Sociedade do consumo – Zygmunt Bauman

A sociedade do consumo é aquela que interpela os indivíduos em sujeitos do consumo e, através deste mecanismo, exclui todos que não conseguem se adequar à tarefa de constituição de si individualmente, solitariamente. O recurso próprio é o único recurso possível de ser utilizado numa sociedade sem referenciais de projeto de sociedade e, acima de tudo, sem um Estado forte o bastante para agir sobre o mercado, não só a partir dos desejos dos agentes do mercado.

Índice

Introdução

Uma cultura do consumo é definida pelo modo como os membros de uma sociedade de consumidores pensam ou se comportam de maneira irrefletida. O caráter constitutivo da cultura está presente justamente na não consciência, de tal maneira que a consciência das escolhas está localizada teoricamente após a constituição do sujeito pela cultura, ou seja, um ato de escolha é um ato localizado historicamente e preenchido pelas relações culturais presentes no espaço e no tempo determinado na análise. O espaço e tempo determinados na análise de Zygmunt Bauman são: 1)  as sociedades de consumo, metrópoles inseridas num contexto de capitalismo majoritariamente financeiro e informatizado e 2) na contemporaneidade.

A sociedade de consumidores é aquela em que se percebe a presença de um conjunto de condições de existência que impõe aos sujeitos a filiação à cultura do consumo. Um conjunto de condições materiais que interpela os indivíduos em sujeitos do consumo e, desta forma, os impelem a obedecer os preceitos desta cultura.

Zygmunt Bauman pretende construir um tipo ideal[1], aos moldes weberianos, da sociedade do consumo. Analisa, assim, uma sociedade preenchida por sujeitos definidos majoritariamente pela possibilidade de consumo, sujeitos da modernidade líquida, diferentemente do contexto da sociedade dos produtores identificada com a modernidade sólida, em que os sujeitos eram constituídos principalmente por sua posição na estrutura econômica enquanto produtores. Utilizaremos como base o livro Vida para consumo.

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A produção do sujeito do consumo

Uma sociedade do consumo interpela seus membros em sujeitos do consumo. O processo de interpelação envolve prender a escuta, gerar entendimento e ser obedecido pelo indivíduo interpelado em sujeito. A sociedade do consumo, assim, avalia os sujeitos segundo a prontidão e a resposta que dão à interpelação. Os processos de exclusão e inclusão deste tipo de sociedade são associados justamente à eficiência de sua interpelação sobre os indivíduos.

Ao realizar tal interpelação, e ao torná-la a interpelação majoritária, a sociedade do consumo rejeita todas as outras formas de vida, todas as outras possibilidades de constituição cultural alternativas ao consumo. A única maneira aprovada de viver neste tipo de sociedade é através da total filiação à cultura do consumo.

Entretanto, estas afirmações iniciais precisam ser contextualizadas. Nem sempre a sociedade, através de seus agentes e instituições, interpelou indivíduos em sujeitos do consumo:

A maior parte da história moderna (ou seja ao longo da era das enormes plantas industriais e dos imensos exércitos de recrutas), a sociedade “interpelava” a maioria da metade masculina de seus membros basicamente como produtores e soldados, e quase toda a outra metade (feminina) como, antes de qualquer coisa e acima de tudo, fornecedoras de serviços.[2]

Para o exercício destas funções, a sociedade de produtores investia seu controle e seu treinamento sobre os corpos dos indivíduos. A disciplina no corpo do potencial trabalhador, soldado ou prestador de serviços se sobressaia e seu espírito era silenciado. Ou seja, sua vontade era desconsiderada, seu desejo era diminuído, sua voz era a voz que reclama pelo corpo, mas não a que reclama pelo alimento da alma.

A sociedade do consumo se investe justamente sobre o espírito dos sujeitos, entregando a disciplina do corpo a um tipo de trabalho individual, representado pelos coachs, mentores de auto ajuda, pelo estabelecimento da saúde do corpo na filiação individual em academias, em dietas da moda, em terapias alternativas com eficácia (ou não) simbólica que dependem acima de tudo do carisma dos terapeutas.

O investimento no espírito e a negligência com o corpo é aspecto essencial para compreender o novo habitat do sujeito do consumo, agora rodeado de mercadorias para, através do consumo, aumentar seu próprio valor de mercado.

A vocação consumista se baseia, em última instância, nos desempenhos individuais. Os serviços oferecidos pelo mercado que podem ser necessários para permitir que os desempenhos individuais tenham curso com fluidez também se destinam a ser a preocupação do consumidor individual: uma tarefa que deve ser empreendida individualmente e resolvida com a ajuda de habilidades e padrões de ação de consumo individualmente obtidos.[3]

Os sujeitos são expostos na sociedade do consumo a uma série de propagandas que indicam as mercadorias adequadas para que sejam vistos e reconhecidos de acordo com a posição social a que desejam se adequar. A auto estima depende, inclusive, deste reconhecimento e, portanto, quando não é possível realizar de maneira eficiente as tarefas de consumo das mercadorias que sugerem a posição social desejada, os sujeitos inadequados são considerados abaixo do padrão ou inaptos.


