Michel Pêcheux nasceu em 1938, tornou-se filósofo na Escola Normal Superior em 1963 e teve como dois fortes mentores intelectuais Louis Althusser e Georges Canguilhem. O último lhe apoiou na entrada no laboratório de psicologia social do Centre national de la recherche scientifique (CNRS), em 1966[1].
Em 1969 inicia seus desenvolvimentos acerca da análise do discurso e é considerado seu fundador. Análise do discurso de Michel Pêcheux, de linha francesa, teoriza “como a linguagem é materializada na ideologia e como esta se manifesta na linguagem”[2], assinala Eni Orlandi. O discurso seria o lugar particular onde essa relação é observada com privilégio, por meio do foco nos funcionamentos discursivos e sua ligação com as determinações históricas dos processos de significação.
A emergência dos estudos discursivos ocorre em contraposição ao formalismo hermético da linguagem da época, que ignorava a exterioridade na concepção do sentido, mas também se opunha ao estruturalismo, que negava o sujeito e a situação. Assim, “a linguagem não é mais concebida como apenas um sistema de regras formais com os estudos discursivos. A linguagem é pensada em sua prática, atribuindo valor ao trabalho com o simbólico, com a divisão política dos sentidos, visto que o sentido é movente e instável”[3].
Desta forma, o objeto de estudo passa a ser o discurso, objeto que pede uma observação de seu exterior, que não se limita à sequência de palavras fechadas em si presentes numa frase. Para realizar este tipo de estudo, a análise do discurso de Michel Pêcheux se associa a três regiões do conhecimento: 1) o materialismo histórico, para compreender as formações sociais e a ideologia; 2) a linguística, para compreender mecanismos sintáticos e processos de enunciação; 3) a teoria do discurso, para compreender a determinação histórica dos processos semânticos[4]. O resultado desta união é um procedimento de análise que permite analisar a textualização do político, permite compreender o que liga o simbólico com as relações de poder[5].
Inicialmente, a questão colocada por Pêcheux foi acerca das práticas em ciências sociais. Segundo o filósofo, estas ciências estariam reproduzindo a ideologia que lhes gestou, sem romper com o estatuto ideológico e, portanto, ascender a uma ciência verdadeira. A não transparência da linguagem foi observada nos objetos e nas práticas das ciências sociais[6].
A não transparência da linguagem é uma conclusão das observações acerca do discurso e do sujeito, da percepção de que o sujeito não é criador de seus significados e de que a linguagem não é fechada em si, detentora da verdade do sentido. “Nessa ótica pêcheuxtiana, o sentido não está claro, óbvio ou transparente, uma vez que é preciso considerar opacidade da materialidade aí presente e já que o sujeito não é estratégico ou origem do dizer”[7]. O sujeito, na análise do discurso pêcheuxtiana, não é origem dos sentidos que move e nem é anulado na análise, o sujeito não é onipotente, mas também não é um lugar estático que uma língua estruturada seria praticada sem margem para a falha.
Para Pêcheux, o sujeito do discurso não se pertence, ele se constitui pelo esquecimento daquilo que o determina: significação do fenômeno da interpelação do indivíduo em sujeito do seu próprio discurso […] O indivíduo é interpelado em sujeito pela identificação com uma formação discursiva dominante, já que o sujeito é sobredeterminado pelos pré-construídos.[8]
O sujeito, assim, é resultado de uma relação entre ideologia e história, sempre dependente do outro, na medida em que não é origem do sentido. O sujeito é, neste sentido estrito, incompleto. No percurso de análise, o sujeito é tratado como posição: posição-sujeito, objeto imaginário que ocupa um espaço específico no processo discursivo[9].
