Amor Líquido – Zygmunt Bauman: Uma Resenha

Bauman, em Amor Líquido, afirma que até mesmo a afinidade está se tornando algo pouco comum em uma sociedade de extrema descartabilidade. Não há razão para caminhar à afinidade, sendo que não há o menor objetivo em firmar um laço que seja parecido com o parentesco. Não há objetivo de fixidez. As relações se desenvolvem com aquilo que já se tem, não com aquilo que ambos estão a fim de ter. Não se arrisca, por exemplo, a amar sinceramente (se entregar).

Índice

Amor líquido: Introdução

Parentesco, afinidade, elos causais são traços da individualidade e/ou do convívio humanos. O amor e a morte não têm história própria. São eventos que ocorrem no tempo humano – eventos distintos, não conectados (muito menos de modo causal) com eventos “similares”, a não ser na visão de instituições ávidas por identificar – (por inventar) -retrospectivamente essas conexões e compreender o incompreensível.

Zygmunt Bauman, Amor Líquido.

Amor Líquido é o livro mais popular de Zygmunt Bauman no Brasil e não é uma grande surpresa. É em Amor Líquido que o autor elabora análises próximas ao cotidiano, se concentrando em relações amorosas (até mais, analisando as relações sociais como um todo) e fornecendo material para entendermos o que é a liquidez do mundo moderno.

O objetivo deste texto é apresentar o livro de maneira resumida, com suas noções principais e articulações mais importantes.

Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos

Amor Líquido, livro de Zygmunt Bauman. Clique aqui e adquira o livro.
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Para Zygmunt Bauman, vivemos em um mundo de incerteza, extrema insegurança em relação à duração da ordem política e à estabilidade de cada sujeito dentro da sociedade. Falar sobre amor líquido é falar sobre relações frágeis: são tempos de relações sociais frágeis, que cada vez mais se tornam relações mercantilizadas e individualizadas. Não há um referencial moral, uma lado a seguir (como na divisão do mundo entre o Bloco Capitalista e o Bloco Comunista): estão todos jogados à responsabilidade e risco de seguirem e construírem suas vidas sem qualquer segurança.

Neste contexto, a relação social, pautada em uma responsabilidade mútua entre as partes que se relacionam, é trocada por um outro tipo de relação que o autor chama de conexão. Ele tira esta palavra das análises de relacionamentos em sites de encontros. Em suas pesquisas ele percebe que o grande agrado dos sites de encontros está na facilidade de esquecer o outro, de se desconectar.

Há sempre mais conexões para serem usadas — e assim não tem grande importância quantas delas se tenham mostrado frágeis e passíveis de ruptura. O ritmo e a velocidade do uso e do desgaste tampouco importam. Cada conexão pode ter vida curta, mas seu excesso é indestrutível. Em meio à eternidade dessa rede imperecível, você pode se sentir seguro diante da fragilidade irreparável de cada conexão singular e transitória.[1]

Sem pressão para estabelecer responsabilidade mútua entre seus participantes,  o relacionamento se torna frágil, torna-se uma mera conexão, nova forma vigente de se relacionar na modernidade líquida. Através da conexão, todos podem, sem o menor remorso, trocar seus parceiros por outros melhores. Desta forma, a maior utilidade do termo “conexão” é evidenciar a facilidade de se desconectar.

Para Bauman, quando a qualidade das relações diminui vertiginosamente, a tendência é tentar recompensá-la com uma quantidade absurda de parceiros. Talvez um bom exemplo seja, também, a quantidade de amigos que as pessoas costumam ter em redes sociais. São números que ultrapassam 300, 500 amigos, algo que seria irreal para uma convivência cotidiana de qualidade.

Alguns sociólogos, acostumados a compor teorias a partir de questionários, estatísticas e crenças baseadas no senso comum, apressam-se em concluir que seus contemporâneos estão totalmente abertos a amizades, laços, convívio, comunidade. De fato, contudo […] hoje em dia as atenções humanas tendem a se concentrar nas satisfações que esperamos obter das relações precisamente porque, de alguma forma, estas não têm sido consideradas plena e verdadeiramente satisfatórias. E, se satisfazem, o preço disso tem sido com freqüência considerado excessivo e inaceitável.[2]

O laço que o sujeito contemporâneo firma é relacionado à satisfação imediata, não exatamente ao trabalho de construção da amizade. O desprazer da certeza de não se conseguir uma amizade forte convive com o extremo prazer das satisfações imediatas que se pode conseguir de cada conexão.

