Cenas de enunciação – Dominique Maingueneau

As cenas de enunciação definem níveis de práticas verbais e das expectativas que se pode ter da prática dos coenunciadores. Por fim, a cenografia, elemento que é imediato em uma dada situação específica, localiza os itens que serão condição para o exercício da enunciação num gênero que, ao mesmo tempo, ao ser  praticado, legitima a condição cenográfica posta. 

Índice

Introdução

Quando um discurso é praticado, quando a fala é conduzida à realidade num momento em que a comunicação tem seu lugar, há algo que possibilita que os sentidos disputem sua posição no gesto de leitura, na interpretação, na troca entre os coenunciadores.

Um tipo de discurso e um gênero específico emergem na realidade comunicacional, emergem como elementos discursivos que permite certa inteligibilidade de todos os elementos linguísticos e sociais que circulam no ato da fala, na prática discursiva. Há um contexto específico que é construído inclusive pelo gênero do discurso, pelos elementos que são importantes para a produção e para a validade de um discurso praticado.

Entretanto, há uma dinâmica que configura todos os elementos em jogo. Que os coloca em relação e organiza suas possibilidades e os valida. O objetivo deste artigo é descrever a noção de cenas de enunciação segundo Dominique Maingueneau aborda em sua obra.

Os três níveis

Se tomarmos como exemplo a comunicação do Ministério da Saúde em que classifica, durante a pandemia, os profissionais da saúde e os convocam a trabalhares na linha de frente de combate à covid-19, perceberemos algumas características que podem o classificar no interior de uma cena de enunciação:

Comunicação do Ministério da Saúde:

Texto: “A capa do Zorro é preta. A do Superman é vermelha. A do Thor também. A do Batman tem um morcego. A sua é branca. Vista o jaleco para essa missão. Se você é da saúde e já está trabalhando, nosso muito obrigado. Se é da saúde e pode ajudar, precisamos muito de você”.

  • Pode-se dizer que a cena de enunciação é relacionada ao tipo de discurso, uma propaganda institucional.
  • Pode-se dizer que a cena de enunciação é relacionada ao gênero do discurso: uma propaganda de recrutamento voluntário.
  • Pode-se dizer que a cena de enunciação é relacionada aos elementos que compõe este vídeo e seu conteúdo: um chamamento individualizado a um profissional espectador que, para seu convencimento, é classificado como possível herói da saúde, enquanto os recrutados já são assim reconhecidos.

O profissional da saúde que assiste ao vídeo encontra-se implicado nas três cenas classificadas acima: 1) trata-se de um sujeito interpelado por uma propaganda institucional, 2) trata-se de um sujeito interpelado a um recrutamento voluntário por meio do convencimento, 3) trata-se de um sujeito interpelado a ser herói.

Essas três cenas são classificadas respectivamente por Maingueneau[1] como 1) cena englobante, 2) cena genérica e 3) cenografia.

O termo “cena” apresenta ainda a vantagem de poder referir ao mesmo tempo um quadro e um processo: ela é, ao mesmo tempo, o espaço bem delimitado no qual são representadas as peças (“na cena se encontra…”, “o rei entra em cena”), e as sequências das ações, verbais e não verbais que habitam esse espaço (“ao longo da cena”, “uma cena doméstica”).[2]

Um quadro e um processo vistos do interior, o que distingue o conceito dos de situação de enunciação, próprio da linguística e que “não é uma situação de comunicação socialmente descritível, mas o sistema no qual se definem as três posições fundamentais do enunciador, do coenunciador e da não pessoa[3], e de situação de comunicação, próprio da sociologia e que observa a situação do exterior.

Na medida em que “um texto é na verdade o rastro de um discurso em que a fala é encenada”[4], o entendimento das diferentes cenas é o entendimento do processo de enunciação do discurso pelo falante e, ao mesmo tempo, das condições que permitem a enunciação adequada ao discurso. Por fim, o entendimento da cena é, também, o entendimento da própria legitimidade do discurso que é reforçada na sua enunciação, na sua encenação.


