O exemplo da disciplina na produção – Foucault

O sistema capitalista aproveita fundamentalmente das disciplinas nascentes no período da Revolução Industrial para conformar e tornar cada trabalhador produtivo. As disciplinas, por sua vez, expressam-se no ambiente de trabalho a partir do complexo de vigilância e punição das infrações dos trabalhadores. A partir de processos concomitantes e articulados, o trabalhador do sistema de produção capitalista é assujeitado a sanções e normas que garantem a reprodução das relações de produção.

Da série “A disciplina em Foucault”.

Índice

Introdução

Como funciona a disciplina? De acordo com Foucault, a disciplina opera primariamente sobre o corpo, pelo menos nos estágios iniciais de seu desenvolvimento. Obviamente, a imposição de uma forma social de controle sobre o corpo se encontra em todas as sociedades. O que distingue as sociedades disciplinares é a forma que este controle assume. O corpo é abordado como um objeto a ser analisado e separado em suas partes constituintes. O objetivo da tecnologia disciplinar é forjar um corpo dócil “que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”.[1]

Rabinow Dreyfus.

O objetivo deste artigo é apresentar a noção de disciplina para Michel Foucault, encontrada principalmente no livro Vigiar e Punir: O Nascimento da Prisão, de 1975, e relacioná-la com o nível da produção dentro do sistema capitalista. Para isso, primeiramente é apresentado o conceito foucaultiano, a noção althusseriana de relações sociais de produção é explorada em seguida e, por fim, explora-se as práticas disciplinares no nível da produção capitalista.


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As disciplinas em Michel Foucault

As disciplinas são todos os métodos que permitem e acionam o controle minucioso das operações do corpo e, à todo instante, impõem uma relação de docilidade-utilidade a ele, na medida em que o assujeita infindavelmente. Ela fabrica o corpo dócil, disciplinado e útil aos desígnios do poder, por isso, produtivo economicamente. Elas são comumente aplicadas em conventos, exércitos, escolas ou oficinas de trabalho. Em suma, em qualquer instituição em que o modelo panóptico possa se encaixar e organizar corpos e tempos[2].

Com as disciplinas, o corpo passou a ser minuciosamente observado, com demora, com técnica e paciência, o que culminou na constituição do corpo dócil, visto em detalhe, controlado e constituído, marcado positivamente pelo poder.

A minúcia dos regulamentos, o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mínimas parcelas da vida e do corpo darão em breve, no quadro da escola, do quartel, do hospital ou da oficina, um conteúdo laicizado, uma racionalidade econômica ou técnica a esse cálculo do ínfimo e do infinito.[3]

É possível construir uma visão do passado em que a formação das disciplinas e a formação dos corpos se entrelaçaram de tal maneira que toda a produção de subjetividade, na visão de Michel Foucault, passou a atravessar dispositivos disciplinares, encobrir os sujeitos em relações de poder e, numa microfísica racional, os colocou no jogo de constituição a que estão submetidos pelo poder, que já não é somente repressivo, mas atua principalmente criando, produzindo formas de ser, fazer e pensar.

Na prática, as relações disciplinares formam sujeitos obedientes (como alunos, que são obedientes aos professores), produtivos (como encarcerados que são “reformados” a partir da produção e temos como exemplo os sistemas carcerários que colocam o emprego do trabalho como processo obrigatório ou opcional aos prisioneiros) e, acima de tudo, dóceis (como soldados assujeitados cegamente às demandas de seus superiores na instituição militar).

As relações de produção

Dos 95.919 detentos que são empregados dentro do sistema penitenciário, 33% (ou 31.653 pessoas) não recebem nada, trabalham de graça.

Além dos que trabalham sem remuneração dentro dos presídios, outros 39.326 detentos que estão empregados recebem valores abaixo dos 702 reais exigidos pela LEP. No total, 75% dos internos que exercem alguma atividade no cárcere recebem menos do que o exigido por lei.[4]

Gil Alessi.

As relações de produção são toda combinação de relações econômicas e sociais decorrentes do modo de produção capitalista, que garantem seu funcionamento, sua reprodução e sua adaptação. Dentro da metáfora proposta por Louis Althusser em seu Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado, elas se situam na base, no local da infraestrutura, enquanto a superestrutura se localiza no topo do edifício imaginado pelo filósofo francês para explicar a relação entre base econômica e superestrutura ideológica. A superestrutura contém dois níveis: o jurídico-político, que corresponde o Estado e o direito, e o ideológico, que corresponde às ideologias moral, familiar, religiosa e etc[5].

A partir da dinâmica entre infraestrutura econômica e superestrutura ideológica, os sujeitos são destinados a satisfazer as necessidades do modo de produção capitalista: precisam se adequar não só às atividades produtivas como também à forma como elas se dão. É necessário obedecer os superiores e exercer o trabalho com qualidade, satisfazer-se com as regras estabelecidas pelos mecanismos de formalização da relação de trabalho (como a carteira de trabalho, os contratos de prestação de serviço ou as negociações sempre frustantes de dissídio). Além disso, também é necessário internalizar a dinâmica produção-consumo: trabalhar para consumir e consumir para viver.

O indivíduo é interpelado como sujeito (livre) para que se submeta livremente às ordens do Sujeito, portanto, para que aceite (livremente) a sua sujeição, portanto, para que “realize sozinho” os gestos e os atos da sua sujeição. Só existem sujeitos para e pela sua sujeição. É por isso que “andam sozinhos”.[6]

Os indivíduos são interpelados em sujeitos a partir da ideologia e aprendem a reproduzir as relações de sua própria sujeição, seja através da escola, do exército, da oficina:

Ora, é através da aprendizagem de alguns saberes práticos (savoir-faire) envolvidos na inculcação massiva da ideologia da classe dominante, que são em grande parte reproduzidas as relações de produção de uma formação social capitalista, isto é, as relações de explorados com exploradores e de exploradores com explorados.[7]

A disciplina parece fazer parte dos mecanismos de constituição do sujeito da ideologia dominante, do sujeito capaz de produzir, útil aos desígnios do poder, ordeiro e obediente aos seus superiores no trabalho, aos pais, ao padre.

