Detecta em SP: sorria, você pode estar sendo vigiado

O otimismo tecnológico pode nos levar a achar que mais tecnologia pode resolver o problema da segurança pública. Esse otimismo, porém, pode fazer com que outras questões sejam ignoradas...

Vigilância. Foto de Jonathan McIntosh (Flickr/CC)
Vigilância. Foto de Jonathan McIntosh (Flickr/CC)

Imagine que você é capaz de monitorar toda uma cidade com câmeras de segurança. Além disso, que você tem acesso a diferentes bancos de dados, do cadastro de veículos aos registros criminais da polícia. Junte a isso o acesso a mapas. Por fim, combine esses elementos com uma capacidade de manipular todos esses dados por algoritmos de big data. Pronto: você tem agora um sistema que lhe fornece informações precisas de como e onde a polícia deve atuar para combater a criminalidade – até mesmo preventivamente, antes de o crime acontecer. Não, não estou falando de Minority Report, Robocop ou qualquer outro filme de ficção científica. Estou falando do Detecta, tratado como a nova maravilha tecnológica da segurança pública em São Paulo, cuja implantação foi anunciada em abril deste ano.

De fato, o sistema vem sendo objeto de intensa propaganda, ainda mais neste período eleitoral, em que a bandeira da segurança pública tem tanto apelo diante de grande parte da população. O que não é para menos, dados o elevado índice de criminalidade e a sensação de insegurança provocada, entre outros fatores, por uma mídia em que a violência é tratada espetacularmente na sua pauta diária. Assim, o Detecta aparece como uma grande promessa de paz – ou, ao menos, de dias mais tranquilos – para o povo paulista. A campanha à reeleição do atual governador de SP, Geraldo Alckmin, do PSDB, fala com orgulho da parafernália tecnológica – vejam só – importada de Nova Iorque (afinal, se os ianques usam essa tecnologia, é garantia de que ela funciona, não?).

Com efeito, o Detecta é fruto de uma parceria entre o Departamento de Polícia de Nova Iorque (NYPD) e a Microsoft. Originalmente conhecido como Domain Awareness System (DAS, ou Sistema de Consciência do Domínio, numa tradução livre), o sistema entrou em operação na metrópole norte-americana em agosto de 2012, com a promessa de prevenir crimes e desmobilizar ameaças terroristas. Além disso, no acordo firmado, a cidade receberia uma comissão de 30% a cada pacote do DAS vendido pela gigante corporação da informática (portanto, contribuintes de São Paulo, seus impostos também financiam a segurança pública nova-iorquina – que povo mais cosmopolita é o paulista…).

A questão da privacidade

Em que pese a promessa de solucionar o problema da segurança pública e conter as ameaças terroristas mediante todo esse aparato tecnológico, questões éticas e legais referentes à preservação da privacidade foram levantadas nos EUA. Pois se é possível utilizar o sistema para monitorar possíveis criminosos, não há nada que impeça de usá-lo para vigiar cidadãos comuns e bisbilhotar suas vidas (seus hábitos cotidianos, preferências políticas, religiosas, etc.). Trata-se do dilema fundamental que emergiu com a “Guerra ao Terror”, a partir de 11/09/2001: até que ponto a prevenção de ameaças terroristas à coletividade pode justificar a violação da privacidade do indivíduo?

Edward Snowden revelou sistema de vigilância global da NSA.
Edward Snowden revelou sistema de vigilância global da NSA.

Há denúncias de que o DAS estava sendo utilizado para monitorar muçulmanos em Nova Iorque. As autoridades, evidentemente, negam que a tecnologia esteja sendo empregada com esse propósito. A NSA (National Security Agency – Agência de Segurança Nacional dos EUA) também negava vigiar as comunicações globais, o que foi desmentido pelas revelações de Edward Snowden. Portanto, as desconfianças não são infundadas.

Por estas terras, o povo bandeirante parece demasiado deslumbrado com as bugigangas high-tech estrangeiras para vislumbrar esse problema. Mesmo os opositores do governo paulista limitam suas críticas ao não funcionamento pleno do sistema. O que revela de maneira flagrante como a tecnologia é tratada de maneira despolitizada, como se ela fosse neutra. Evidentemente, ela não é. Imagine que alguém quisesse se valer desse aparato tecnológico para empreender uma perseguição política, monitorando cada passo dos seus inimigos. Mas esse é só um aspecto.

Modelo tecnológico e mercadorização da segurança pública

Outro aspecto importante, mas que parece altamente negligenciado – mesmo no caso americano –, é o do modelo tecnológico implementado. Trata-se de uma solução fechada e proprietária, desenvolvida por uma empresa gigante no ramo do software. Ora, a Microsoft não é uma instituição de caridade. Portanto, não faz o software pensando exclusivamente no bem comum dos cidadãos, mas tem também uma expectativa de retorno sobre a tecnologia desenvolvida.

Assim, até onde eu tenha conhecimento, o código-fonte do DAS ou do Detecta são fechados, ou seja, o público não tem acesso ao conteúdo do sistema, mas apenas às suas funcionalidades. O que implica dizer que o sistema é uma grande caixa preta. Não se pode garantir que o software não tenha nenhum backdoor (uma “porta dos fundos”) que repasse dados, públicos e confidenciais, de maneira imperceptível, para a Microsoft. Afinal, não se dispõe do código-fonte para confirmar a ausência de backdoors. Alguém poderia perguntar: “qual o interesse da companhia nesses dados?” Ora, mais do que nunca, informação é poder.

Mais um problema sério do modelo proprietário de software é que, sendo ele uma mercadoria, o Estado tem que reservar parte do orçamento para pagar pela sua utilização. E, sendo uma tecnologia fechada, isso significa que ela não é intercambiável. Ou seja, não é possível procurar outro fornecedor para o Detecta. É preciso sempre comprá-lo da Microsoft – e quando falo comprar não me refiro apenas a adquirir a licença do software, mas também as atualizações e serviços de manutenção. O Estado, portanto, se vê refém de um único fornecedor (e aqui nem estou levantando a questão de como foi feita a escolha da Microsoft para fornecer o sistema…).

O pesadelo do Big Brother

Anti-vigilância. Foto de Caneles (Flickr/CC)
Anti-vigilância. Foto de Caneles (Flickr/CC)

Em suma, o modelo tecnológico fechado e proprietário é claramente deficiente do ponto de vista da possibilidade de controle social da tecnologia. Não é possível controlar seus limites, sejam éticos ou jurídicos, tampouco adaptar livremente os recursos tecnológicos às demandas de uma determinada comunidade.

Portanto, o que à primeira vista pode parecer como a utopia do combate ao crime por meio do uso da tecnologia de ponta, pode se transformar num pesadelo de traços orweillianos da vigilância total. O Big Brother está bem aí, sendo montando diante de nós.

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