Corpo, alma e loucura – Michel Foucault

Aos poucos, o problema da relação entre alma e corpo toma forma no problema indicado por Voltaire: a loucura de fato afetaria a alma? A alma pode ser materialmente observada na afecção dos sentidos? Caberá à medicina o estudo dos fenômenos, a metafísica tratará de estudar as relações profundas entre corpo e alma

Da série “Os loucos de Foucault“.

Índice

Introdução

A alma não foi abandonada nas considerações acerca da loucura na Idade Clássica. Ela não foi morta pelas categorizações nosológicas que dobram, dividem e reúnem com maestria cada característica daquilo que chamam de doenças. É relevante a observação de que, ao exibir signos exteriores da penitência, o louco poderia até mesmo ser absolvido após uma punição.

O criminoso desatinado, apesar de suas ideias estarem alteradas, apesar de sua recusa ética fundamental, apesar de expressar o mal através de suas escolhas, ainda assim, na escolha exibida e socialmente reconhecida da penitência, abre-se a possibilidade de uma iluminação espiritual.

O louco será salvo da danação eterna. Sua alma é protegida da perdição pela própria loucura, pois se afasta do comando do corpo físico e, ao mesmo tempo, se afasta do mal. “A alma não está suficientemente comprometida na loucura para pecar nela”[1]. O objetivo deste artigo é expor os comentários iniciais de Foucault sobre a presença – ainda – da alma como elemento a ser considerado na loucura durante a Idade Clássica.


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Presença

Alma como princípio motor, alma como princípio cognitivo, alma como princípio de racionalidade. Alma como aquilo que a perturbação dos sentidos pode demonstrar certa alteração, mas somente a escolha pela desrazão finalmente condenaria qualquer desarranjo da percepção: “aquele que vê turvo e vê em dobro não está louco; mas aquele que, vendo em dobro, acredita que existem dois homens, está”[2].

Há um erro no pensamento, nas imagens que o povoam, mas este erro não compromete a alma, afastada de seu exercício no momento da loucura.

Voltaire, em seu Dicionário Filosófico, apresenta o problema sobre a alma na loucura através de uma divisão, na medida em que renuncia ao problema da mecânica da loucura. “Chamamos loucura a essa doença dos órgãos do cérebro que impede um homem de pensar e de agir como os outros. Não podendo gerir seus bens, é interdito; não podendo ter idéias de acordo com a sociedade, é excluído; se for nocivo, é enclausurado; se for furioso, trancafiam-no”[3].

Uma doença dos órgãos do cérebro, mas

é importante observar que este homem, entretanto, não carece de idéias; ele as tem como todos os outros enquanto acordado e, frequentemente, enquanto dorme […] [Sobre a alma] após mil reflexões, é preciso convir em que somente a fé, talvez, possa convencer-nos de que uma substância simples e imaterial seja passível de doença.[4]

Para Voltaire, loucura não pode simplesmente ser uma afecção dos sentidos pois sua natureza não é diferente da dos sentidos. Voltaire dobra o problema acerca da origem da loucura, que seria observada nos sentidos alterados (através de paixões atordoantes ou violentas), para um problema que foge em muito da medicina, que se aloja na filosofia e que coloca em questão a materialidade da alma e a possibilidade dela ser observada através dos sentidos.

A presença da alma em uma relação mecânica com o corpo exibida por René Descartes que, a partir das paixões, pode resultar na loucura é substituída por uma dúvida sobre a própria disponibilidade da alma no processo de loucura. A mudança promovida por Voltaire será de extrema importância no século XVIII, quando de fato se poderá ter uma psiquiatria espiritualista e uma psiquiatria materialista. A divisão total da origem da loucura passará, muito após Voltaire escrever suas palavras, a ser condição de possibilidade para uma psiquiatria propriamente científica.

Ele indica e deixa pressagiar, sob outra dialética e polêmica, na sutileza ainda vazia de conceitos, aquilo que no século XIX se tornará indubitavelmente evidente: ou a loucura é uma afecção orgânica de um princípio material, ou é a perturbação espiritual de uma alma imaterial.[5]

Será a partir deste problema central que o nó da cientificidade médica poderá ser desatado e, finalmente, se poderá falar de uma medicina cujo objeto está no corpo propriamente, na fisiologia, em seus processos materiais.

Ausência

Auguste Tissot, médico cirurgião do século XVIII, decreta a divisão de olhares que recalcula o problema da alma no fim da Idade Clássica: cabe à metafísica encontrar as relações entre corpo e alma; caberá à medicina não se preocupar com as causas, mas somente com os fenômenos. Isso numa base de aceitação da ligação entre corpo e alma como dupla óbvia e inexorável. Não faz parte da discussão médica questionar a existência da alma ou sua participação na vida cotidiana de cada ser humano, mas sim delimitar o objeto específico da medicina que deixará, aos poucos, de se preocupar com a causa originária da loucura e, assim como Voltaire, deixará de assumir que o problema da origem é a grande questão do desatino.

Foucault complementa: “quem diz loucura nos séculos XVII e XVIII não diz, em sentido estrito, ‘doença do espírito’, mas algo onde o corpo e a alma estão juntos em questão”[6]. Uma união, mutualidade, ligação que quase não precisaria de explicação mecânica, já que a explicação qualitativa das análises dos médicos da Idade Clássica já poderia resolver toda questão sobre a origem, as causas distantes e próximas para a loucura e tinha a vantagem de estabelecer passagens de corpo para alma e alma para corpo de explicação meramente discursiva, abstrata.

Tardiamente, a alma é inserida numa relação de mutualidade com o corpo e já não pode mais ser considerada como elemento causador ou essencial para o aparecimento da loucura.

Considerações finais

Desta maneira, é possível recapitular primeiramente a alma como parte, como etapa do processo que se configurará na loucura observável através de uma causalidade mecânica entre diferentes acontecimentos que levam as paixões até a sede da alma e, a partir dela, causa percepções erradas, confusões, furores. Aos poucos, o problema da relação entre alma e corpo toma forma no problema indicado por Voltaire: a loucura de fato afetaria a alma? A alma pode ser materialmente observada na afecção dos sentidos?

Esta questão, tardiamente inserida na Idade Clássica, levará ao que se pode observar em Tissot: caberá à medicina o estudo dos fenômenos, a metafísica tratará de estudar as relações profundas entre corpo e alma. Neste tempo em que Deus ainda não foi morto, não há questionamento sobre a participação da alma, de alguma forma, na vida, seja saudável ou não. Alma e corpo compreendem uma mutualidade não mais mecânica.

Figuras do desatino

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 210.

[2] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 212.

[3] VOLTAIRE, Denis. Dicionário Filosófico. Edição: Ridendo Castigat Mores, p. 338. Disponível em <<http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/filosofico.pdf>> Acesso em 18 jan 2020.

[4] VOLTAIRE, Denis. Dicionário Filosófico… p. 338-9.

[5] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p.213.

[6] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p.214.

Cite este artigo:

SIQUEIRA, Vinicius. Corpo, alma e loucura – Michel Foucault. Colunas Tortas. Acesso em [DD Mês AAAA]. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/corpo-alma-e-loucura-michel-foucault/>>.

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