O discurso – Dominique Maingueneau

Entende-se que o emprego do termo discurso assume um duplo alcance, pois designa objetos que estão em análise (por exemplo, o discurso sobre a loucura na Idade Clássica), mas também exemplifica determinada visão que se tem sobre eles: quando se diz que a loucura é um discurso, se diz que a loucura será tratada como discurso, será um objeto teórico da análise do discurso, diz-se que ela mobiliza certas ideias-força, que está para além de uma opinião pessoal ou de um texto acadêmico, mas se situa também num dispositivo de comunicação, às normas que são praticadas através dele e aos grupos e sujeitos que adquirem legitimidade por falarem através do discurso analisado.

Índice

Introdução

Dominique Maingueneau apresenta a noção de discurso por meio de uma reflexão acerca do uso que ela teria através dos estudos de análise do discurso. O autor tem o esforço de exibir certas ideias-força que viabilizam a utilização da noção de discurso por analistas, ou seja, apresenta um panorama desvinculado a um arcabouço epistemológico restrito e associado à prática de análise.

Desta forma, sua descrição da noção de discurso, ao ser vinculada ao uso do termo, é ligada aos limites que ela pode ter e ultrapassar dentro de uma análise. Através de sua exposição, o autor promove um entendimento que mantém certa aproximação com a linguística, mas adentra ao mundo da teoria social e da filosofia.

Segundo o autor, há um duplo significado nos diferentes empregos da noção:

Pode designar tanto o sistema que permite produzir um conjunto de textos, quanto o próprio conjunto de textos produzidos: “o discurso comunista” é tanto o conjunto de textos produzidos por comunistas, quanto o sistema que permite produzir esses textos e outros ainda, igualmente qualificados como textos comunistas.[1]

O autor também apresenta as formas contável e incontável de se referir ao discurso:

Como substantivo não contável (“isto deriva do discurso”, “o discurso estrutura nossas crenças”…);

Como substantivo contável que pode referir acontecimentos de fala (“cada discurso é particular”, “os discursos se inscrevem em contextos”…) ou conjuntos textuais mais ou menos vastos (“os discursos que atravessam uma sociedade”, “os discursos da publicidade”…).[2]

Desta maneira, tanto um sistema de produção como um conjunto específico de textos, mas tanto um discurso empiricamente identificável como um elemento que transcende a comunicação particular. O discurso, assim, é uma noção que pode ser, a partir das divisões postas, apropriada tanto por teorias da filosofia como por pesquisas empíricas acerca do texto e seu funcionamento. No fundo, todos esses usos relacionam língua e discurso em uma oposição em que “la ‘lengua’, definida como sistema compartido por los miembros de uns comunidad lingüistica, se opone al ‘discurso’, entendido como un uso restringido de este sistema”[3].


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As ideias-força

Há duas oposições relacionadas à linguística que são necessárias para se compreender, inicialmente, o uso da noção de discurso[4]:

  1. O discurso se opõe ao texto: pois ele é concebido como a inclusão de um texto em seu contexto (em suas condições de produção e recepção);
  2. O discurso se opõe ao enunciado: pois ele é concebido como condição e modo de apreensão dos enunciados. Desta maneira, a análise do discurso estaria preocupada, linguisticamente, a entender a noção do discurso em sua estruturação na língua e em sua prática como enunciado, estabelecendo-se como um estudo linguístico das condições de produção que transformam um texto em discurso.

Ao se localizar fora dos limites restritos da linguística, Dominique Maingueneau expõe nove ideias-força que conduzem a utilização da noção de discurso por analisas:

