Constructo discursivo e as condições de produção – Michel Pêcheux

O Constructo discursivo abarca o discurso, as formações imaginárias, discursivas e ideológicas de uma dada situação. É um conceito formado por Ana de Godoy e visa compreender o jogo de evidências na comunicação entre dois sujeitos. Abordamos o conceito em sua relação com as condições de produção.

Da série “Michel Pêcheux: Conceitos Fundamentais“.

Por Uma Analise Automatica Do Discurso, F. Gadet e T. Hak [org.], lançado em 1990.
Imagem: Por Uma Analise Automática Do Discurso, F. Gadet e T. Hak [org.], lançado em 1990.

Segundo a Análise do Discurso Francesa (AD), a suposta clareza do sentido não acontece numa relação limitada por dois sujeitos, onde um diz e dá sentido ao enunciado e o outro escuta e, da mesma forma, dá sentido ao que foi ouvido. Essa é a uma das afirmações fundamentais deste campo de estudo.

O sentido é histórico e suas variações são mediadas pelas possibilidades dos sujeitos em relação aos enunciatários. Por isso, foi importante desenvolver a noção de que há condições de produção para o discurso e é produtivo relacioná-la com o conceito de constructo discursivo, que dá conta da relação do discurso com as posições sociais e as formações imaginárias, responsáveis por um efeito que fornece a impressão de que o sentido dos enunciados é transparente, como será visto abaixo.

Então, entender o constructo discursivo e relacioná-lo com as condições de produção do discurso é objetivo central deste artigo.

O conceito aqui abordado, de constructo discursivo, foi encontrado na tese de doutorado de Ana Boff de Godoy, A Loucura Como Constructo Discursivo e Sintoma Social[1], logo de início, quando a autora explica sua proposta de pesquisa: observar a loucura

como um constructo discursivo, ou seja, como uma construção ideológica (ainda que inconsciente ou negada) forjada a partir de uma formação imaginária que sustenta o imaginário social (e é por ele sustentada), operando, consequentemente, em todas as relações intersubjetivas e práticas sociais.[2]

Conclui-se que um constructo discursivo é uma construção ideológica a partir de uma formação imaginária que opera em todas as relações firmadas por sujeitos.

Primeiramente, deve-se entender o estudo da Análise do Discurso Francesa sobre a produção do discurso e a obviedade do sentido carregado nas relações sociais. A dinâmica do processo de produção do discurso, aprendida através de Pêcheux[3], é suportada por “circunstâncias dadas”. Essas circunstâncias são as condições de produção do discurso, que funcionam a partir de duas abordagens feitas por Pêcheux, sendo a primeira em 1969, quando afirma que

Um discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produção dadas: por exemplo, o deputado pertence a um partido político que participa do governo ou a um partido da oposição; é porta-voz de tal ou tal grupo que representa tal ou tal interesse, ou então está ‘isolado’, etc. Ele está, pois, bem ou mal, situado no interior da relação de forças existentes entre os elementos antagonistas de um campo político dado. O que diz, o que anuncia, promete ou denuncia, não tem o mesmo estatuto conforme o lugar que ele ocupa; a mesma declaração pode ser uma arma temível ou uma comédia ridícula segundo a posição do orador e do que ele representa, em relação ao que diz. Um discurso pode ser um ato político direto ou um gesto vazio, para ‘dar o troco’, o que é uma outra forma de ação política.[4]

Nesta primeira formulação, as condições de produção consistem nas possibilidades que cada posição ocupada pelos diferentes sujeitos lhes dá. Ou seja, se o sujeito X é deputado estadual e o sujeito Y é jornalista, como ambos devem lidar um com o outro? De onde vem a obviedade do tratamento dado entre as pessoas, reconhecidas através de sua posição social?

Para Pêcheux, há um jogo de imagens central nesta relação imaginária, feito a partir de perguntas respondidas com obviedade durante a comunicação, que pode ser representado pelo esquema abaixo, numa interação entre dois sujeitos, A e B:

  • De A para A: “Quem sou eu para lhe falar assim?”;
  • De B para A: “Quem é ele para que eu lhe fale assim?”;
  • De B para B: “Quem sou eu para que ele me fale assim?”
  • De A para B: “Quem é ele para que me fale assim?”

Depois, passa para as impressões do referente (R) aos sujeitos postos:

  • De A sobre R: “De que lhe falo assim?”;
  • De B sobre R: “De que ele me fala assim?”.