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A cena englobante

A cena englobante é a delimitação dos usos e das expectativas a um tipo de discurso, sendo que este é definido como uma repartição associada aos setores da sociedade. Os tipos de discurso são

associados a vastos setores de atividade social. Assim, o “talk show” constitui um gênero de discurso no interior do tipo de discurso “televisivo” que, por sua vez, faz parte de um conjunto mais vasto, o tipo de discurso “midiático” em que figurariam também o tipo de discurso radiofônico e o da imprensa escrita.[5]

O valor analítico da cena englobante está relacionado ao setor da sociedade, bem estabelecido, que pode localizá-la para observação, mas também está na interpelação do sujeito em sujeito do tipo de discurso definido pela cena. Segundo Maingueneau,

quando recebemos um folheto na rua, devemos determinar a que título ele nos interpela, se ele é resultante do discurso político, publicitário, religioso… Uma cena englobante política, por exemplo, implica uma relação entre um “cidadão” dirigindo-se a “cidadãos” sobre temas de interesse coletivo.[6]

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É possível, por exemplo, que mais de uma cena englobante seja implicada numa enunciação específica. Por exemplo, numa entrevista dos candidatos a presidência da república nos jornais televisivos de grande audiência, a cena englobante midiática e política são implicadas na comunicação. Entretanto, geralmente, quando uma entrevista é transformada em texto, como nos livros Ditos e Escritos, de Michel Foucault, a cena englobante midiática é esquecida, inclusive a autoria é creditada somente ao entrevistado, e o enunciado passa a pertencer à cena englobante que utiliza como midium o texto impresso, livro editado em editoras de filosofia, a autoria é individualizada, portanto, à cena englobante filosófica. Agora, não são mais entrevistas, mas são textos de filosofia que, na cenografia específica do livro, estão dispostos como numa entrevista.

A caracterização englobante é mínima e define a situação dos coenunciadores num quadro espaço-temporal, entretanto, não é suficiente, pois um coenunciador interpelado pelo tipo de discurso político, ou propagandístico, não está lidando com a política em geral ou com a propaganda em geral, “mas sim com gêneros de discurso particulares”[7]. Cada gênero do discurso define os próprios papeis que são encenados em sua prática, como no exemplo do Ministério da Saúde no início deste artigo, em que a comunicação acontece do Estado (não de uma pessoa) a profissionais da saúde (não a qualquer cidadão). Essa especificidade está localizada nas cenas genéricas.

Cena genérica

A cena genérica se refere aos gêneros do discurso, “realidade tangível, imediata”[8] para os usuários do discurso. As expectativas de gêneros são mais restritas e tendem a classificar cada particularidade do gênero praticado por meio de normas. Cada gênero suscita uma série de normas que lhe são associadas, pois sua realidade concreta depende de:

  • Uma ou mais finalidades: supõe-se que os locutores sejam capazes de atribuir uma (ou várias) finalidade(s) à atividade da qual participam, para poder regular suas estratégias de produção e de interpretação dos enunciados”[9]. Essa atribuição é, geralmente, espontânea e não é definidora do gênero, pois os gêneros do discurso são instituições com certa autonomia em relação às representações que possam fazer deles. Eles são anteriores aos sujeitos e persistem em sua existência para além da vontade ou permanência de qualquer sujeito.
  • Papéis para os parceiros: em um gênero de discurso, a fala vai de um papel a outro. A cada um desses papéis são atribuídos direitos e deveres, bem como competências específicas”[10]. Esses papéis, novamente, não são necessariamente normas conscientes que são consultadas para a prática verbal. São normas constituintes dos sujeitos coenunciadores, como a postura de um professor, que utiliza um comportamento discursivo de narração ou interrogação e tem uma atitude calma ou entusiasmada durante a enunciação. Ao mesmo tempo, o aluno, que tem na escuta uma postura na cena genérica, mas que também é designado a ele a prática da interrogação e a necessidade da calma ou da rebeldia, por exemplo.
  • Um lugar apropriado para seu sucesso: pode se tratar de um lugar fisicamente descritível (uma escola, um tribunal, uma sala de banquete…), mas, para a Web, para emissões de rádio e de TV, para textos escritos, trata-se de espaços de outro tipo”[11]. Alguns gêneros impõe o seu lugar de sucesso, como uma prática verbal em uma igreja durante um casamento ou nos tribunais para julgamentos; mas há gêneros que não delimitam um lugar específico, como uma despedida de um funcionário que está a se aposentar ou uma conversa casual entre amigos. Mesmo assim, a escolha do lugar não é indiferente, pois a escolha errada impossibilita a prática verbal, como numa conversa casual feita no interior de uma sala de velório.
  • Um modo de inscrição na temporalidade: numa conversa casual, os turnos de fala não necessariamente são regulares ou periódicos, podem ser atravessados ou extremamente longos, enquanto que numa entrevista, são bem delimitados e marcados pelo diálogo.
  • Um suporte: pois o texto é indissociável do modo de sua existência. Retomo o exemplo dos Ditos e Escritos de Michel Foucault: a transcrição e impressão em livros de filosofia de suas entrevistas a transformam em outro elemento, não mais em entrevista midiática em canal de TV.
  • Uma composição: certa consciência “mais ou menos clara”[12] das partes de um gênero e de sua composição, ou seja, certa competência em desencadear o discurso em sua forma estabelecida.
  • Um uso específico de recursos linguísticos: quando um locutor está inserido e adequado ao gênero do discurso que pretende encenar, “tem à disposição um repertório mais ou menos extenso de variedades linguísticas (quer se trate de escolher entre diversas línguas ou dialetos, ou entre diversos registros no interior da mesma língua) e cada gênero de discurso impõe, tacitamente ou não, restrições na matéria”[13]. Por exemplo, uma apostila escolar exclui a possibilidade do uso de uma língua familiar ou casual, enquanto um texto restritamente científico inclui a linguagem objetiva como seu padrão.

