O interdiscurso – Dominique Maingueneau

O interdiscurso aparece como exterior específico de uma FD que, nesta relação de exterior interiorizado e depois expresso discursivamente, se faz como parte integrante do entendimento da formação discursiva. Dominique Maingueneau reafirma o primado do interdiscurso a partir do entendimento de que há o Outro, parte integrante do caráter dialógico de todo enunciado do discurso, que se faz enquanto resposta a algo dito alhures.

Índice

Introdução

A noção de interdiscurso emerge como o Outro da formação discursiva, aquilo que é, inicialmente, considerado como seu exterior, aquilo que ela não é, como sua contrapartida, como um espaço de intermédio entre formações discursivas.

Entretanto, este “espaço”, este entremeio, enquanto um Outro do discurso, poderia ser considerado também como parte de seu interior, como o Outro alojado no Mesmo que, nesta incoerência constitutiva, possibilita a emergência da falha como elemento constante e, de certa forma, regular. Um outro relativo ao discurso, relativo ao mesmo, portanto, algo delimitado à própria formação discursiva analisada, não ao universo de formações discursivas observadas sincronicamente.

O objetivo deste artigo é expor a noção de interdiscurso como elaborado por Dominique Maingueneau em Gênese dos discursos e, para este fim, abordarei a mesma noção como elaborada por Michel Pêcheux em Semântica e discurso e por Jean-Jacques Courtine em O discurso comunista endereçado aos cristãos.


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O interdiscurso pecheuxtiano

A partir das reflexões de Michel Pêcheux, o interdiscurso emerge como elemento teórico suscitado pela primeira mudança da Análise do Discurso Francesa relacionada à superação do entendimento das formações discursivas enquanto máquinas discursivas. Neste início, a formulação das formações discursivas enquanto máquinas era funcional, pois permitia a aproximação do pesquisador ao discurso através da busca por regularidades observadas nos dados coletados. Entretanto, este primeiro entendimento é limitado: Pêcheux define esta primeira fase da AD como “restrita teórica e metodologicamente a um começo e um fim predeterminados, e trabalhando num espaço em que as ‘máquinas’ discursivas constituem unidades justapostas. A existência do outro está pois subordinada ao primado do mesmo[1].

Nesta primeira fase, não é possível compreender um sujeito atravessado pelo outro, suscetível constantemente ao erro e ao desentendimento. Na medida em que são constituídos pelas formações discursivas entendidas enquanto máquinas, sua identificação é centrada no mesmo da formação discursiva interpeladora, nunca atravessada pelo outro que permitiria, por exemplo, uma contraidentificação atravessada pela formulação de outros discursos não delimitados à FD sob observação.

A emergência do interdiscurso pretende inserir este outro na reflexão sobre o mesmo. As FDs já não são entendidas como elementos justapostos de comunicação impossível, como máquinas radicalmente separadas, como coisas fechadas em si. O erro, a falta, o engano passam a ser buscados nas margens das FDs, pois é

próprio de toda formação discursiva dissimular, na transparência do sentido que nela se forma, a objetividade material contraditória do interdiscurso, que determina essa formação discursiva como tal, objetividade material essa que reside no fato de que “algo fala” (ça parle) sempre “antes, em outro lugar e independentemente”, isto é, sob a dominação do complexo das formações ideológicas.[2]

Desta forma, a primeira mudança que pode ser observada na citação anterior é o entendimento de uma FD que dissimula a objetividade contraditória do interdiscurso. Já a segunda é a dependência do interdiscurso – que se situa num nível abaixo das formações ideológicas – pelas FDs. Focaremos na segunda mudança: Sírio Possenti reflete sobre o papel do pré-construído enquanto conjunto de já ditos, enquanto o “sempre-já-aí” da interpelação ideológica e que fornece-impõe a realidade e sua universalidade:

Através deste conceito [pré-construído], uma interessantíssima reformulação da noção de pressuposição, a AD pretende dar conta do fato de que algo sempre fala antes e alhures. […] Em termos, digamos, filosóficos, o que está em questão é a posição segundo a qual os sujeitos falam a partir do já dito – e isso é exatamente o que o interdiscurso lhes põe à disposição e/ou lhes impõe.[3]

A universalidade conferida pelo interdiscurso, Possenti observa, pode se restringir a uma certa FD ou ao sujeito que se relaciona com ela. Este primeiro ponto da interpretação de Possenti confere um status “local” aos efeitos de universalidade do interdiscurso, desta forma, retira o aspecto generalista e, em minhas palavras, etéreo que o conceito poderia gerar. A universalidade, assim, deve ser entendida como efeito local de universalidade. O segundo ponto da interpretação do linguista brasileiro se refere à disponibilidade prática dos pré-construídos: na medida em que os efeitos do interdiscurso se referem a uma FD específica, então nem todos os pré-construídos estão disponíveis aos sujeitos, mas somente àqueles que podem-devem ser ditos, ou seja, aqueles que se referem à FD.