  1. O discurso é uma organização além da frase: “Isto não quer dizer que todo discurso se manifeste por seqüências de palavras de dimensões obrigatoriamente superiores à frase, mas sim que ele mobiliza estruturas de uma outra ordem que as da frase”[5]. Os discursos são submetidos a regras de organização, regras de formação ou regras de uso que operam sobre os gêneros do discurso mobilizados e que os definem e localizam em uma comunidade discursiva; e regras que operam, de maneira transversal ao gênero, a prática de um relato, de um diálogo, de uma argumentação.
  2. O discurso é orientado: “O discurso é ‘orientado’ não somente porque é concebido em função de uma perspectiva assumida pelo locutor, mas também porque se desenvolve no tempo, de maneira linear”[6]. Ou seja, o discurso se constrói com a consideração de que haverá um fim, ele caminha para algum lugar[7], sendo que há maneiras de desviar a linearidade do discurso, como utilizando de digressões, voltar à linearidade inicial ou mudar completamente o caminho do discurso, mas há maneira do locutor guiar seu discurso levando em consideração os caminhos propostos em sua fala utilizando um jogo de antecipações como “veremos que…”, “voltaremos ao assunto…”, ou um jogo de retomadas como “ou melhor…”, “eu deveria ter dito…”. Essas intervenções funcionam como um tipo de monitoramento do locutor em sua fala para compor a linearidade de seu discurso. Quando há a prática de um discurso monologal, feito por um locutor a outro ou outros locutores silenciosos, o controle do início ao fim é de simples monitoramento, já quando se está numa interação oral, num momento em que pode ser interrompido pelo interlocutor (enunciado dialogal), este controle é complexo e pode haver necessidade de retomar falas anteriores, torná-las mais precisas, no fundo, adequá-las em função da reação do outro.
  3. O discurso é uma forma de ação: “Considera-se que falar é uma forma de ação sobre o outro, e não apenas uma representação do mundo”[8]. Neste quesito, há uma relação com a problemática dos “atos de linguagem” (J.L. Austin e J. R. Searle), em que toda enunciação constitui um ato sobre uma situação e, por ser um ato, visa modificá-la através da promessa, da sugestão, da afirmação, da interrogação e etc. Estes atos de linguagem, que são elementares, se integram com os gêneros do discurso e transformam o discurso, enquanto prática social, em atividade, o que facilita relacioná-los com as atividades não verbais[9].
  4. O discurso é interativo: “A atividade verbal é, na realidade, uma interatividade que envolve dois ou mais parceiros”[10], cuja marca é encontrada no binômio EU-VOCÊ da interação verbal observada[11]. Na interação oral, a interatividade pode ser observada em sua manifestação mais evidente. Em interações onde o locutor parece não falar para um sujeito concreto passível de intervenção, como um locutor de rádio ou um palestrante, a interação tende a ser difícil de ser vista, mas está presente na característica dialógica da enunciação: “toda enunciação, mesmo produzida sem a presença de um destinatário, é, de fato, marcada por uma interatividade constitutiva (fala-se também de dialogismo), é uma troca, explícita ou implícita, com outros enunciadores, virtuais ou reais, e supõe sempre a presença de uma outra instância de enunciação à qual se dirige o enunciador e com relação à qual constrói seu próprio discurso”[12]. Desta forma, pensar em “destinatário” tende a ser ineficiente, pois a enunciação caminha em sentido duplo. Para Maingueneau, o conceito adequado é o de “coenunciador”, sendo que “coenunciadores” são dois parceiros na comunicação, na prática discursiva.
  5. O discurso é contextualizado: “Não diremos que o discurso intervém em um contexto, como se o contexto fosse somente uma moldura, um cenário; na realidade, não existe discurso senão contextualizado”[13], ou seja, não se atribui um mesmo significado a uma sequência de palavras ditas em contextos diferentes, pois, na prática, são dois discursos diferentes e, levando em conta o arcabouço teórico da análise do discurso, são dois enunciados diferentes expressos pelo mesmo sintagma. A dêixis também entra como marcador do tempo e do espaço, contextualizando um dito em sua unicidade, na medida em que eu, tu, ontem, aí, etc, são naturalmente palavras incompletas que se referem a algo mediante a enunciação singular que as aplica. Por fim, o contexto, por não ser uma moldura, também é definido pelo próprio discurso, que pode modificá-lo no decorrer da enunciação com o estabelecimento de novas relações (durante um diálogo, por exemplo, em que diferentes contextos são admitidos ao longo da conversa e da posição de sujeito que os coenunciadores podem assumir)[14].
  6. O discurso é assumido por um sujeito: “O discurso só é discurso se estiver relacionado a um sujeito, a um EU, que se coloca ao mesmo tempo como fonte de referências pessoais, temporais, espaciais (EU-AQUI-AGORA) e indica qual é a atitude que ele adota em relação ao que diz e a seu destinatário (fenômeno da ‘modalização’)”[15]. Cabe ao sujeito indicar quem é o responsável pelo dito[16][17], tomando responsabilidade pela verdade do conteúdo falado (“Aqui é o centro da cidade”, é tomado como verdade dita pelo enunciador, fiador do conteúdo falado), modalizando (“Talvez aqui seja o centro da cidade”), inserindo comentários em sua própria fala (“Francamente, Pedro, acho que aqui é o centro da cidade”), ou pode até mesmo fingir explicitamente que assume a veracidade do dito (como numa ironia)[18]. Mesmo assim, os aspectos de subjetividade da enunciação não é assumida na análise do discurso como demonstração de como o sujeito seria fonte do discurso, pois “a fala é dominada pelo dispositivo de comunicação do qual ela provém”[19].
  7. O discurso é regido por normas: “Como todo comportamiento social, está sometido a normas sociales muy generales; pero además, como lo muestra la problemática de las leyes del discurso, la actividad está regida por normas específicas”[20]. Essas normas são vistas em vários nívels: um ato de linguagem como uma pergunta implica que se ignore a resposta, que a resposta seja interesse a quem indaga, que se acredite ou não em quem responde; há normas no nível das leis do discurso, normas que regem todas as trocas verbais; o gênero do discurso, por si só, é preenchido por normas que suscitam expectativas entre os sujeitos engajados numa atividade verbal e, de maneira mais fundamental, todo ato de enunciação, quando ocorre, realiza um trabalho de legitimação que é inseparável do próprio exercício da fala (por exemplo, a legitimação da racionalidade adulta numa tomada de decisão e, portanto, a exclusão da possibilidade da loucura, da infantilidade, da senilidade)[21].
  8. O discurso é assumido no bojo de um interdiscurso: “O discurso só adquire sentido no interior de um imenso interdiscurso. Para interpretar o menor enunciado, é necessário relacioná-lo, conscientemente ou não, a todos os tipos de outros enunciados sobre os quais ele se apoia de múltiplas maneiras”[22]. O trabalho de interpretação é movido por uma relação que se faz de diversos outros enunciados, sejam eles citados, parodiados, comentados, etc. No fundo, a inserção de um enunciado num gênero do discurso pressupõe maneiras de tratar as relações interdiscursivas daquilo que é produzido dentro do gênero e, ao mesmo tempo, as relações que são produzidas entre enunciados existentes dentro do próprio gênero (um texto de filosofia tem formas de citação completamente diferentes de um texto de vendas em um jornal)[23]. “Algumas correntes defendem o primado do interdiscurso sobre o discurso”[24], como as linhas baseadas em M. Bakhtin, J. Lacan, L. Althusser e, por consequência, a análise do discurso francesa de Michel Pêcheux, onde a fala não é concebida como a soberania da individualidade, mas como atravessamento de relações discursivas, daquilo que já foi dito em outros momentos e que, no momento presente da fala, se insere no intradiscurso do sujeito, concebido como sujeito descentrado.
  9. O discurso constrói socialmente o sentido: “O sentido de que se trata aqui não é um sentido diretamente acessível, estável, imanente a um enunciado ou a um grupo de enunciados que estaria esperando para ser decifrado: ele é continuamente construído e reconstruído no interior de práticas sociais determinadas”[25]. Ou seja, trata-se do sentido em seu entendimento tanto prático como múltiplo: o sentido que o enunciado adquire em seu contexto, em seu gênero, em sua situação de enunciação, mas também admitindo que cada variação nos itens ditos anteriormente gerarão um novo sentido a um enunciado determinado. Independentemente da situação, os indivíduos constroem o sentido, mas sempre com a dependência das configurações sociais que possibilitam sua construção.

