O dispositivo – Michel Foucault

Entende-se que o dispositivo, através da explicação de Foucault, pode ser compreendido a partir de três características: sua heterogenia, sua emergência e a urgência que pretende responder. O dispositivo é composto por um conjunto de elementos dispersos, sem coerência explícita necessária, elementos discursivos e não discursivos, que se relacionam, resolvem uma urgência específica. O dispositivo é uma ferramenta analítica avessa ao universal, avessa ao atemporal.

Da série “Biopoder“.

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Índice

Introdução

O dispositivo surge para Michel Foucault como ferramenta analítica num momento de relacionar o saber com as relações de poder que o justificam e que são significadas por ele. O termo adquiriu importância com a publicação da História da Sexualidade I: A Vontade de Saber, em 1976, em que o dispositivo da sexualidade é apresentado e ganha capítulo próprio.

A sexualidade em si é definida como um dispositivo:

A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder.[1]

E, de certa forma, um dispositivo que surgiu atendendo uma urgência específica que outros dispositivos localizados não conseguiram mais satisfazer: “Pode-se admitir, sem dúvida, que as relações de sexo tenham dado lugar, em toda sociedade, a um dispositivo de aliança: sistema de matrimônio, de fixação e desenvolvimento dos parentescos, de transmissão dos nomes e dos bens”. que logo perdeu sua importância “à medida que os processos econômicos e as estruturas políticas passaram a não mais encontrar nele um instrumento adequado ou um suporte suficiente”[2].

Ou seja, o dispositivo como aquilo que 1) não é atemporal, 2) está produzindo e se reproduzindo (ou se transformando) no próprio calor das lutas, no estado de forças e 3) não centraliza um processo, mas descreve um nó verificável e histórico de encontro entre saberes e poderes.

O objetivo deste artigo é comentar a noção de dispositivo em Michel Foucault tomando como base sua citação mais célebre proferida em entrevista à Jacques-Alain Miller e outros à Revista Ornicar? n.10 com o nome Le jeu de M. Foucault, contida na coletânea Microfísica do Poder sob o nome Sobre a História da Sexualidade.


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Heterogêneo

Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos.[3]

Primeiro aspecto de coerência e desordem: um conjunto de elementos distintos compõe o dispositivo que, por sua vez, pode ser visto na rede que esses dispositivos formam, pode ser visto na emergência, portanto, de um conjunto de relações minimamente coerentes entre distintos elementos e que, entre eles, forma uma rede de relações entre o saber (esquematicamente: o dito) e o poder (esquematicamente: o não dito).

Esta rede de relações constrói um campo de possibilidades de se praticar o olhar, a enunciação, a construção de sintagmas concretos, a ação social, a compreensão, etc. Este campo forçosamente está em oposição ao Universal. Segundo Deleuze, ao comentar acerca do dispositivo: “O Uno, o Todo, o Verdadeiro, o objeto, o sujeito não são universais, mas processos singulares, de unificação, de totalização, de verificação, de objetivação, de subjetivação, processos imanentes a um dado dispositivo”[4].

Hubert Dreyfus e Paul Rabinow entendem que a explicitação do domínio a que o termo aponta nos possibilita compreender que o dispositivo reúne um conjunto de relações flexíveis e delimita o problema específico que se pretende lidar a partir destas relações[5]. Não há uma inteligência gestora, acima dos efeitos que o próprio funcionamento do dispositivo causaria, não há um sujeito do conhecimento de maneira calculada inferindo os efeitos mais distantes das relações de poder e movendo peças num suposto jogo de xadrez sobre o exercício do poder. Mas há um tipo de intencionalidade:

Como falar de intencionalidade sem sujeito, de estratégia sem estrategista? A resposta deve estar na próprias práticas. Pois são as práticas, localizadas em tecnologias e em diversos lugares separados, que encorpam literalmente aquilo que o analista tenta compreender.[6]

Apesar das relações de poder serem movidas por um cálculo que a atravessa de ponta a ponta, este cálculo intencional não é subjetivo, ou seja, não nasce nem na consciência nem tem nela seu marco principal.

Emergência

Em segundo lugar, gostaria de demarcar a natureza da relação que pode existir entre estes elementos heterogêneos. Sendo assim, tal discurso pode aparecer como programa de uma instituição ou, ao contrário, como elemento que permite justificar e mascarar uma prática que permanece muda; pode ainda funcionar como reinterpretação desta prática, dando−lhe acesso a um novo campo de racionalidade. Em suma, entre estes elementos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, que também podem ser muito diferentes.[7]

Relações de transformação no nível das posições, das funções, construídas entre elementos discursivos ou não. Por exemplo: entre um programa de uma instituição e as práticas que irão permanecer mudas e que estão em tensão com as relações de poder movidas pelo programa. Relações que passam pela regularidade, mas que são compostas pela tensão, pela possibilidade de reinterpretação e reconstrução de enunciados supostamente anacrônicos.