“O que estou querendo dizer é que não parece satisfatório definir interdiscurso como o todo complexo com dominante, a não ser que a expressão seja tomada restritivamente”[4], ou seja, o interdiscurso constitui aquilo que determina o discurso do sujeito concreto e, no processo discursivo concreto, é reinscrito no próprio sujeito. Este sujeito (que, comparativamente, seria aquele interpelado pelas ideologias com “i” minúsculo de Louis Althusser) é sempre particular, não universal (o funcionamento transhistórico da Ideologia com “i” maiúsculo de interpelar indivíduos em sujeitos concretos poderia ser, nesta analogia, legado somente ao interdiscurso, por exemplo). O interdiscurso, aqui, pode ser entendido como “‘o exterior específico’ de uma FD enquanto este irrompe nesta FD para constituí-la em lugar de evidência discursiva, submetida à lei da repetição estrutura fechada”[5] na formulação de Michel Pêcheux dois anos após esta reelaboração ter sido inserido por Jean-Jacques Courtine.

Courtine: o interdiscurso de uma FD

Jean-Jacques Courtine[6] já salientava que:

Se uma dada FD não é isolável das relações de desigualdade, de contradição ou de subordinação que marcam sua dependência em relação ao ‘todo complexo com dominante’ das FD, intrincado no complexo da instância ideológica, e se nomeamos “interdiscurso” esse todo complexo com dominante das FD, então é preciso admitir que o estudo de um processo discursivo no interior de uma dada FD não é dissociável do estudo da determinação desse processo discursivo por seu interdiscurso.

Ou seja, já entendia a necessidade teórica da explosão das máquinas discursivas, na medida em que o propósito da pesquisa em AD passaria necessariamente pelo entendimento da determinação desse processo discursivo pelo interdiscurso de uma dada FD. A caracterização de Courtine para o interdiscurso também traduz sua localidade, pois

o interdiscurso é o lugar no qual se constituem, para um sujeito falante, produzindo uma sequência discursiva dominada por uma FD determinada, os objetos de que esse sujeito enunciador se apropria para deles fazer objetos de seu discurso, assim como as articulações entre esses objetos, pelos quais o sujeito enunciador vai dar uma coerência à sua declaração, no que chamaremos, depois de Pêcheux, o intradiscurso da sequência discursiva que ele enuncia.[7]

A relação do interdiscurso é com o sujeito falante que é amparado pelos objetos encontrados, inicialmente, no próprio interdiscurso, mas que serão parte de seu intradiscurso, produzida através da sequência enunciativa dominada por uma FD determinada. O sujeito falante que enuncia sob uma FD determinada é um sujeito particular e, portanto, o interdiscurso trabalha entregando objetos pré-construídos que serão parte da elaboração particular sob uma FD específica. “O interdiscurso funciona, assim, como um discurso transverso, a partir do qual se realiza a articulação com o que o sujeito enunciador dá coerência ‘ao fio de seu discurso'”[8].

Novamente, a particularidade ao menos da atuação do interdiscurso, portanto, de sua relevância prática, é situado pelo autor em referência a uma FD, pois, segundo o autor, “é no interdiscurso de uma FD, como articulação contraditória de FD e de formações ideológicas, que se constitui o domínio do saber próprio a esta FD”[9], assim, a FD é entendida como constitutivamente contraditória e seus objetos se formam justamente na contradição entre o mesmo e o outro das formações ideológicas.

É a partir desta contradição que o interdiscurso se configura como “processo de reconfiguração incessante”[10] de uma formação discursiva.

O interdiscurso de uma FD, como instância de formação/repetição/transformação dos elementos do saber dessa FD, pode ser apreendido como o que regula o deslocamento de suas fronteiras.[11]

O saber de uma FD se relaciona com elementos interdiscursivos, é levado a incorporar seus pré-construídos por razões conjunturais e, no processo de retorno da relação, o pré-construído é redefinido pela FD ou é organizado em novas memórias discursivas que poderão lhe repetir ou provocar seu apagamento.