Considerações finais

Como a lista de características colocada acima é um conjunto aglutinante das formas de se praticar ou operacionalizar a noção de discurso, cada linha diferente de análise irá foca em uma ou outra ideia-força, lhe dando prioridade sem retirar a importância das outras na análise. Para Maingueneau:

A noção de discurso constitui, assim, uma espécie de invólucro comum para posições às vezes fortemente divergentes. Estamos mais numa lógica do “clima familiar” do que na de um núcleo de sentido que seria comum a todos os usos.[26]

Desta forma, entende-se que o emprego do termo discurso assume um duplo alcance, pois designa objetos que estão em análise (por exemplo, o discurso sobre a loucura na Idade Clássica), mas também exemplifica determinada visão que se tem sobre eles: quando se diz que a loucura é um discurso, se diz que a loucura será tratada como discurso, será um objeto teórico da análise do discurso, diz-se que ela mobiliza certas ideias-força, que está para além de uma opinião pessoal ou de um texto acadêmico, mas se situa também num dispositivo de comunicação, às normas que são praticadas através dele e aos grupos e sujeitos que adquirem legitimidade por falarem através do discurso analisado.

Segundo Maingueneau[27], convém entender a plasticidade do termo e evitar as duas atitudes que dificultam o trabalho teórico e prático: 1) a atitude “cética”, que renunciar em dar qualquer consistência ao termo e ao seu uso e 2) a atitude “terapêutica”, que desqualifica os usos do termo em que não há uma definição rigorosa e unívoca.

Análise do discurso: conceitos fundamentais de Michel Pêcheux

Referências

[1] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2004, p. 51.

[2] MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso. Tradução: Sírio Possenti, 1. ed, São Paulo: Parábola Editorial, 2015, p. 23.

[3] CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Discurso IN Diccionario de análisis del discurso. 1. ed. Buenos Aires: Amorrortu, 2005, p. 180.

[4] CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Discurso… p. 180.

[5] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação… p. 52.

[6] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação… p. 52-53.

[7] CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Discurso… p. 181.

[8] MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso… p. 25.

[9] MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso… p. 26.

[10] MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso… p. 26.

[11] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação… p. 53.

[12] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação… p. 53.

[13] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação… p. 54.

[14] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação… p. 55.

[15] MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso… p. 27.

[16] MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso… p. 27.

[17] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação… p. 55.

[18] CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Discurso… p. 182-183.

[19] MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso… p. 27.

[20] CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Discurso… p. 183.

[21] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação… p. 55.

[22] MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso… p. 28.

[23] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação… p. 55-56.

[24] MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso… p. 28.

[25] MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso… p. 29.

[26] MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso… p. 29.

[27] MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso… p. 30.

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