Formação discursiva, formação ideológica e interdiscurso, por J-J. Courtine – DROPS #47

COURTINE, Jean-Jacques. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Paulo: EdUFSCAR, 2009, p. 70-73.

1. “Formação discursiva” nos trabalhos de M. Pêcheux

A problemática de Pêcheux comporta dois aspectos ligados, mas distintos, e isto desde a publicação de 1969 de Análise automática do discurso. Esses dois elementos viram suas relações variarem e sua relativa importância inverter-se no decorrer das sucessivas transformações pelas quais passou o conjunto da problemática. Nesses trabalhos, com efeito, um corpus de proposições teórica, ou “teoria do discurso”, coexiste com um método de análise do discurso, a AAD. O título da obra de 1969 indica que a primeira fase desses trabalhos foi essencialmente metodológica. A distância entre teoria e método vai inverter-se progressivamente a partir de 1971, sob o efeito, notadamente, do trabalho de Althusser (1970) de um lado, e da referência teórica ao conceito de FD de outro, mas sem que o trabalho teórico desse conceito tenha acarretado consequências para as práticas de reunião e de organização de dados discursivos. Isso vai nos levar a dissociar esses dois planos e a tentar precisar suas relações no estado atual dos trabalhos de Pêcheux.


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1.1 Formação ideológica e FD

É sob a modalidade do que se conhece – na perspectiva das teses althusserianas sobre a instância ideológicacomo o assujeitamento (ou interpelação) do sujeito como sujeito ideológico que a instância ideológica contribui para a reprodução das relações sociais, “de tal sorte que cada um seja conduzido, sem perceber e tendo a impressão de exercer sua livre vontade, a tomar lugar em uma ou noutra das duas classes sociais antagônicas do modo de produção” (Pêcheux e Fuchs, A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas, 1975).

É pela existência de aparelhos ideológicos de Estado que essa reprodução está materialmente assegurada. Trata-se de realidades complexas que colocam em jogo práticas associadas a relações de lugares (determinados pelas relações de classes). Trata-se igualmente de realidades contraditórias, na medida em que, em uma dada conjuntura, as relações antagônicas de classes determinam o afrontamento, no interior desses aparelhos, de

posições políticas e ideológicas que não se devem aos indivíduos, mas que se organizam em formações mantendo entre si relações de antagonismo, de aliança ou de dominação. Falar-se-á de formação ideológica para caracterizar um elemento suscetível de intervir, como uma força confrontada a outras formas na conjuntura ideológica característica de uma formação social num dado momento: cada formação ideológica constitui assim um conjunto complexo de atitudes e representações que não são nem individuais nem universais, mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas em relação às outras (Haroche et al, La sémantique et la coupure saussurienne: langue, langage, discours. Langages, 1971).

É nesse quadro que é considerada a relação das ideologias com o discurso. Se as ideologias têm uma “existência material”, o discursivo será considerado como um de seus aspectos materiais. Isso equivale a dizer que as formações ideológicas

Comportam, necessariamente, como um de seus componentes, uma ou várias formações discursivas interligadas que determinam o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de um relatório, de um programa, etc.), a partir de uma dada posição em uma conjuntura, em outras palavras, em uma certa relação de lugares interna a um aparelho ideológico e inscrita em uma relação de classes. Diremos assim que toda formação discursiva diz respeito a condições de produção específicas, identificáveis a partir do que acabamos de designar (Pêcheux e Fuchs, A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas, 1975).

1.2 FD e interdiscurso

Pode-se tentar extrair, a partir do que precede, as proposições que articulam a relação das “formações ideológicas” (FI) com as (FD):

  1. A instância ideológica estabelece, sob a forma de uma contradição desigual no seio de aparelhos, uma combinação complexa de elementos dos quais cada um é uma FI. As FI têm um caráter “regional” ou específico e comportam posições de classe. O que explica que se possa, a partir de FI antagônicas, falar dos mesmo “objetos” (a democracia, a liberdade, o pluralismo, etc.) e deles falar “diferentemente” (“as palavras mudam de sentido em função das posições daqueles que as empregam” (Haroche et al, La sémantique et la coupure saussurienne: langue, langage, discours. Langages, 1971)).
  2. As FD são componentes interligados das FI. Isso implica que as FD que constituem a mesma FI possam ser distinguidas umas das outras (em razão, por exemplo, de sua “especialização”), mas sobretudo que as FD que dependem de FI antagônicas, aliadas, … mantêm entre si relações contraditórias que se inscrevem necessariamente na própria materialidade dessas FD, isto é, em sua materialidade linguística. Se uma FD é o que, em uma dada FI e em uma conjuntura, determina “o que pode e deve ser dito” (o que equivale a dizer que as palavras, expressões, proposições recebem seu sentido da FD na qual são produzidas); convém acrescentar que essa característica não é isolada das relações contraditórias que uma FD estabelece com outra FD.
  3. É no interior de uma FD que se realiza o “assujeitamento” do sujeito (ideológico) do discurso. Pode-se designar pelo termo de processo discursivo “o sistema de relações de substituição, paráfrases, sinônimos, etc., funcionando entre elementos linguísticos” (Pêcheux, Semântica e discurso, 1975) que aparece como a matriz de constituição do sentido para um sujeito falante no interior de uma FD. Se uma dada FD não é isolável das relações de desigualdade, de contradição ou de subordinação que marcam sua depednência em relação ao “todo complexo com dominante” (Idem) das FD, intrincado no complexo da instância ideológica, e se nomeamos “interdiscurso” esse todo complexo com dominante das FD, então é preciso admitir que o estudo de um processo discursivo no interior de uma dada FD não é dissociável do estudo da determinação desse processo discursivo por seu interdiscurso. Isso implica, notadamente, que o descompasso entre duas FD, de tal modo que a primeira sirva de “matéria prima representacional” (Pêcheux e Fuchs, A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas, 1975) para a segunda, deve ser necessariamente levado em conta tanto em teoria como em análise do discurso e que “o próprio de toda FD é dissimular, na transparência do sentido que nela se forma, (…) o fato de que ‘isso fala’ sempre antes, em outro lugar, ou independentemente” (Pêcheux, Semântica e discurso, 1975), isto é, sob a dependência do interdiscurso.

Jean-Jacques Courtine.

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