Maingueneau: o primado do interdiscurso

A noção de interdiscurso de Dominique Maingueneau pode ser considerada “menos pomposa, mas mais operacional e mais produtiva”[12]. Sua operacionabilidade advém, inicialmente, da fecunda divisão entre três categorias, três conjuntos hierarquicamente definidos[13]:

Universo discursivo: “O conjunto das formações discursivas de todos os tipos que interagem numa conjuntura dada”[14]. Para se manter numa perspectiva materialista, o universo discursivo é considerado finito, ou seja, sua finitude traduz, inicialmente, o fato de que não se fala qualquer coisa a qualquer momento sobre qualquer assunto. Não é considerado finito por ser um objeto de investigação próprio da análise do discurso, pois não se trata de um objeto de investigação, mas de um elemento teórico que surge das considerações materialistas acerca do discurso a partir de Michel Pêcheux e Bakhtin, longamente citado pelo autor no capítulo utilizado como base deste artigo.

Campo discursivo: “Um conjunto de formações discursivas que se encontram em concorrência, delimitam-se reciprocamente em uma região determinada do universo discursivo”[15]. Sendo que “em concorrência” pode ser entendido como “sob uma multiplicidade de relações não determinadas a prioristicamente”. Portanto, o campo discursivo pode ser preenchido por formações discursivas que possuem a mesma função social mas divergem em relação ao modo que atuam. Exemplo: a relação de antagonismo do discurso progressista brasileiro com o discurso bolsonarista. A noção de campo, assim como a de universo discursivo, é uma abstração necessária para relacionar diferentes formações discursivas percebidas na materialidade discursiva.

Espaço discursivo: “subconjuntos de formações discursivas que o analista, diante de seu propósito, julga relevante pôr em relação”[16], ou seja, uma delimitação de ordem prática para a realização da pesquisa, para que se compreenda as relações relevantes (e hierárquicas) entre discursos praticados por falantes e as formações discursivas que lhe deram possibilidade num mesmo campo.

Trata-se, assim, do trabalho em delimitar um espaço discursivo, ou seja, enunciados referentes a FDs que estão em relação com o objeto analisado, dentro de um campo discursivo específico, desta forma, num campo em que este mesmo objeto é disputado por diferentes FDs relacionadas a partir de um universo discursivo específico, assim, a partir de um conjunto de formações discursivas de múltiplos temas que se relacionam na conjuntura específica que localiza o objeto analisado. No entanto, a relação constitutiva do espaço discursivo “é marcada apenas por poucos índices na superfície discursiva”, sendo assim, em última instância, faz-se necessário uma análise semântica do discurso que coloque os discursos citados e recusados pelo mesmo como o outro do discurso.

Reconhecer este tipo de primado do interdiscurso é incitar a construir um sistema no qual a definição da rede semântica que circunscreve a especificidade de um discurso coincide com a definição das relações desse discurso com seu Outro. No nível das condições de possibilidade semânticas, haveria, pois, apenas um espaço de trocas e jamais de identidade fechada.[17]

E justamente é esta identidade fechada que traduz o interdiscurso numa teoria cuja FD é entendida como máquina discursiva, enquanto espaço de relações entre intradiscursos já fechado em si. No entanto, o outro do discurso, o lugar do interdiscurso, não é localizável no espaço discursivo, como se pudesse ser encerrado em uma citação, em um fragmento ou no momento de ruptura de uma certa coerência do discurso. “Ele se encontra na raiz de um Mesmo sempre já descentrado em relação a si próprio, que não é em momento algum passível de ser considerado sob a figura de uma plenitude autônoma”[18], ou seja, o outro se encontra num mesmo que não é unidade fechada, que não é autenticidade constitutiva, que não é individualidade dada. O outro existe no mesmo descentrado. A base epistemológica da análise do discurso, em sua concepção do sujeito, já faz emergir o outro enquanto o exterior que é interiorizado para depois ser novamente exteriorizado (em termos sociológicos, enquanto estruturas externas internalizadas em uma estrutura cognitiva que configura um sistema de disposições duráveis). Justamente por não ser fechado em uma FD, por não ser fechado em si, por não ser unidade autônoma, nada garante que o sujeito será identificado à FD ou que um gesto de leitura específico será adequado para dar conta do sentido de um discurso. O caráter dialógico insere a necessidade de observar o outro que fornece o material primeiro ensejador da produção discursiva do falante. Esta produção, mesmo sem ser assim identificada no ato de fala, é uma resposta. “Disso decorre o caráter essencialmente dialógico de todo enunciado do discurso, a impossibilidade de dissociar a interação dos discursos do funcionamento intradiscursivo”[19].

