Educação crítica e educação palavresca, por Paulo Freire – DROPS #42

FREIRE, Paulo. Educação e Massificação IN Educação como prática de liberdade. 1ª edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. Versão digital. 

Nada ou quase nada existe em nossa educação que desenvolva no nosso estudante o gosto da pesquisa, da constatação, da revisão dos “achados” — o que implicaria o desenvolvimento da consciência transitivo-crítica. Pelo contrário, a sua perigosa superposição à realidade intensifica no nosso estudante a sua consciência ingênua.


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A própria posição da nossa escola, de modo geral acalentada ela mesma pela sonoridade da palavra, pela memorização dos trechos, pela desvinculação da realidade, pela tendência a reduzir os meios de aprendizagem às formas meramente nocionais, já é uma posição caracteristicamente ingênua.

Cada vez mais nos convencemos, aliás, de se encontrarem na nossa inexperiência democrática as raízes deste nosso gosto da palavra oca. Do verbo. Da ênfase nos discursos. Do torneio da frase. É que toda esta manifestação oratória, quase sempre também sem profundidade, revela, antes de tudo, uma atitude mental. Revela ausência de permeabilidade característica da consciência crítica. E é precisamente a criticidade a nota fundamental da mentalidade democrática.

Quanto mais crítico um grupo humano, tanto mais democrático, e permeável, em regra. Tanto mais democrático quanto mais ligado às condições de sua circunstância. Tanto menos experiências democráticas que exigem dele o conhecimento crítico de sua realidade, pela participação nela, pela sua intimidade com ela, quanto mais superposto a essa realidade e inclinado a formas ingênuas de encará-la. A formas ingênuas de percebê-la. A formas verbosas de representá-la. Quanto menos criticidade em nós, tanto mais ingenuamente tratamos os problemas e discutimos superficialmente os assuntos. Esta nos parecia uma das grandes características de nossa educação. A de vir enfatizando cada vez mais em nós posições ingênuas, que nos deixam sempre na periferia de tudo o que tratamos. Pouco, ou quase nada, que nos leve a posições mais indagadoras, mais inquietas, mais criadoras. Tudo, ou quase tudo, nos levando, desgraçadamente, pelo contrário, à passividade, ao “conhecimento” memorizado apenas, que, não exigindo de nós elaboração ou reelaboração, nos deixa em posição de inautêntica sabedoria.

À nossa cultura fixada na palavra corresponde a nossa inexperiência do diálogo, da investigação, da pesquisa, que, por sua vez, está intimamente ligada à criticidade, nota fundamental da mentalidade democrática. Por outro lado, somente de algum tempo para cá, se vinha sentindo a preocupação em nos fazermos identificados com nossa realidade, em caráter sistemático. Era o clima da transição.

Daí a nossa insistência no aproveitamento deste clima. E, a partir dele, tentarmos o esvaziamento de nossa educação de suas manifestações ostensivamente palavrescas. A superação de posições reveladoras de descrença no educando. Descrença no seu poder de fazer, de trabalhar, de discutir. Ora, a democracia e a educação democrática se fundam ambas, precisamente, na crença no homem. Na crença em que ele não só pode mas deve discutir os seus problemas. Os problemas do seu país. Do seu continente. Do mundo. Os problemas do seu trabalho. Os problemas da própria democracia.

A educação é um ato de amor e, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa.

Como aprender a discutir e a debater com uma educação que impõe? Ditamos ideias. Não trocamos ideias. Discursamos aulas. Não debatemos ou discutimos temas. Trabalhamos sobre o educando. Não trabalhamos com ele. Impomos-lhe uma ordem a que ele não adere, mas se acomoda. Não lhe propiciamos meios para o pensar autêntico, porque, recebendo as fórmulas que lhe damos, simplesmente as guarda. Não as incorpora porque a incorporação é o resultado de busca de algo que exige, de quem o tenta, esforço de recriação e de procura. Exige reinvenção.

Não seria possível, repita-se, com uma educação assim, formarmos homens que se integrassem neste impulso de democratização.

 – Paulo Freire.


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