Racismo e necropolítica, por Silvio Almeida – DROPS #34

ALMEIDA, S. L. Necropolítica e neoliberalismo. Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-10, e021023, 2021.

Recai sobre a sociedade nazista e o Estado nazista, consoante Foucault (Em defesa da sociedade – EDDS), a responsabilidade por algo “extraordinário”: a generalização do biopoder. O nazismo teria realizado a fusão primordial entre o direito soberano de matar, típico das sociedades pré-modernas, com os novos mecanismos do biopoder. Para Foucault (EDDS), o Estado nazista “tornou absolutamente coextensivos o campo de uma vida que ele organiza, protege, garante, cultiva biologicamente, e, ao mesmo tempo, o direito soberano de matar quem quer que seja – não só os outros, mas os seus próprios”. Há, a um só tempo, “um Estado absolutamente racista, um Estado absolutamente assassino e um Estado absolutamente suicida” (EDDS).


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A peculiaridade do Estado nazista – ao mesmo tempo assassino e suicida – é que sua existência não se define apenas pelo propósito de destruir outras raças, mas pela exposição “de sua própria raça ao perigo absoluto e universal da morte”. É a exposição à morte que completa o delírio nazista da superioridade da raça diante de outras que devem ser “totalmente exterminadas” ou ser “definitivamente sujeitadas” (EDDS). Mas há uma observação feita por Foucault (EDDS) que merece nossa atenção, tendo em vista os propósitos deste artigo. A destruição de outras raças e da própria raça – a “solução final” – embora abertamente assumida pelo nazismo, é uma possibilidade porque essa contradição mortal já está inscrita no modo de funcionamento de todo e qualquer Estado e se apresenta na forma do inafastável do jogo que coloca frente a frente o direito soberano de matar e os mecanismos do biopoder (EDDS).

É neste ponto que Mbembe encaixa sua crítica ao conceito de biopolítica. As tendências racistas, assassinas e suicidas do Estado encontram no nazismo o seu ponto mais visível dentro do território europeu, mas não tem origem na Europa. Mbembe, tal como já fizera Aimé Césaire (Discurso sobre o colonialismo), lembra que é o colonialismo a origem de tais tendências. O colonialismo é o lugar em que a governamentalidade se apresenta como o exercício permanente e sistemático da morte. O que aponta Mbembe (Necropolítica e Crítica da razão negra) é que as formas de governamentalidade e de racismo de Estado têm a experiência colonial em sua gênese. O nazismo é, no máximo, a fratura exposta que coloca a um só golpe o direito de matar e a biopolítica na constituição dos Estados modernos. Mas, na radiografia dos Estados modernos, o que aparece é a ossatura do colonialismo e do apartheid.

O colonialismo e o apartheid estabelecem uma governamentalidade irredutível ao “fazer viver e deixar morrer” da biopolítica. Trata-se, aqui, do necropoder e da necropolítica, em que a guerra, a política, o homicídio e o suicídio são as formas de exercício da soberania. As diferenças entre a biopolítica e a necropolítica são demarcadas por Mbembe com o apelo ao conceito de estado de exceção (Agamben, Estado de exceção; Mbembe, Necropolítica e Crítica da razão negra; Schmitt, Teologia e política). Para Mbembe (2018a,p. 19), “o estado de exceção e a relação de inimizade tornaram-se a base normativa do direito de matar”, que se vale de um apelo permanente à “exceção, à emergência e a uma noção ficcional do inimigo”. Foi na experiência colonial que se estabeleceu de forma originária a síntese entre “massacre e burocracia” (Mbembe, Necropolítica) que originou a criação de políticas de governo baseadas na seleção de raças, na proibição de casamentos mistos, na esterilização forçada e até mesmo o extermínio dos povos vencidos, práticas que, como sabemos, transcenderam o território das colônias e fazem parte até mesmo das ditas democracias liberais. (Mbembe, Necropolítica; Pires, Estados de exceção: a usurpação da soberania popular).

Mais do que a lógica da guerra e da formação do inimigo externo e interno que irá garantir a integridade do Estado, a necropolítica tem como base o terror, herança direta do colonialismo e do apartheid. O terror impõe a absoluta alteridade, em que a soberania “consiste fundamentalmente no exercício de um poder à margem da lei – ab legibus solutus – e no qual tipicamente a ‘paz’ assume a face de uma ‘guerra sem fim’” (Mbembe, Necropolítica). O necropoder se manifesta neste espaço em que a legalidade não chega, em que o poder de matar, e não a racionalidade da norma, anuncia a existência do Estado (Mbembe, Necropolítica). É o território da ocupação colonial, onde a soberania se manifesta em um lugar identificado com desordem, loucura, “zona de fronteira”, onde o inimigo está sempre à espreita e onde, mesmo que não haja guerra, há a permanente ameaça de guerra. Vale lembrar que a guerra, elemento que compõe o Estado moderno segundo Foucault, é regulado pelo direito internacional, pelo direito de guerra. A guerra legítima “é, em grande medida, uma guerra conduzida por um Estado contra outro ou, mais precisamente, uma guerra entre ‘Estados civilizados” (Mbembe, Necropolítica). O Estado é o modelo de unidade política, “um princípio de organização racional, a personificação da ideia universal e um símbolo de moralidade”, daí sua centralidade no cálculo da guerra (Mbembe, Necropolítica).

O que notabiliza o contexto colonial é a permanente ameaça da guerra, e não a guerra em si. Se a guerra não foi política e juridicamente declarada, não há limites a observar. Mas a ameaça de guerra faz nascer a emergência que justifica a exceção. Abre-se espaço às medidas preventivas, à antecipação ao inimigo que se impõe na forma de ocupação territorial e suspensão das garantias constitucionais (como o estado de sítio e o estado de exceção). O estado de guerra sem guerra é uma “formação de terror” que corresponde à “concatenação do biopoder, o estado de exceção e o estado de sítio” (Mbembe, Necropolítica).

 – Silvio Almeida.

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