Língua enquanto instituição social – Saussure e a AD

O artigo abaixo visa explicar a teoria de Saussure sobre a língua enquanto instituição social e mostrar as críticas de Michel Pêcheux sobre a interpretação do linguista suíço. Para Pêcheux, a língua enquanto instituição não é capaz de cobrir os elementos extralinguísticos presentes na fala, sendo assim, uma análise do discurso deve observar as condições de produção.

Da série “Saussure e a AD”.

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Segundo Ferdinand de Saussure, a oposição entre língua e fala é a dicotomia entre 1) o que é individual daquilo que é coletivo e 2) o que é essencial daquilo que é acessório[1]. Trata-se da oposição entre o individual, alheio à norma coletiva, e o coletivo, normatizado, regrado por leis internas. Enquanto a fala pertence ao primeiro lado, cabe à língua representar o segundo.

O aspecto necessário da língua tem relação com sua função necessária no exercício da faculdade da linguagem: é necessário haver uma língua para expressar enunciados, mas a fala não é obrigatória: é possível utilizar qualquer outra forma de expressão para se comunicar com uma pessoa. A língua é necessária e, além disso, existe como fenômeno social.

Instituição social em Saussure

A língua é

a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, que, por si só, não pode nem criá-la nem modificá-la; ela não existe senão em virtude de uma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade. Por outro lado, o indivíduo tem necessidade de uma aprendizagem para conhecer-lhe o funcionamento.[2]

A parte individual é a fala, que

é, ao contrário, um ato individual de vontade e inteligência, no qual convém distinguir: 1º, as combinações pelas quais o falante realiza o código da língua no propósito de exprimir seu pensamento pessoal; 2º, o mecanismo psicofísico que lhe permite exteriorizar essas combinações.[3]

A partir dos desenvolvimentos de Saussure sobre a dicotomia entre língua e fala, pode-se perceber uma característica da língua: enquanto duradoura, homogênea, coletiva e, assim, normativa (já que os indivíduos precisam se adequar passivamente a ela), ela também “constitui uma instituição social, mas ela se distingue em vários traços das outras instituições políticas, jurídicas etc. Para compreender sua natureza peculiar, cumpre fazer intervir uma nova ordem de fatos”[4] que são os fatos da língua, provenientes das regras internas do sistema da língua e da relação entre os significantes e significados que lá se unem arbitrariamente.

Instituição problematizada por Pêcheux

Michel Pêcheux coloca em perspectiva as consequências de uma noção da língua enquanto instituição. O autor percebe essa necessidade ao conceituar as condições de produção do discurso, indicando que a situação ou o contexto são os correlatos da linguística dos anos 60 para este conceito.

Para Saussure, a língua enquanto instituição tem uma diferença específica em relação às outras instituições que é sua localização na esfera do semiológico e porque, diferente das outras instituições, para ela não há nenhuma necessidade natural de sua composição. Ou seja, se os costumes, por exemplo, constituem uma instituição, isso também se deve a uma conformidade natural entre os meios que se emprega e os fins que tentam ser alcançados (a permanência do costume, da coesão social etc), ou seja, há uma determinação exterior à instituição; já a língua não é presa a esta determinação exterior. Entretanto, essa noção de instituição é formada de maneira que seus fins são sempre postos como referência, sendo o funcionamento da instituição determinado pelo fim a ser alcançado. Desta maneira, listando primeiramente os fins para depois conceber o funcionamento, o caso único da língua (de não ser determinada externamente) fica em destaque.

No entanto, salienta Pêcheux, a maneira como Saussure vê a instituição não leva em conta os desenvolvimento da sociologia do início do século XX, em que já era inserido uma noção de instituição como funcionamento sem objetivo definido, como na Enciclopédia Francesa de 1901, em que Marcel Mauss, sobrinho de Durkheim, e Paul Fauconnet a definem como “o conjunto de atos e de idéias instituídas que os indivíduos encontram diante deles e que lhes são mais ou menos impostos”[5].

A sociologia contemporânea a Pêcheux, por sua vez, já separava a função aparente e o funcionamento implícito das instituições. Assim, as normas da língua (seu funcionamento) não são explícitas para o locutor, apesar de ser clara a função aparente de comunicar atribuída à língua. Para o autor francês, Saussure foi enganado pela ilusão do não-sociológico, “que consiste em considerar as instituições em geral como funções com finalidade explícita”[6].

O exemplo de Pêcheux para ilustrar o ponto é o discurso de um deputado na Câmara. Diferentemente de Saussure, o pioneiro da análise do discurso desenvolveu sua disciplina reconsiderando o papel da fala. Se o discurso está na ordem da fala, para Saussure, ele está no campo em que se manifesta a liberdade do locutor. No entanto, inserindo a visão sociológica, o discurso passa a ser parte de um mecanismo em funcionamento, ou seja, como parte de um sistema de normas que não são individuais e nem globais, mas que definem um leque de possibilidades práticas num dado momento.