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Na sociedade de produtores, os considerados anormais eram aqueles que não conseguiam se adequar a posição de trabalhadores ou soldados e, a partir desta inadequação, eram direcionados aos psicólogos, psiquiatras, (em Estados com certa segurança social) aposentados por invalidez e etc. Na sociedade do consumo, as regras para adequação são muito mais estritas e muitos menos propensas à inclusão, justamente pela responsabilidade da adequação recair sobre o próprio indivíduo. Os consumidores falhos são irrevogavelmente excluídos do convívio legítimo da sociedade dos consumidores, são excluídos inclusive de qualquer tipo de terapia, de qualquer tipo de cuidado ou assistência. O consumo, na sociedade do consumo, é considerado coisa permanente e universalmente acessível.

A regra é simples: na sociedade dos produtores, é possível ser rejeitado numa entrevista de emprego; o elemento base de segurança existencial e social é passível de rejeição. Na sociedade de consumidores, não há qualquer possibilidade de fracassar na compra de um produto ou serviço quando se tem dinheiro para isso; o desempenho do ato de consumo é individual. A exposição de fatores sociais, econômicos ou políticos que poderiam impedir a adequação na sociedade de consumo é inicialmente posta em questão, considerada inválida até que se prove o contrário. Um exemplo é a emergência da ideologia da meritocracia que invalida a explicação estrutural sobre a mobilidade social para compreender a raridade da ascensão social numa sociedade capitalista.

“Consumir”, portanto, significa investir na afiliação social de si próprio, o que, numa sociedade de consumidores, traduz-se em “vendabilidade”: obter qualidades para as quais já existe uma demanda de mercado, ou reciclar as que já se possui, transformando-as em mercadorias para as quais a demanda pode continuar sendo criada.[4]

Neste tipo de sociedade, a mercadoria não foi feita para ser consumida, mas para servir de investimento. O ato de consumo tem relação muito mais estreita com a fabricação do próprio consumidor. O consumo, numa sociedade do consumo, não serve para satisfação de uma necessidade, desejo ou vontade do consumidor relacionado a sua realidade imediata exterior, mas sim

a comodificação ou recomodificação do consumidor: elevar a condição dos consumidores à de mercadorias vendáveis. É, em última instância, por essa razão que passar no teste do consumidor é condição inegociável para a admissão na sociedade que foi remodelada à semelhança do mercado.[5]

Tem-se, então, a primeira característica importante da sociedade de consumo: ela transforma seus membros consumidores em mercadorias. Não só do ponto de vista da venda da força de trabalho, que seria característica principal da mercantilização das pessoas na sociedade de produtores, mas também de modo geral, pois é a possibilidade de consumir e passar no teste de consumo que é a precondição que mantém a sociedade do consumo coesa, que cria instituições e agentes sociais que interpelam indivíduos em sujeito do consumo e que, numa acepção durkheimiana, tornam o consumo um fato social.

Por exemplo:

  1. O consumo de roupas como forma de ser reconhecido enquanto uma pessoa que pertence a um grupo social rico (ternos, roupas sociais, roupas de marcas específicas);
  2. O consumo de aparelhos tecnológicos como forma de ser reconhecido como pessoa integrada às últimas tendências da tecnologia da informação;
  3. O consumo de planos de streaming como forma de se atualizar com as mercadorias de entretenimento mais novas;
  4. O consumo de cursos de auto ajuda, motivação e empreendedorismo, de tal maneira que é possível se identificar com o ideal do sujeito individualizado responsável pelo próprio sucesso;
  5. O consumo de festivais, cinema e teatro, sempre com um celular na mão para tirar fotos e exibi-las nas redes sociais, assim, se identificando com o grupo consumidor de cultura.

A auto fabricação do corpo e das decisões do espírito são, inclusive, parte dos itens da sociedade do consumo: os cursos de coach, liderança, ensinamentos de vida e etc, são decisões pré-montadas, feitas sob encomenda para retirar a responsabilidade da escolha do próprio indivíduo, o guiando pelo trajeto da escola através de uma ideologia da liberdade. Desta forma, tudo se passa como se a decisão pré-montada fosse fruto de uma reflexão e atitude individuais, mas são fórmulas prontas de pequena gestão da vida pessoal.

A liberdade na sociedade do consumo

Zygmunt Bauman entende que a versão liberal da história da humanidade tende a descrevê-la como um desenvolvimento rumo à liberdade pessoal e à racionalidade. A transição de uma sociedade de produtores para uma sociedade de consumidores é considerada, assim, uma etapa final em que as amarras do mundo da produção são gradualmente destruídas para garantir liberdade plena ao novo sujeito do consumo, indivíduo responsável por si, por sua vida, por seu sucesso e, obviamente, por seu fracasso.

Este movimento histórico de transição é considerado como um triunfo do direito à auto afirmação do indivíduo, como a possibilidade última de soberania individual pautada na livre-escolha. Numa sociedade do consumo, o homem não é um animal social ou político, mas é fundamentalmente um animal que escolhe.