Em seu famoso experimento, Miller e Dollard viram seus ratos de laboratório atingirem o auge da excitação e da agitação quando “a atração se igualou à repulsão” ou seja, quando a ameaça do choque elétrico e a promessa de comida saborosa finalmente atingiram o equilíbrio…[3]

Ou seja, ainda há um tipo de prazer, um tipo de satisfação, mas ela é desconectada do trabalho árduo e demorado de construção do laço social. Desta vez, a satisfação é ligada às possíveis vantagens de se ter uma pessoa por perto, não ao planejamento de longo prazo em tê-la por perto por décadas, o que levaria à conclusão de que os momentos ruins sempre aparecerão e cabe a cada sujeito ter ferramentas de sociabilidade para lidar com situações desagradáveis.

Amor líquido: afinidade e parentesco

Para tentar explicar a relação amorosa em Amor Líquido, Zygmunt Bauman utiliza das categorias de Afinidade e Parentesco: 

  • O parentesco seria o laço irredutível e inquebrável. É o laço de sangue (mesmo que tenha uma significação cultural maior que biológica), é aquilo que não nos dá escolha. O parentesco é aquilo que se impõe desde que nascemos e que é impossível renegar. Mesmo que não gostemos, nossos parentes serão nossos parentes para sempre e a cultura nos prescreve obrigações e direitos rígidos em relação a eles.
  • A afinidade é, ao contrário do parentesco, eletiva. A afinidade é escolhida, num processo que pode resultar na firmação da afinidade ou na rejeição. Sempre há a possibilidade de voltar atrás e deixar tudo de lado. Porém, e isso é importante, o objetivo da afinidade é ser como o parentesco.

A escolha é o fator qualificante: ela transforma o parentesco em afinidade. Mas também trai a ambição desta última: sua intenção é ser como o parentesco, tão incondicional, irrevogável e indissolúvel quanto ele (no final, a afinidade vai acabar se entretecendo com a linhagem e se tornar indistinguível do restante da rede de parentesco; a afinidade de uma geração se transforma no parentesco da geração seguinte).[4]

Bauman, em Amor Líquido, afirma que até mesmo a afinidade está se tornando algo pouco comum em uma sociedade de extrema descartabilidade. Não há razão para caminhar à afinidade, sendo que não há o menor objetivo em firmar um laço que seja parecido com o parentesco. Não há objetivo de fixidez. As relações se desenvolvem com aquilo que já se tem, não com aquilo que ambos estão a fim de ter. Não se arrisca, por exemplo, a amar sinceramente (se entregar).

Isso pode ser levado para o campo político: é na falta do verdadeiro amor que a militância se perde. Não há amor pela causa, não há rigidez em relação aos seus objetivos, não há tentativa de manter um relacionamento com o programa de um coletivo, de um partido ou de um movimento. Essa fixidez é renegada a favor da livre escolha, da decisão individual, que obriga o indivíduo a estar sempre disponível para voltar atrás.

Amor líquido: ferramentas de socialização

A dificuldade em lidar com o outro está na falta das ferramentas necessárias para se iniciar um relacionamento. Nas obras de Zygmunt Bauman, está posto que as novas formas de se relacionar se opõem às antigas, sendo que a habilidade com as primeiras reduz a capacidade com as últimas.

O contato via rede social tomou o lugar de boa parte dos solteiros que iriam para bares em busca de parceiros, no entanto, os poucos que ainda os frequentam, não sabem mais como se relacionar em tal ambiente.

A situação de extrema insegurança e incerteza também se relaciona com a incapacidade de amar o próximo. Se o outro é sempre um possível agressor e um alguém que nos tira a possibilidade de aproveitar a vida de maneira plena, então não há sentido em amá-lo (no sentido pleno da palavra ‘amor’), em confiar em sua presença, em ter certeza que ele vale nosso amor. Bauman cita Freud:

Com efeito, é suficiente perguntar “por que devo fazer isso? Que benefício me trará?” para sentir o absurdo da exigência de amar o próximo — qualquer próximo — simplesmente por ser um próximo. Se eu amo alguém, ela ou ele deve ter merecido de alguma forma… “Eles o merecem se são tão parecidos comigo de tantas maneiras importantes que neles posso amar a mim mesmo; e se são tão mais perfeitos do que eu que posso amar neles o ideal de mim mesmo… Mas, se ele é um estranho para mim e se não pode me atrair por qualquer valor próprio ou significação que possa ter adquirido para a minha vida emocional, será difícil amá-lo.” Essa exigência parece ainda mais incômoda e vazia pelo fato de que, com muita freqüência, não me é possível encontrar evidências suficientes de que o estranho a quem devo amar me ama ou demonstra por mim “a mínima consideração. Se lhe convier, não hesitará em me injuriar, zombar de mim, caluniar-me e demonstrar seu poder superior…”[5]

Relacionando isso com o número ascendente de diagnósticos de depressão e síndrome do pânico, Bauman voltar ao conceito para defini-lo, se debruçando, primeiramente, no amor-próprio.

“Amor Líquido em Zygmunt Bauman”. Veja aqui:

Amor líquido: amar o próximo como a ti mesmo

O autor diz que o amor-próprio é resultado de ser amado. Esta é uma relação infinita e incessante: quando o sujeito percebe que sua voz é ouvida, que sua opinião é importante ou que sua presença será sentida, ele entende que é único, especial e digno de amor. Só o outro pode dizer que somos dignos e amor, o que fazemos é reconhecer esta classificação.

Num processo de identificação com aquele que nos amou, também entendemos que a necessidade de amor existe nele (ou melhor, entendemos a sua singularidade). Nós nos amamos quando nosso ego se identifica com o outro e, desta forma, amamos a nós, merecedores de amor, e amamos o outro identificado.

É nesta relação que Bauman diz ser “amar ao próximo como ama a ti mesmo” a máxima que funda a moralidade. Talvez, a máxima que funciona contra o amor líquido. O instinto de preservação não é suficiente para a sobrevivência. É necessário haver uma instância moral atuando nas definições do eu e do outro para que haja uma relação humana que seja algo mais que uma relação puramente animal.

Aceitar o preceito do amor ao próximo é o ato de origem da humanidade. Todas as outras rotinas da coabitação humana, assim como suas ordens pré-estabelecidas ou retrospectivamente descobertas, são apenas uma lista (sempre incompleta) de notas de rodapé a esse preceito. Se ele fosse ignorado ou abandonado, não haveria ninguém para fazer essa lista ou refletir sobre sua
incompletude.[6]

Entretanto, em uma sociedade de pura incerteza em relação ao outro, o amor nos é negado. É negado a dignidade de ser amado. Não há amor-próprio e não há injunções sociais que prescrevem o amor ao próximo, fazendo dele algo fundamental na vida em sociedade. Amar o próximo não é natural, é, na verdade, algo contra nossos instintos mais básicos: por isso é o ato fundador da moralidade.

“Amar o próximo como a si mesmo” coloca o amor-próprio como um dado indiscutível, como algo que sempre esteve ali. O amor-próprio é uma questão de sobrevivência, e a sobrevivência não precisa de mandamentos, já que outras criaturas (não-humanas) passam muito bem sem eles, obrigado. Amar o próximo como se ama a si mesmo torna a sobrevivência humana diferente daquela de qualquer outra criatura viva. Sem a extensão/transcendência do amor-próprio, o prolongamento da vida física, corpórea, ainda não é, por si mesmo, uma sobrevivência humana — não é o tipo de sobrevivência que separa os seres humanos das feras (e, não se esqueçam, dos anjos). O preceito do amor ao próximo desafia e interpela os instintos estabelecidos pela natureza, mas também o significado da sobrevivência por ela instituído, assim como o do amor-próprio que o protege.[7]

Se nossas ferramentas de relacionamento estão engajadas com nossa época fluida e se as injunções/prescrições para amar ao próximo estão cada vez mais formais e estabelecidas por códigos penais, então o caminho da sociedade é a autodestruição após um longo definhamento.

Clique aqui e adquira o livro Amor líquido, de Zygmunt Bauman.
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Exemplos de amor líquido

  • Redes sociais, cuja aproximação e afastamento dependem unicamente de um clique;
  • Namoros e casamentos que duram somente o necessário para que haja a primeira contradição ou até que outra pessoa surja como possibilidade;
  • Inexistência de projetos de vida aos indivíduos e inexistência de um projeto de sociedade (pois o pragmatismo do mercado assume o lugar de única realidade possível);
  • Repulsa aos referenciais de vida: cada um é inteiramente responsável por si em seus fracassos e sucessos, não há mais núcleos de referencias políticas, familiares ou sociais para que se tenha uma construção de vida relativamente previsível.