Em outras palavras, o discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produção dadas: por exemplo, o deputado pertence a um partido político que participa do governo ou a um partido de oposição; é porta-voz de tal ou tal grupo que representa tal ou tal interesse, ou então está “isolado” etc. Ele está, pois, bem ou mal, situado no interior da relação de forças existentes entre os elementos antagonistas de um campo político dado: o que diz, o que enuncia, promete ou denuncia não tem o mesmo estatuto conforme o lugar que ele ocupa; a mesma declaração pode ser uma arma temível ou uma comédia ridícula segundo a posição do orador e do que ele representa, em relação ao que diz: um discurso pode ser um ato político direto ou um gesto vazio, para “dar o troco”, o que é uma outra forma de ação política.[7]

Existe uma relação, então, entre a fala e o mecanismo extralinguístico que delineia o que pode ser dito. Neste mecanismo, também se localizam as outras falas (a fala do outro), portanto, uma fala pode ser dita em oposição ou apoio, pode ser uma reposta direta ou indireta, pode ser uma explicação ou uma crítica detalhada.

O conceito de instituição social da língua, então, não dá conta dos efeitos na fala que ela deveria explicar e, ainda por cima, reconhece um destino definido para qualquer instituição, anterior mesmo à pesquisa de seu funcionamento implícito. Logo, se trata de uma visão que favorece a função aparente das instituições na hora de explicar sua existência.

Considerações finais

O conceito de instituição social de Saussure tende a ser trocado, na Análise do Discurso Francesa, pelo conceito de condições de produção do discurso (que mais tarde será inserido no conceito de formação discursiva).

O primeiro conceito consegue dar conta dos elementos extralinguísticos postos na hora da execução de um discurso, enquanto que a língua como instituição social limita a percepção do discurso (já que não observa – no ângulo da fala – as variáveis fora da língua) e favorece uma visão ilusória e não-sociológica que coloca o objetivo da instituição antes de encontrar seu funcionamento e, assim, acaba classificando sua existência a partir de sua função aparente. As instituições são vistas, então, a partir de sua função, não de seu funcionamento: o que colocaria a língua como uma instituição com um funcionamento específico que suporta a fala, desse modo o discurso.

Parece que o objetivo de Pêcheux é declarar o discurso como o relativo à instituição social da fala, enquanto a língua formaria sua própria instituição social. Entretanto, a fala articulada em enunciados depende da língua, logo, em vez do olhar para a instituição social, o olhar visando as condições de produção se torna mais eficiente.

Referências

[1] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. Tradução: Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blinkstein. 32ª edição. São Paulo: Editora Cultrix, 2010, p.22.

[2] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral… p.22.

[3] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral… p.22.

[4] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral… p.24.

[5] PÊCHEUX, Michel. Análise Automática do Discurso (AAD-69) IN GADET, F. HAK, T. (Org.). Por Uma Análise Automática do Discurso: Uma Introdução à Obra de Michel Pêcheux. 3ª Ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997, p. 76.

[6] PÊCHEUX, Michel. Análise Automática do Discurso (AAD-69)… p.76.

[7] PÊCHEUX, Michel. Análise Automática do Discurso (AAD-69)… p.77.

4 Comentários

  1. Sinto dificuldades em tratar a problematização entre os dois. O primeiro recorre ao caminho do estruturalismo, e, como tal, perde-se na perspectiva histórica e o segundo se coloca no funcionalismo, que metodológicamente (ou seria politicamente?) também deixa de lado a análise histórica. Mas não tenho aprofundamento na questão, é apenas uma dúvida. Falta-me domínio na área para, por exemplo, se há uma perscpetiva dialética no tratamento do tema.

    1. Pêcheux coloca a visão marxista e não caminha para a função da língua, mas para seu funcionamento.

      O erro de Saussure foi realizar a análise para um foco na função quando fala de instituições.

  2. Olá Vinicius! Estou tentando encontrar as diferenças teóricas entre a tríade Althusser, Pêcheux e Focault. Tudo parece indicar o mesmo caminho, onde o sujeito é situado sempre como um protagonista preso ao roteiro alheio. Produzimos discursos marcados por posições ideológicas, relações de poder, lugares de fala, aparelhamentos de controle (Estado, internos, externos), apagamentos conscientes e inconscientes em nossas falas que determinam a reprodução de narrativas com a mesma origem. Então, tudo parece se fundir, complementar de tal forma que não consigo separar claramente as teorias e objetivos que cada um trouxe para a AD. Não sei se fui clara, mas estou as vésperas de um exame, em meio aos constante som da copa do mundo e precisando muito de um help! Obrigada e muito bom seu blog, adorei.

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