."

Da série “Doença Mental e Psicologia“.

FoucaultÉ possível perceber que Foucault não se atém às particularidades fisico-anatômicas que seriam causa de um ou outro sintoma da doença mental. Seu problema, é necessário esclarecer, não está na doença virtualmente eterna e absoluta da loucura: a preocupação do filósofo não é encontrar o diagnóstico perfeito.

Foucault caminha pela virtualidade da doença através da narrativa evolucionista, empreende uma exploração adentro da história individual, quando percebe que a angústia aparece como um a priori existencial, e segura o gancho numa pesquisa fenomenológica sobre o putrefaciente mundo do doente mental. Ele percebe que a doença mental, para ser percebida em sua emergência, precisa ser procurada também nos signos sociais e a cultura passa a ser seu alvo.

Ao chegar no campo da cultura (e perceber que a loucura é variável, não é um signo fixo), parte para a experiência libertada da loucura, sua estrutura global. Mas como o louco pode ser classificado como louco por uma sociedade? Esta pergunta inicia o direcionamento que será habitual para as pesquisas arqueológicas, já que nela reside a dúvida da formação do próprio sujeito da ciência específica. Quem é o sujeito da psicologia? De que ele é feito?

As respostas para essa pergunta são baseadas em operações sociais conduzidas por diferentes sujeitos que visam modificar a maneira de se perceber o louco, que deixa de ser alguém sob o interesse curioso dos intelectuais, do interesse religioso dos pequenos povoados, e passa a ser o símbolo da concentração de todo o mal. A história da possibilidade de constituição do louco passa a ser feita timidamente, já sob a influência de História da Loucura na Idade Clássica (afinal, lembre-se que Doença Mental e Psicologia é a segunda edição do livro de 1954, que foi relevantemente alterada).

É daí que

Desta nova maneira de se considerar a “história dos fenômenos” resulta todo o projeto de História da Loucura e da crítica à psicologia como projeto pseudocientífico que, sob o pano de fundo de uma suposta fundamentação das ciências humanas, cujo objeto seria o homem, forja, na verdade, este mesmo homem, o homo psychologicus, submetido a uma apreciação moral e a um controle ético por parte dos saberes e das práticas terapêuticas, educacionais, políticas e jurídicas do mundo ocidental.[1]

A psicologia não é uma ciência que busca apreender o animal humano. Ela é uma das ferramentas para forjar o “homem” (tipo específico de sujeito assujeitado aos dizeres das ciências sobre sua constituição, sobre seu ser, sobre seu inconsciente, sobre a lógica psicológica de suas ações).

A doença mental que, na primeira parte do livro, era criticada a partir de seus métodos metapsicológicos, passa a ser criticada a partir de sua possibilidade histórica. Como o louco deixou de ser um possuído e passou a ser um doente? Esta questão é importante na medida em que demonstra a passagem da loucura do renascimento para a modernidade, de uma loucura que envolvia ligações especiais com o transcendental e caminha para uma loucura do insano, do sujeito que mostra o lado negro da razão, e termina como doença mental.

O loucura foi alienada do louco, passou a sobreviver em receptáculos separados para observação e experimentos.

A passagem da loucura à doença mental passa pelo nascimento do Homem. O primeiro homem é  assim, o homem  louco;  o  insensé, o sem razão. Com o desenvolvimento da ciência da psicologia, o homem teria descoberto sua verdade, mas também se deparado com a perda dessa verdade na alienação da loucura.[2]

A loucura, portanto, é controlada, internada, humilhada, mas não pode ser explicada. Pelo menos não por uma psicologia, afinal, a loucura é a razão da psicologia, esta é explicada por aquela. Desta forma, não é possível explicar a loucura a partir de explicações ou reduções externas a ela. A loucura deve ser vista dentro da relação que o próprio homem construiu em torno de si há dois séculos.

Esta relação vista sob o ângulo mais agudo, é esta psicologia na qual ele colocou um pouco de seu espanto, muito do seu argulho, e o essencial de seus poderes de esquecimento; sob um ângulo mais amplo, é a emergência, nas formas do saber, de um homo psychologicus, encarregado de deter a verdade interior, descarnada, irônica e positiva de qualquer consciência de si e de todo conhecimento possível; finalmente recolocada na abertura mais ampla, esta relação é a que o homem substituiu a sua relação com a verdade, alienando-a neste postulado fundamental que é ele próprio a verdade da verdade.[3]

E a loucura só se tornou o que é após a razão deixar de ser uma ética e se transformar em natureza.

Há uma boa razão para que a psicologia não possa jamais dominar a loucura; é que ela só foi possível no nosso mundo uma vez a loucura dominada e já excluída do drama.[4]

Qual é a resposta para o problema posto no livro? Não há resposta aparente porque a pergunta não foi feita esperando uma resposta cabível em uma frase. A resposta possível para a pergunta de Foucault, que envolve não só as duas perguntas iniciais do livro (o que é o objeto propriamente psicológico e qual relação há entre psicologia e patologia orgânica) mas termina por englobar o próprio sujeito da loucura (ou da psicologia), está em sua arqueologia.

É a História da Loucura que vai fornecer a resposta para a pergunta oculta em Doença Mental e Psicologia. Foucault não é unicamente um crítico, mas também é alguém com objetivos claros: após criticar a psicologia e mostrar o afastamento que ela deve ter da patologia orgânica, foi necessário mostrar o nascimento do sujeito que pode ser classificado como louco.

O caminho de Foucault é o discurso sobre a loucura, é entender o louco para além de qualquer diagnóstico.

Referências

[1] SILVEIRA, Fillipa. Antropologia e doença mental em Foucault: Caminhos do homem rumo à perda de sua verdade. Perspectiva Filosófica, Vol. 2, nº 40, 2013, p.58.

[2] SILVEIRA, Fillipa. Antropologia e doença mental em Foucault: Caminhos do homem rumo à perda de sua verdade... p.64.

[3] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia. Traduzido por Lilian Rose Shalders. Título original: Maladie mentale et psychologie (Presses Universitaires de France). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p.68.

[4] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.69.

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