Significado de “amor líquido”

“Amor líquido” é a definição de Zygmunt Bauman para relações humanas contemporâneas caracterizadas pelo distanciamento, pela fragilidade dos laços sociais e pela falta de iniciativa em se construir laços duradouros, sendo que o outro é observado com objeto de satisfação, não como uma pessoa real, distinta e potencialmente agregadora na vida.

Referências

[1] BAUMAN, Zygmunt. Dentro e fora da caixa de ferramentas da sociabilidade In BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido.

[2] BAUMAN, Zygmunt. Prefácio IN BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido.

[3] BAUMAN, Zygmunt. Prefácio IN BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido.

[4] BAUMAN, Zygmunt. Apaixonar-se e desapaixonar-se IN BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido.

[5] BAUMAN, Zygmunt. Sobre a dificuldade de amar o próximo In BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido.

[6] BAUMAN, Zygmunt. Sobre a dificuldade de amar o próximo In BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido.

[7] BAUMAN, Zygmunt. Sobre a dificuldade de amar o próximo In BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido.

Anexo

Abaixo, citação de Zygmunt Bauman retirada do último capítulo, Convívio Destruído, do livro Amor Líquido.

O mundo de hoje parece estar conspirando contra a confiança.

A confiança deve continuar sendo, como sugere Knud Logstrup, um derramamento natural da “expressão soberana da vida”, mas, uma vez posta em curso, agora procura em vão por um lugar para lançar âncora. A confiança foi condenada a uma vida cheia de frustração. Pessoas (sozinhas, individualmente ou em conjunto) empresas, partidos, comunidades, grandes causas ou padrões de vida investidos com a autoridade de guiar nossa existência freqüentemente deixam de compensar a devoção. De qualquer forma, é raro serem modelos de coerência e continuidade a longo prazo. Dificilmente há um único ponto de referência sobre o qual se possa concentrar a atenção de modo fidedigno e seguro, para que os desorientados possam ser eximidos do fatigante dever da vigilância constante e das incessantes retrações de passos dados ou pretendidos. Não se dispõe de pontos de orientação que pareçam ter uma expectativa de vida mais longa do que os próprios necessitados de orientação, por mais curtas que possam ser suas existências físicas. A experiência individual aponta obstinadamente para o eu como o eixo mais provável da duração e da continuidade procuradas com tanta avidez.

Em nossa sociedade supostamente adepta da reflexão, não é provável que se reforce muito a confiança. Um exame ponderado dos dados fornecidos pelas evidências da vida aponta na direção aposta, revelando repetidamente a perpétua inconstância das regras e a fragilidade dos laços. Mas será que isso significa que a decisão de Logstrup de investir as esperanças de moralidade na espontânea tendência endêmica à confiança nos outros teria sido invalidada pela incerteza endêmica que satura o mundo de hoje? Poderíamos dizer isso — não fosse pelo fato de que a visão segundo a qual os impulsos morais nascem da reflexão nunca foi a de Logstrup. Pelo contrário: de seu ponto de vista, a esperança de moralidade caracterizava-se precisamente por sua espontaneidade pré-reflexiva: “A compaixão é espontânea porque a menor interrupção, a menor maquinação, a menor diluição para que sirva a algum outro propósito provocam sua destruição total — na verdade, transformam-na em seu oposto, a desumanidade.”

Emmanuel Levinas é conhecido por insistir em que a pergunta “por que eu deveria ser ético” (ou seja, pedindo argumentos do tipo “o que ganho com isso?”, “o que essa pessoa me fez para justificar minha atenção?” ou “será que outra pessoa não poderia fazer isso em meu lugar?”) não é o ponto de partida da conduta moral, mas sim um sinal de sua morte, da mesma forma que toda amoralidade começou com a pergunta de Caim: “Serei eu o protetor de meu irmão?” Logstrup parece concordar.