Enquanto sujeito que escolhe, ainda se é mercadoria. Tanto o produto como o cliente são mercadorias neste tipo de sociedade e, ainda assim, são membros competitivos de uma sociedade em que a guerra pelo valor social é dominante. É necessário estabelecer um ponto crítico: nas sociedade flageladas pela fome, talvez a busca pelo valor social não seja tão dominante ou tão presente. É necessário colocar em jogo o fato de que tal análise é localizada em países em que as pessoas podem comer. As grandes metrópoles, por sua vez, não são necessariamente homogêneas: classes altas e baixas convivem num território extremamente populoso e convivem em “sociedades diferentes”: uma constituída pela tecnologia e pela informação, outra constituída pelo subproduto da exploração do trabalho no setor de serviços, que é a fome e a completa ausência de satisfação de desejos de consumo que são bombardeados a cada instante.

Entendendo que o sujeito que escolhe é limitado, também fica limitada a teoria do progresso à liberdade e racionalidade. É mais produtivo entender a sociedade do consumo como a colonização da vida pelo mercado de bens de consumo. Nesta colonização, os consumidores são sujeitos de direito do consumo:

Ser um “consumidor de jure” é, para todos os fins práticos, o “fundamento não jurídico da lei”, já que precede todos os pronunciamentos legais que definem e declaram os direitos e obrigações do cidadão. Graças aos alicerces estabelecidos pelos mercados, os legisladores podem estar seguros de que os sujeitos da legislação já são consumidores experientes e consumados: onde quer que interesse, podem tratar a condição de consumidor como um produto da natureza, e não como um construto jurídico – como parte da “natureza humana” e de nossa predileção inata que todas as leis positivas são obrigadas a respeitar, ajudar, obedecer, proteger e servir; como aquele direito humano primordial que fundamenta todos os direitos do cidadão, os tipos de direitos secundários cuja principal tarefa é reconfirmar esse direito básico, primário, como sacrossanto, e torná-lo plena e verdadeiramente inalienável.[6]

Esse primeiro direito é estendido às crianças, que são inseridas como novos sujeitos do consumo por meio da mais variada gama de propagandas voltadas para o consumo infantil. Os direitos do cidadão e os direitos da criança são dominados pela possibilidade de serem consumidores e consumidoras de fato ou em potencial.

Na sociedade do consumo, o mercado de bens de consumo detém o verdadeiro poder de soberania, retirando até mesmo do Estado este exercício. Segundo Bauman, a gradual soberania do mercado cria uma separação entre o poder de agir e a política. Enquanto a política ainda existe sob a égide do Estado, as decisões políticas institucionais não parecem ter o mesmo efeito e sequer eficiência na produção de manobras para definir e apitar as regras do jogo político, social e econômico. O mercado, assim, se torna soberano porque a ação é concentrada em seus agentes privados, transnacionais.

O processo de imigração para a Grã-Bretanha é apontado como exemplo por Bauman: as pessoas aptas a entrar na ilha eram consideradas pessoas “de que o país precisa” segundo órgãos de Estado. Quais são as pessoas que o país precisa? Aquelas que detém certa estabilidade econômica e acúmulo de riquezas que as tornem consumidoras exemplares. Migrantes pobres, desta forma, não fazem parte do interesse do Estado que, no fim, é um interesse do próprio mercado de bens de consumo. A liberdade, então, é um atributo individual que se parece com um dom. Dom daqueles que têm dinheiro para exercê-la.

Considerações finais

A sociedade do consumo promete felicidade a seus membros. Não há uma promessa de alimentação adequada, moradia confortável, pleno emprego ou lazer. Estes itens podem ou não fazer parte da vida das pessoas e, fazendo ou não parte, são todos parte da responsabilidade de cada sujeito em criar sua própria vida da maneira como considera melhor.

Numa sociedade de consumo, o individualismo é tão potente que o próprio conceito de grupo tende a ser dissolvido e substituído pelo conceito de enxame, em que a união dos sujeitos é ocasional, difusa e rapidamente dispersada após se alcançar um objetivo específico. A noção de enxame traduz o que seria o grupo, mas composto por relações frágeis, líquidas. Os enxames se formam conforme a necessidade de cada indivíduo em se transformar em mercadoria através do consumo e logo se dispersam quando esta necessidade, em sua manifestação de consumo de um produto ou serviço concreto, é satisfeita.

A sociedade do consumo é aquela que interpela os indivíduos em sujeitos do consumo e, através deste mecanismo, exclui todos que não conseguem se adequar à tarefa de constituição de si individualmente, solitariamente. O recurso próprio é o único recurso possível de ser utilizado numa sociedade sem referenciais de projeto de sociedade e, acima de tudo, sem um Estado forte o bastante para agir sobre o mercado, não só a partir dos desejos dos agentes do mercado.

E-book Modernidade Líquida: Uma Introdução

Referências

[1] O segredo da sociedade dos consumidores IN Vida para consumo, a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2008. Edição em ePub, s.p.

[2] A sociedade dos consumidores IN Vida para consumo, a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2008. Edição em ePub, s.p.

[3] A sociedade dos consumidores…

[4] A sociedade dos consumidores…

[5] A sociedade dos consumidores…

[6] A sociedade dos consumidores…

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