Junto a essa primeira abordagem (que valoriza as formações imaginárias), a segunda investida de Pêcheux foi em fortalecer sua ideia de que, para a produção do discurso, deve haver um conjunto de posições relativas e de uma situação concreta que não vai somente guiar a feitura do discurso, limitando a quantidade alta de enunciados (virtualmente) possíveis, mas também prescrevendo as ideias e os enunciados possíveis de acontecer. Ou seja, as formações ideológicas traçam o corte histórico necessário para fazer dessas relações entre sujeitos A e B mais que um jogo de imagens isolado, entendendo esta trama como parte de um todo que precisa ser produzido a partir de condições de produção localizadas em um momento na história e em um espaço no presente.

Sendo assim, as conclusões óbvias sobre como tratar o outro (no esquema entre os sujeitos A e B colocado acima) só parecem ser tão óbvias porque os sujeitos incluídos na comunicação estão sendo interpelados por uma formação discursiva (FD) com enunciados que já existem e que já prescrevem significados através de sua prática. Assim, os sujeitos podem dizer o que é possível através da formação discursiva e pensar como é possível através da formação ideológica. Já a interpelação cria condição para que o sujeito se identifique com a FD e utilize seus enunciados. O sujeito é interpelado para que seja o sujeito adequado à FD e, ao mesmo tempo, entende qual sujeito ele não é, aprende as diferenças entre os sujeitos nesta mesma “circunstância” (conscientemente ou não), e toma seu lugar nas relações sociais com referência a este outro (que são vários, conforme as posições sociais se relacionam), também histórico, também delimitador e também prescrevedor.

Agora, podemos avançar sobre o conceito de constructo discursivo, tratado no início do artigo. Ana de Godoy o entende como uma construção conceitual que abarca o discurso, mas tem suas especificidades. Ele é como que o resultado de toda a dinâmica entre a formação discursiva, a formação ideológica que o sustenta e a formação imaginária atuante nas relações intersubjetivas[5]. Desta forma, quem fala, fala sempre de um lugar de poder, que é relativamente estável pois está fixado através das dinâmicas discursivas e ideológicas e imaginárias na formação social.

Se quem fala, fala de um lugar de poder, de um lugar que permite o exercício do poder através de distintas possibilidades que o lugar engloba, podemos avançar o desenvolvimento da interpretação sobre o construto discursivo através da base teórica da AD e afirmar que, se o lugar é um lugar de poder e se o processo de produção do discurso é, como o nome diz, um processo de produção, então, não é meramente repressivo, mas também prescritivo, pode-se concluir que não é o sujeito, ocupante do lugar, que age, mas sim que o lugar encobre o indivíduo com a forma-sujeito, definindo suas possibilidades e marcando sua conduta através de regras que causam repressão e prescrição.

O indivíduo é chamado a ser sujeito da ideologia que lhe interpela, diria Althusser[6]. Quem lhe chama é o Sujeito, que lhe força identificação (e adequação à ordem da interpelação),

o indivíduo é interpelado como sujeito (livre) para que se submeta livremente às ordens do Sujeito, portanto, para que aceite (livremente) a sua sujeição, portanto, para que “realize sozinho” os gestos e os atos da sua sujeição. Só existem sujeitos para e pela sua sujeição. É por isso que “andam sozinhos”.[7]

O lugar de onde se fala é o espaço social do assujeitamento, da constituição do sujeito. Assim, “o constructo discursivo é um molde”[8] onde o sujeito aprende a “se colocar em seu lugar” e a reconhecer que os outros sujeitos também estão fazendo assim. É o molde em que os sujeitos participantes de uma situação podem se apoiar para deduzir imagens que fazem de si e dos outros.

O objeto de estudo de Ana de Godoy é a loucura, então seu exemplo para o conceito de constructo discursivo é aplicado a ela:

o louco só se vê como louco (ou aceita que o vejam como tal), só aceita o papel e o lugar do louco em duas situações: a primeira, quando aceita também que um outro sujeito esteja num lugar diametralmente oposto, num lugar de normalidade, e, mais do que isso, num lugar de poder que lhe autoriza e confere autoridade (e se esse sujeito autorizado lhe diz que ele é louco, então, é isso que ele é); a segunda, quando atinge o limite de sua resistência e sucumbe ao poder que lhe foi imposto. E a partir daí está estabelecida (e legitimada) a relação entre opressor e oprimido (e que pode ser observada em inúmeros outros âmbitos pra além desse da loucura).[9]

Mas não se pode confundir o constructo discursivo com seu conteúdo. Ele é estruturado como uma linguagem e é sempre histórico, daí dos sentidos de suas relações poderem variar de tempos em tempos, mas sua estrutura, o padrão, o fato de ser um conjunto de relações e imagens, isso não muda. A concepção de loucura muda ao longo do tempo, mas o fato de haver uma loucura a ser fator de adequação à sociedade mostra que ainda há um constructo discursivo operando.