“A necessidade da moral’ (essa expressão já é um paradoxo, pois aquilo que responde a uma “necessidade”, não importa o que seja, é algo diferente da moral) ou simplesmente sua “conveniência” não podem ser estabelecidas discursivamente, muito menos provadas. A moral nada mais é que uma manifestação de humanidade inatamente estimulada — não “serve” a propósito algum e com toda certeza não é guiada pela expectativa de lucro, conforto, glória ou auto-engrandecimento. É verdade que ações objetivamente boas — proveitosas e úteis — têm sido muitas vezes realizadas em função do cálculo de lucro do agente, seja obter a graça divina, ganhar o respeito público ou livrar-se da crueldade demonstrada em outras ocasiões. Esses atos, porém, não podem ser classificados como genuinamente morais precisamente por terem sido assim motivados.

Nos atos morais, insiste Logstrup, “exclui-se um motivo ulterior”. A expressão espontânea da vida é radical precisamente graças à “ausência de motivos ulteriores” — tanto amorais quanto morais. Essa é mais uma razão pela qual a demanda ética, essa pressão “objetiva” para que sejamos éticos, emanada do próprio fato de se estar vivo e compartilhando o planeta com outros, é e deve ser silenciosa. Já que a “obediência à demanda ética” pode facilmente transformar-se (ser deformada e distorcida) num motivo de conduta, essa demanda está em sua melhor forma quando é esquecida e não se pensa nela: sua radicalidade “consiste em exigir o que e supérfluo”. “A imediação do contato humano é sustentada pelas expressões imediatas da vida” e não precisa de outros apoios, nem de fato os tolera.

Em termos práticos, ela significa que, não importa o quanto um ser humano possa ressentir-se por ter sido abandonado (em última instância) à sua própria deliberação e responsabilidade, é precisamente esse abandono que contém a esperança de um convívio moralmente fecundo. A esperança — não a certeza.

A espontaneidade e a soberania das expressões de vida não respondem pela conduta resultante como sendo a escolha eticamente adequada e louvável entre o bem e o mal. A questão, porém, é que erros crassos e escolhas acertadas surgem da mesma condição — assim como os covardes impulsos de correr em busca de proteção que as ordens peremptórias obrigatoriamente provêem e a coragem de aceitar a responsabilidade. Sem se preparar para a possibilidade de fazer escolhas erradas, é difícil haver uma forma de perseverar na busca da escolha certa. Longe de ser uma grande ameaça à moral (e logo abominável para os filósofos éticos), a incerteza é a terra natal da pessoa ética e o único solo em que a moral pode brotar e florescer.

Mas, como Logstrup prontamente nos assinala, é a “imediação do contato humano” que é “sustentada pelas expressões imediatas de vida”. Presumo que a conexão e o condicionamento mútuo ajam nos dois sentidos. A “imediação” parece desempenhar no pensamento de Logstrup um papel semelhante ao da “proximidade” nos textos de Levinas. As “expressões imediatas da vida” são disparadas pela proximidade, ou pela presença imediata de outro ser humano — fraco e vulnerável, sofrendo e precisando de auxílio. Somos desafiados pelo que vemos. E desafiados a agir — a ajudar, defender, trazer alívio, curar ou salvar.

33 Comentários

  1. O que ele diz é o que Marx já disse,nossas relações são pautadas pelo sistema econômico.

    O consumo hoje em dia flui muito mais que antes,por causa da internet e etc,então é óbvio,não tem nenhum segredo nisso,de que nossas relações terminam sendo baseadas no sistema econômico.

    O que ele fala pra mim é bem óbvio e faz todo sentido principalmente quando se conhece filosofia.

  2. Essa angústia velada que rompe a cada dia, revela o desespero de nossa busca egoísta, idiotada, calcado num hedonismo massivamente estimulado pela mídia capitalista, formando/desvirtuando caráter resulta em doenças na alma, e, implicam, necessariamente, em todas as áreas que atuam o ser humano.

    Lamentavelmente essa frase se mostra imbatível: “então a sociedade caminha para a autodestruição após um longo definhamento”.

    Quem nos livrará de nós mesmos?