Mesmo assim, a imediaticidade de um texto ou de uma comunicação não coloca os coenunciadores em contato com o quadro cênico. Um leitor ou ouvinte se confronta com uma cenografia.

Cenografia

A cenografia é aquilo que emerge concretamente e “leva o quadro cênico a se deslocar para o segundo plano”[14], pois ao ato de enunciar não se resume a ativar normas prévias institucionais, mas sim de “construir sobre essa base uma encenação singular da enunciação”[15]. A cenografia é esta singularidade expressa concreta pelo desenrolar da enunciação. Maingueneau exemplifica através da literatura:

Tomemos o exemplo de uma novela; a história pode ser contada de múltiplas maneiras: pode ser um marujo contando suas aventuras a um estrangeiro, um viajante que narra numa carta a um amigo algum episódio por que acaba de passar, um narrador invisível que participa de uma refeição e delega a narrativa a um conviva etc. Da mesma maneira, um texto membro da cena genérica romanesca pode ser enunciado, por exemplo, por meio da cenografia do diário íntimo, do relato de viagem, da conversa ao pé da fogueira, da correspondência epistolar etc.[16]

Como é possível de concluir a partir da citação acima, a cenografia não se designa como tal, mas se mostra. Os indício do texto, da enunciação, que definem a cenografia não estão no conteúdo dito possivelmente sobre si mesma, mas naquilo que concretamente é exibido. Ou seja, um texto que fala diretamente sobre sua cenografia não está, assim, a declarando, mas está tornado o ato de falar sobre a própria cenografia um elemento cenográfico.

E o sufixo “grafia” ajuda a compreender essa característica: a cenografia é aquilo que se mostra e, ao mostrar, valida a própria enunciação que precisou dela para existir: “é a cena de fala que o discurso pressupõe para poder ser enunciado e que em troca ele precisa validar através de sua próprio enunciação”[17].

Ou seja, a cenografia é a organização que o sujeito faz da situação que será base do ato de enunciar e, ao mesmo tempo, é a condição que é legitimada pela enunciação como base legítima deste mesmo ato. Trata-se de um processo de enlaçamento paradoxal, sendo a cenografia, ao mesmo tempo, fonte do discurso e aquilo que ele engendra[18].

Considerações finais

De qualquer forma, há maneiras da cenografia se relacionar com o gênero que demonstra a possibilidade da tensão: uma cenografia pode ser exógena e endógena, ou seja, pode importar uma outra cena genérica ou se utilizar restritamente da cena do gênero imposto[19].

Por exemplo, a carta para Joseph Bloch, de Karl Marx, se utiliza do gênero epistolar para construir sua cenografia, enquanto seu conteúdo participa do gênero de crítica em filosofia/ciências sociais. Já um discurso político num comício não exige a superposição de outra cena genérica para acontecer: o discurso político está sendo praticado em seus limites.

As cenas de enunciação, assim, definem níveis de práticas verbais e das expectativas que se pode ter da prática dos coenunciadores. Por fim, a cenografia, elemento que é imediato em uma dada situação específica, localiza os itens que serão condição para o exercício da enunciação num gênero que, ao mesmo tempo, ao ser  praticado, legitima a condição cenográfica posta.

Referências

[1] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2004, p. 85-86.

[2] MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso. Tradução: Sírio Possenti, 1. ed, São Paulo: Parábola Editorial, 2015, p. 117.

[3] MAINGUENEAU, Dominique. A cena de enunciação IN Discurso literário, Edição do Kindle, s.p.

[4] MAINGUENEAU, Dominique. A cena de enunciação…

[5] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação… p. 61-62.

[6] MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso… p. 118-119.

[7] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação… p. 86.

[8] MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso… p. 120.

[9] MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso… p. 120-121.

[10] MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso… p. 121.

[11] MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso… p. 121.

[12] MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso… p. 122.

[13] MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso… p. 122.

[14] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação… p. 87.

[15] MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso… p. 122.

[16] MAINGUENEAU, Dominique. A cena de enunciação…

[17] MAINGUENEAU, Dominique. A cena de enunciação…

[18] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação… p. 87.

[19] MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso… p. 125.

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