A disciplina e o trabalho

Enter o fim do século XV e início do século XVI, a pobreza de camponeses sem terra foi criminalizada a partir da criação de uma legislação sanguinária, que previsa o uso de açoites, prisão, trabalhos forçados e até mesmo execução. As leis para eliminar a mendicância foram o início do caminho para a burguesia emergente utilizar o aparelho de Estado para controlar o limite salarial dos trabalhadores, a partir de leis de compressão salarial[8].

Também com objetivo de reprimir a mendicância e a ociosidade, os sistemas carcerários foram criados e se espalharam pela Europa e, a partir do fim do século XVIII, a detenção se tornou a pena por excelência. A prisão, por sua vez, nasce com objetivo de reformar indivíduos desviantes, de ser um aparelho de transformação dos indivíduos. Até aqui, o nível jurídico-econômico da pena e da punição se realiza. Isso não acontece à toa: o sistema capitalista, ao concentrar os meios de produção, concentra também as forças produtivas, acumula corpos e sobrepõe indivíduos.

Em conjunto com a acumulação de capital, há também a acumulação de homens e a primeira depende da disciplina na produção a partir da divisão do trabalho capitalista. A fábrica é o local em que o patrão é o legislador que estabelece um código que o operário deve seguir e utiliza instrumentos de disciplina, vigilância e normalização. Além disso, a fábrica é dividida entre os trabalhadores e os capatazes, supervisores que praticam a punição específica para o erro específico através de um manual impessoal de punição corporativa. As punições aos operários podem ter custos pecuniários que, sagazmente, cobrem até mesmo o custo do capitalista em relação à força de trabalho vendida pelos trabalhadores assalariados[9].

Se a maquinaria da produção capitalista em ascensão exigia a disciplina dos corpos submetidos ao trabalho, a disciplina é extremamente funcional à produção capitalista. Os operários são divididos espacialmente, distribuídos no local de trabalho, articulados em torno do aparelho de produção e submetidos à dinâmica mecanizada da produção industrial.

Economizar tempo, quer dizer, trabalhar mais no mesmo período de tempo, este parece ser o lema da sociedade capitalista. Para aumentar o grau de intensidade do trabalho, o capital utiliza formas de pagamento como, por exemplo, o salário por peça. Mas não há dúvida de que o movimento acelerado e contínuo das máquinas exige do operário a mais rigorosa disciplina. É preciso mais esforço, mais atenção, mais regularidade, mais rapidez, mais eficiência, pois, afinal, não se pode perder um só instante do tempo de trabalho.[10]

As disciplinas, na produção, funcionam como aparelhos que adicionam e capitalizam o tempo dos indivíduos dentro do espaço de trabalho, pois torna o corpo útil, treinado para o serviço e para a disciplina da produção. O próprio capital se movimenta em direção à extração máxima do tempo de trabalho do trabalhador, assim como a disciplina, que se instala para aperfeiçoar os movimentos, torná-los rápidos e regulares, rítmicos e constantes.

Considerações finais

O sistema capitalista aproveita fundamentalmente das disciplinas nascentes no período da Revolução Industrial para conformar e tornar cada trabalhador produtivo. O modo de produção capitalista, assim, se porta como um complexo de produção econômica, mas também como um modo de produção de formas vida[11].

A extração de mais-valia no sistema capitalista foi, então, dependente de um tipo complexo de mecanismo disciplinar que marcava o sujeito no nível do corpo, a partir de:

Processos coetâneos, essencialmente conectados, articulando para isso não apenas um novo modo de produzir, mas também um multifacetado sistema de controle indispensável à extração da mais-valia e do lucro, bem como ao assujeitamento dos indivíduos a um processo intensificado de exploração e subordinação.[12]

A disciplina aumenta a produtividade, a força do corpo enquanto indivíduo no processo de produção capitalista e, ao mesmo tempo, diminui suas forças políticas, suas forças de rebeldia e de resistência. Separa indivíduos e normaliza condutas assujeitadas aos desígnios do poder.

Referências

[1] DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Tradução de Vera Porto Carrero – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 169.

[2] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. 20ª ed. São Paulo: Vozes, 1999, p.118.

[3] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.121.

[4] ALESSI, Gil. O lucrativo negócio de empregar presos de graça ou pagando menos do que a lei determina. El País. Acesso em 8 dez 2019. Disponível em <<http://bit.ly/35f6ukQ>>.

[5] ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. 3 ed. Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1980.

[6] ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado… p.113.

[7] ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado… p.66-67.

[8] MENEGHETTI, Gustavo; SAMPAIO, Simone S. A disciplina como elemento constitutivo do modo de produção capitalista. R. Katál., Florianópolis, v. 19, n. 1, p. 135-142 jan./jun. 2016.

[9] MENEGHETTI, Gustavo; SAMPAIO, Simone S. A disciplina como elemento constitutivo do modo de produção capitalista…

[10] MENEGHETTI, Gustavo; SAMPAIO, Simone S. A disciplina como elemento constitutivo do modo de produção capitalista…

[11] MENEGHETTI, Gustavo; SAMPAIO, Simone S. A disciplina como elemento constitutivo do modo de produção capitalista…

[12] MENEGHETTI, Gustavo; SAMPAIO, Simone S. A disciplina como elemento constitutivo do modo de produção capitalista…

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