Já o discurso, é “definido por este autor como sendo efeito de sentidos entre locutores, um objeto socio-histórico em que o linguístico está pressuposto”[10]. A linguagem, nesta visão, é passível de ambiguidade e o discurso é a inserção da língua na história. Sendo assim, a constituição do discurso se dá através da tríade língua, sujeito e história[11]. Relacionando estes três elementos, entende-se que o discurso não é sinônimo de transmissão de informação, como nas teorias comunicacionais, não é um processo linear, sequencial. O discurso é justamente o efeito que acontece entre locutores, ou seja, é o resultado de certa regularidade do dizer, mas que não é harmônica em relação ao seu outro.
A análise do discurso pêcheuxtiana concebe o discurso como tendo suporte de uma formação discursiva, que, para manifestar o discurso, implica aos sujeitos um dever dizer e um poder dizer. A formação discursiva determina o que pode e deve ser dito por um sujeito quando pratica o discurso de seu interior. Mas o sujeito não é somente ligado ao interior de uma formação discursiva: o interdiscurso, aquilo que rodeia as formações discursivas como memórias, aquilo que permite a circulação dos sentidos e relaciona diferentes momentos de falha quando sujeitos interpelados por formações discursivas diferentes falam sobre o mesmo objeto (que é um objeto discursivo diferente por meio do estatuto que adquire em cada formação discursiva).
Assim, as pessoas são associadas à análise do discurso por meio do conceito de sujeito do discurso, interpelado pelas formações discursivas e que produzem sentido por meio da ideologia e do inconsciente. Já o interdiscurso é aquilo que se articula com as formações ideológicas, que são materializadas no discurso pelas formações discursivas.
O discurso, então, é um objeto histórico-ideológico produzido de maneira social através da língua. A língua é a materialidade do discurso, mas as formações discursivas são seu manual[12].
Abaixo, outros artigos introdutórios do Colunas Tortas que fornecem uma visão geral sobre a análise do discurso de Michel Pêcheux:
- Quais habilidades se espera de um analista do discurso, por Eni Orlandi;
- Qual a importância da análise do discurso, por Eni Orlandi;
- O que a análise do discurso investiga? Por Eni Orlandi
Referências
[1] MALDIDIER, D. A inquietação do discurso: reler Michel Pêcheux hoje. Campinas: Pontes, 2017, p. 17.
[2] ORLANDI, Eni. Michel Pêcheux e a análise do discurso. Revista Estudos da Língua(gem), N.1, 2005, p. 10.
[3] BRASIL, L. L. Michel Pêcheux e a teoria da análise do discurso: desdobramentos importantes para a compreensão de uma tipologia discursiva. Linguagem: Estudos e Pesquisas, Goiânia, v. 15, n. 1, 2011, p. 172.
[4] BRASIL, L. L. Michel Pêcheux e a teoria da análise do discurso: desdobramentos importantes para a compreensão de uma tipologia discursiva… p. 172-173.
[5] ORLANDI, Eni. Michel Pêcheux e a análise do discurso… p. 10.
[6] ORLANDI, Eni. Michel Pêcheux e a análise do discurso… p. 11.
[7] BRASIL, L. L. Michel Pêcheux e a teoria da análise do discurso: desdobramentos importantes para a compreensão de uma tipologia discursiva… p. 173.
[8] BRASIL, L. L. Michel Pêcheux e a teoria da análise do discurso: desdobramentos importantes para a compreensão de uma tipologia discursiva… p. 173.
[9] BRASIL, L. L. Michel Pêcheux e a teoria da análise do discurso: desdobramentos importantes para a compreensão de uma tipologia discursiva… p. 174.
[10] ORLANDI, Eni. Michel Pêcheux e a análise do discurso… p. 11.
[11] BRASIL, L. L. Michel Pêcheux e a teoria da análise do discurso: desdobramentos importantes para a compreensão de uma tipologia discursiva… p. 176.
[12] BRASIL, L. L. Michel Pêcheux e a teoria da análise do discurso: desdobramentos importantes para a compreensão de uma tipologia discursiva… p. 178.
Instagram: @poressechaopradormir
Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudo do biopoder nos textos foucaultianos.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.