Sírio Possenti resume em “o Outro é o que faz sistematicamente falta a um discurso, é aquela parte de sentido que foi necessário que o discurso sacrificasse para constituir sua identidade”[20]. Ou seja, a presença do outro representa a negação do todo que faz do mesmo ser 1) finito, portanto, presente na realidade concreta e material, e 2) definido a partir de sua exterioridade, mas enquanto presença do exterior no próprio interior. Desta forma, retornando à categoria apresentada acima, o espaço discursivo pode ser apreendido a partir de um modelo dissimétrico (e diacrônico) que permite entender a constituição de um discurso, permite entender o mesmo; ou a partir de um modelo simétrico (e sincrônico), que permite compreender as interações conflituosas entre um discurso e seu Outro.

Considerações finais

O interdiscurso aparece, assim, como local em que o sujeito se encontra para posterior interpelação ideológica e discursiva em Michel Pêcheux. O interdiscurso é entendido como um todo complexo com dominante, ou seja, como um conjunto de relações com frações dominantes, portanto, de relevância maior na constituição da FD.

Este interdiscurso é retificado por Jean-Jacques Courtine, que entende, de maneira prática, que os efeitos do interdiscurso são específicos para uma FD, portanto, pode-se considerar que se trata de um interdiscurso de uma FD específica. Sendo assim, o interdiscurso é um discurso transverso, que entrega objetos que serão tema ou articulação em um intradiscurso e, além disso, também entrega os modos de se utilizá-lo, organizá-lo, etc. O interdiscurso aparece como exterior específico de uma FD que, nesta relação de exterior interiorizado e depois expresso discursivamente, se faz como parte integrante do entendimento da FD.

Dominique Maingueneau, por sua vez, reafirma o primado do interdiscurso a partir do entendimento de que há o Outro, parte integrante do caráter dialógico de todo enunciado do discurso, que se faz enquanto resposta a algo dito alhures.

Referências

[1] PÊCHEUX, Michel. A Análise de Discurso: Três Épocas (1983) IN GADET, F. HAK, T. (Org.). Por Uma Análise Automática do Discurso: Uma Introdução à Obra de Michel Pêcheux. 3ª Ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997, p. 313.

[2] PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Traduzido por Eni Pulcinelli Orlandi, Lorenço Chacon J. filho, Manoel Luiz Gonçalves Corrêa e Silvana M. Serrani, 2ª ed., Campinas: Editora da Unicamp, 1995, p. 162.

[3] POSSENTI, Sírio. Observações sobre o interdiscurso. Anais do 5º Encontro do Celsul, Curitiba-PR, 2003, p. 141.

[4] Idem.

[5] PÊCHEUX, Michel. A Análise de Discurso: Três Épocas (1983)… p. 313.

[6] COURTINE, Jean-Jacques. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Paulo: EdUFSCAR, 2009, p. 73.

[7] COURTINE, Jean-Jacques. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos… p. 74.

[8] COURTINE, Jean-Jacques. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos… p. 75.

[9] COURTINE, Jean-Jacques. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos… p. 99.

[10] COURTINE, Jean-Jacques. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos… p. 100.

[11] COURTINE, Jean-Jacques. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos… p. 101.

[12] POSSENTI, Sírio. Observações sobre o interdiscurso… p. 145.

[13] MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos… p. 33.

[14] MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos… p. 34.

[15] Idem.

[16] Idem.

[17] MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos… p. 35-36.

[18] MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos… p. 37.

[19] Idem.

2 Comentários

  1. Gostei. Me pegou no susto pq eu vinha (e venho) estudando justamente coisas parecidas, mas na área da poesia… pura criação artística. Chamei de Teoria da Prelatividade o que o artigo e seus pares chamam, eu acho, de máquina do discurso. Nas minhas construções poéticas haveria um dínamo representativo capaz de transformar maruim em monturo e monturo em maruim. Bom, esse é só um fio do emaranhado. Fica aqui meus parabéns pela lavra. E um obrigado. Serviu bastante. Abraço.

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