Os dispositivos atuam como ferramentas de constituição e organização de sujeitos, “Foucault pretende identificar e estabelecer precisamente o tipo de inteligibilidade que as práticas apresentam”[8], ou seja, o tipo de regularidade ou dispersão que as práticas apresentam em sua relação.

O problema é: como localizar e compreender um conjunto de práticas coerentes que organizam a realidade social quando não se pode recorrer ao sujeito que a constitui (ou a uma série de sujeitos observando estas práticas), as leis objetivas ou ao tipo de regras que Foucault acreditou serem alternativas evitadas?[9]

O termo dispositivo surge como tentativa de resolver este problema a partir da consideração de sua heterogeneidade, ou seja, de ser constituído por elementos de níveis discursivos e não discursivos; de sua emergência, ou seja, dos tipos de relações que podem ser geradas através destes elementos heterogêneos, sendo assim, relações que não se configuram necessariamente através de uma ordem ou de uma harmonia; por fim, o status de sua urgência é o último elemento salientado por Foucault.

Urgência

Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo de formação que, em um determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante. Este foi o caso, por exemplo, da absorção de uma massa de população flutuante que uma economia de tipo essencialmente mercantilista achava incômoda: existe ai um imperativo estratégico funcionando como matriz de um dispositivo, que pouco a pouco tornou−se o dispositivo de controle−dominação da loucura, da doença mental, da neurose.[10]

Dispositivo enquanto aquilo que:

  1. Responde a uma urgência, ou seja, repete-se aqui o seu caráter histórico e, de certa forma, descartável. O dispositivo não é uma instituição atemporal, a-histórica.
  2. Responde a esta urgência de maneira estratégica, ou seja, no jogo das relações de poder, sendo assim, responde a esta urgência através de um arranjo eficiente das relações que constituem o sujeito e organizam a realidade social. Que marcam o sujeito, que lhe imprimem o signo da sexualidade, por exemplo. O dispositivo não é neutro dentro do jogo das relações de poder, pelo contrário, ele é uma matriz eficiente de produção de subjetividades.

Considerações finais

Entende-se que o dispositivo, através da explicação de Foucault, pode ser compreendido a partir de três características:

  1. Sua heterogenia: a reunião de elementos dispersos, não necessariamente pertencentes a uma mesma esfera de análise nem a um mesmo nível de análise.
  2. Sua emergência: de natureza dispersa e não necessariamente entendida como fruto da coerência entre uma instituição consolidada e a ordem social ou como harmonia entre elementos que funcionam como um organismo.
  3. Sua urgência: o dispositivo é elemento de função estratégica dominante, está no miolo do jogo do poder e resolve problemas locais e temporais.

Pode-se dizer, então, sobre o dispositivo disciplinar, por exemplo, que é 1) heterogêneo por reunir, por exemplo, manuais de técnicas de marcha para soldados até punições para aqueles que não conseguissem atingir o desempenho esperado; 2) emerge como conjunto de práticas dispersas em oficinas, unidades do exército e casas de correção que, aos poucos, são utilizadas de maneira dominante, extrajudicial e passam a fazer parte de um tipo de infrapenalidade a ser detectada em cada indivíduo através de sua indisciplina; 3) responde a uma urgência específica: a tensão entre o poder soberano e a burguesia em ascensão que necessitava de corpos eficientes e dóceis para a produção, para a administração pública, para o exército e etc, além de ainda não ser dominante na esfera política. O mesmo tipo de elaboração também funcionaria aos dispositivos de segurança.


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Referências

[1] FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13ª edição, Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. p. 99.

[2] FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber… p. 99-100.

[3] FOUCAULT, M. Sobre a História da sexualidade. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2000. p. 244.

[4] DELEUZE, Gilles. ¿Que és un dispositivo? In: Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990, pp. 155-161. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento. Disponível em<<http://bit.ly/3rkqH3E>>.

[5] DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 134.

[6] DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: (para além do estruturalismo e da hermenêutica)… p. 205.

[7] FOUCAULT, M. Sobre a História da sexualidade… p. 244.

[8] DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: (para além do estruturalismo e da hermenêutica)… p. 135.

[9] Idem.

[10] FOUCAULT, M. Sobre a História da sexualidade… p. 244.

Cite este artigo:

SIQUEIRA, Vinicius. O dispositivo – Michel Foucault. Colunas Tortas. Acesso em [DD Mês AAAA]. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/o-dispositivo-michel-foucault/>>.

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