Nós historiadores, precisamos sair de cima do pedestal. Afinal, por que conhecer a história? Para responder essa questão eu poderia lembrar da manjada citação “Um povo que não conhece a própria história está condenado a repeti-la”. Mas é triste observar que mesmos nós, historiadores, cuja função é, segundo Hobsbawm, “lembrar aquilo que os outros esquecem, ou querem esquecer” fazemos questão de fechar os olhos para o que nos é inconveniente. Impressionante como historiadores que parecem tão engajados politicamente desconhecem a história do país em que vivem ou a conhecem de forma superficial. (Vale lembrar que isso nada tem a ver com qualquer tipo de patriotismo ou nacionalismo mas com a ligação com o local em que se vive, já que não existe nada prático em falar sobre mudanças em escala global, ela precisa começar em alguma região específica). Pois é, a manjada frase pode(e deve) se adequar também à nossa “classe”, na falta de uma palavra melhor. A não ser que soframos de um senso de superioridade absurdamente agudo, nós futuros historiadores e acadêmicos também somos parte do povo. Poderia justificar esse comportamento como típico do ser humano, afinal, se eximir de qualquer responsabilidade, jogá-la no outro, sempre alienado e desprovido de consciência social ou política, é o método perfeito para não precisar fazer absolutamente nada. Porém o que estou fazendo afinal ao escrever esse texto, além de construir mais um discurso que no final das contas não será aliado à prática? É preferível então deixar de lado as justificativas e críticas ao “outro” e começar a questionar a nós mesmos, os historiadores.
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Frequentemente partimos do pressuposto que é a massa popular, desconhecedora da própria história, que permite a repetição dos mesmos erros em um ciclo interminável, mas quase nunca paramos para nos examinar , historiadores e pessoas engajadas politicamente: o que fazemos de fato? No dia a dia, será que pelo menos agimos de acordo com aquilo que pregamos? Será mesmo que a responsabilidade MAIOR por uma mudança estrutural pesa sobre os ombros daqueles que consideramos – com uma incrível e velada presunção – alienados e/ou inconscientes da importância do seu papel político na sociedade?
O historiador/político preguiçoso não tem perguntas a fazer, só afirmações. Ele não tem dúvidas, só certezas. Ele se lembra da corrupção, da injustiça, intolerância, fome, alienação e de tudo que há de ruim de mundo. Apesar de raramente fazer qualquer coisa pela sociedade e o coletivo em geral e quase nunca sair da sua zona de conforto, leia-se ativismo de sofá, me pergunto então se ele não pode estar certo e como eu consigo viver em mundo onde virou rotina o ser humano explorar e humilhar o seu semelhante.
Não há dúvidas que uma das principais ferramentas utilizadas pela elite dominante para manter o seu status quo perante a grande massa popular é a eliminação ou manipulação da memória histórica. A distorção histórica sempre foi a melhor arma para a dominação. Com ela, torna-se fácil transformar pessoas em ovelhas submetidas à uma minoria dominante. Obras como A revolução dos bichos e 1984, de George Orwell, e “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley, ilustram bem como a manipulação da história é fundamental para tornar possível uma dominação em massa de indivíduos, domesticados por um reduzido número de pessoas.
Diante de tudo isso, é fácil cairmos no vício já mencionado de se eximir da responsabilidade e nos limitarmos a discursos (como este) e esquecer o nosso principal dever como historiadores. É claro que temos de impedir que essa “memória inconveniente” seja perdida ou manipulada, mas antes disso, nossa principal função é agir de acordo com aquilo que pregamos. Nós historiadores e isso vale para aqueles que não o são necessariamente, mas se consideram engajados politicamente, também não devemos repetir os mesmos erros do passado. Sejam estes ações infelizes ou excesso de discurso e pouca ação. Não podemos esquecer que também fazemos parte do povo. Como é possível ser anarquista sem conhecer a história do anarquismo? Ser comunista e não conhecer a história do comunismo? Anarquismo, comunismo, liberalismo; tantos outros exemplos poderiam ser citados… Ou pior: ser contrário aos mesmos sem realmente buscar conhecê-los, sem analisar suas diversas “histórias”, já que conhecer apenas uma é justamente o desejo daqueles que durante anos, infelizmente com enorme sucesso, se ocuparam em manipular, distorcer e destruir a História.
Como pretender mudar a realidade injusta vigente sem conhecer como a mesma se formou? Repito: não falo aqui de conhecer a própria história de forma superficial e sim buscar nos processos históricos (perceba que não estou falando de fatos históricos) as origens de todas as mudanças que ocorreram, estão ocorrendo e ainda ocorrerão. Se nós, que somos responsáveis pela preservação da memória histórica mental e material, não entendemos que uma sociedade justa não é um direito, mas um dever, que esperança há para os sonhos utópicos se tornarem realidade? Vejo crianças curiosas e questionando tudo. Quando nos tornamos adultos deixamos de questionar certas coisas. E aí percebo a cruel criação de rebanhos na qual vivemos, necessária pra manter a ordem vigente. Até o mesmo o historiador, cuja natureza devia ser a dúvida e ao lecionar deveria estimular os questionamentos quase sempre se deixa seduzir pelos modelos sistemáticos que explicam tudo e, convenientemente, cabem perfeitamente em uma apostila de colégio. O professor de História que despertar a reflexão nos alunos pode não mudar o mundo, mas com certeza vai contribuir indiretamente para criar possíveis leões e não ovelhas. Para quebrar as correntes estruturais que sufocam todos os oprimidos, os primeiros são necessários. Para mantê-la, a criação de ovelhas é indispensável. Resta saber de que lado você está.