Assim, o sujeito do constructo discursivo é constituído quando “inserido” no lugar designado por uma interpelação e passa a ser o sujeito do constucto determinado (por exemplo, o louco em relação ao constructo discursivo da loucura). Ao mesmo tempo, sua adequação é aperfeiçoada ao longo do tempo, através da autoridade que lhe imputa o rótulo de louco e do reconhecimento desse rótulo por todos os outros sujeitos e, por fim, do reconhecimento do rótulo da loucura feito pelo próprio louco. Essas legitimações seguidas causam um efeito de evidência, que “propicia a normalização dos sentidos estabelecidos no/pelo constructo discursivo”[10].

Esses sentidos não são rigidamente estáveis, já que tudo se passa como se fosse do jeito que o jogo de imagens revela. O discurso do sujeito sobre ele mesmo e sobre o outro é sempre um discurso que opera através da paráfrase ou reformulação, onde o sujeito fala como se todos que lhe escutam, chegassem ao mesmo sentido em suas frases. Então, havendo uma dinâmica e historicidade que favorece a fixidez do constructo discursivo, as relações firmadas entre os sujeitos parecem ter sentidos óbvios e automáticos na medida em que o jogo de imagens (que é ilusório) se mantém constituindo os sujeitos, aproximando sua conduta e seu pensamento com o adequado ao assunto tratado, ao lugar ocupado pelo sujeito e ao lugar ocupado pelo interlocutor.

Considerações finais

Conclui-se que o constructo discursivo carrega o discurso, mas tem sua especificidade: o discurso está no constructo como aquilo que segura os sujeitos em suas posições. Ele é a ferramenta que segura os sujeitos em seus lugares, consequentemente, a diferença entre o discurso e o constructo discursivo é aquilo que excede o discurso, como os lugares de poder de onde se fala e as imagens fixadas pelos sujeitos que tornam transparente e automático como o enunciatário deve ser tratado e como o próprio enunciador deve esperar ser tratado.

O discurso é “uma sequência linguística limitada por dois brancos semânticos e que corresponde a condições de produção discursiva definidas”[11], afirma Pêcheux; já o constructo discursivo é uma construção ideológica sob uma formação imaginária que opera em todas as relações intersubjetivas, é o exercício do discurso através de sujeitos fixos em posições pré-determinadas e ilusoriamente transparentes que acaba por reproduzi-lo e constituir os sujeitos que lhe dão suporte.

O constructo discursivo funciona como um aprimoramento do conceito de condições de produção do discurso (o que já se pode concluir ao afirmar que o constructo discursivo excede o discurso), na medida em que engloba as chamadas “circunstâncias” e o jogo de imagens, mas adiciona os desenvolvimentos propostos por Pêcheux no restante de sua obra, como a presença das formações ideológicas (conferindo delimitações no pensar) e das formações discursivas (delimitando o fazer, o falar).

Referências

[1] de Godoy, Ana Boff. A Loucura Como Constructo Discursivo e Sintoma Social: uma análise do funcionamento da ideologia e do inconsciente na constituição dos sujeitos. 2016. 330f. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras, Porto Alegre, BR-RS, 2016.

[2] de Godoy, Ana Boff. A Loucura Como Constructo Discursivo e Sintoma Social: uma análise do funcionamneto da ideologia e do inconsciente na constituição dos sujeitos… p.17.

[3] PÊCHEUX, Michel. Análise Automática do Discurso (AAD-69) IN GADET, F. HAK, T. (Org.). Por Uma Análise Automática do Discurso: Uma Introdução à Obra de Michel Pêcheux. 3ª Ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997, p. 74.

[4] PÊCHEUX, Michel. Análise Automática do Discurso (AAD-69)… p.77.

[5] de Godoy, Ana Boff. A Loucura Como Constructo Discursivo e Sintoma Social: uma análise do funcionamneto da ideologia e do inconsciente na constituição dos sujeitos… p.85.

[6] ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. 3 ed. Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1980, p. 96-101.

[7] ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado… p. 101.

[8] de Godoy, Ana Boff. A Loucura Como Constructo Discursivo e Sintoma Social: uma análise do funcionamneto da ideologia e do inconsciente na constituição dos sujeitos… p.85.

[9] de Godoy, Ana Boff. A Loucura Como Constructo Discursivo e Sintoma Social: uma análise do funcionamneto da ideologia e do inconsciente na constituição dos sujeitos… p.85.

[10] de Godoy, Ana Boff. A Loucura Como Constructo Discursivo e Sintoma Social: uma análise do funcionamneto da ideologia e do inconsciente na constituição dos sujeitos… p.86.

[11] PÊCHEUX, Michel. Análise Automática do Discurso (AAD-69) IN GADET, F. HAK, T. (Org.). Por Uma Análise Automática do Discurso: Uma Introdução à Obra de Michel Pêcheux. 3ª Ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997, p. 108.

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