  3. Ama-se a si mesmo em primeiro lugar, graças ao instinto de sobrevivência, depois “ama-se” o próximo na medida em que esse nos é importante e sacia de alguma forma nossas necessidades. E isso inclui qualquer tipo de amor, até o de pai para filho.
    Essa espiritualização que vocês tanto buscam chamada “Amor incondicional” é antinatural. Simplesmente projetamos nosso amor próprio no objeto amado (vide empatia) pois temos ciência que o objeto amado nos é necessário e age como extensão de nosso próprio corpo. O amor é portanto, necessidade e efeito dos instintos de reprodução, sobrevivência e proteção da prole.
    Não existe uma “negação de amor”, a realidade é que quanto mais um individuo torna-se autossuficiente menos precisará do próximo. Assim como um bebê é dependente de seus pais e um adolescente nem tanto. Um exemplo para a frase supracitada é o de que nas últimas décadas as mulheres vem conquistando cada vez mais independência social. Isso causou uma transição social e o efeito dessa transição social é uma diminuição no valor e na importância dos relacionamentos amorosos. Em outras palavras, uma causa gera um efeito que gera uma nova causa e assim por diante. Esta é também a maior prova de que o amor não passa de uma necessidade, caso contrário o valor moral casamento seria inato e inalterável e não haveria a necessidade de divórcio.

  4. Você tem a Paráfrase desse trecho???
    (BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. p. 60-61).

    Os filhos estão entre as aquisições mais caras que o consumidor médio pode fazer ao longo de toda a sua vida. Em termos puramente monetários, eles custam mais do que um carro luxuoso do ano, uma volta ao mundo em um cruzeiro ou até mesmo uma mansão. Pior ainda, o custo total tende a crescer com o tempo, e seu volume não pode ser fixado de antemão nem estimado com alto grau de certeza. Num mundo que não oferece mais planos de carreira e empregos estáveis, assinar um contrato de hipoteca com prestações de valor desconhecido, a serem pagas por um tempo indefinido, significa, para pessoas que saem de um projeto para outro e ganham a vida nessas mudanças, expor-se a um nível de risco atipicamente elevado e a uma fonte prolífica de ansiedade e medo. É provável que se pense duas vezes antes de assinar, e que, quanto mais se pense, mais se tornem óbvios os riscos envolvidos. […] © Plano de Ensino (PE)/Guia de Estudos (GE) 13 Claretiano – Centro Universitário Ter filhos significa avaliar o bem-estar de outro ser, mais fraco e dependente, em relação ao nosso próprio conforto. A autonomia de nossas preferências tende a ser comprometida, e continuamente: ano após ano, dia após dia. A pessoa pode tornar-se […] “dependente”. Ter filhos pode significar a necessidade de diminuir as ambições pessoais, “sacrificar uma carreira”, como pessoas submetidas à avaliação de seu desempenho profissional olham soslaio em busca de algum sinal de lealdade dividida. […] (BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. p. 60-61).

      1. Você poderia falar mais alguma coisa sobre o trecho anterior de BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. p. 60-61).
        Desde já agradeço!

  5. Gostei muito da sua crítica. Já repassei para outras amigas. Vou comprar o livro “A Modernidade Líquida”. Moro na Alemanha e infelizmente não há “O Amor Líquido” em alemão. Eu gostaria do livro físico.

      1. Parabéns pelo site! Excelente qualidade. Estou lendo tudo que posso e irei assistir aos vídeos no YouTube sobre o Bauman. Quanto ao livro em português, vou esperar alguém trazer para mim do Brasil. A Amazon daqui envia para cá, mas o preço não vale a pena.

  6. O que imagino que vai acontecer em breve é o não se relacionar. Se aproximar de outra pessoa apenas para o sexo, que não é uma prática nova. Se colocarmos a teoria do que penso ser o “amor fluido”, não amor líquido, como regra, não vai valer a pena se relacionar. Vai ser necessário saber o que a pessoa pensa antes de se aproximar e, por mais que você ache que valeria a pena estar com a pessoa por mais tempo, porque ela é uma ótima companhia, vai acabar validando o comportamento antes abominado de que a pessoa é de fato um objeto de pura satisfação sexual, que ao menor sinal de desacordo você vai substituí-la por uma versão melhor como uma máquina, um carros ou como um i-fone.
    Porque muita gente ao ler a teoria, que imagino que apenas descreve um tendência de comportamento, vai tomá-lo como regra e vai dar conflito porque ainda existe muita gente que não pensa assim. E o fato de existir muitos divórcios evidencia a incompetência que muitas pessoas possuem de não conseguir manter um relacionamento. Por uma série de fatores. Um deles é a chamada demência temporária provocada pela química da paixão, que deixa a pessoa em estado semelhante ao de um viciado e que a deixa cega para os defeitos do parceiro. E é essa mesma química que faz com que as pessoas queiram ficar juntas. Assim como vejo muitas terapias e treinamentos que ensinam os indivíduos a não se envolver, não se apaixonar e descartar, e não se sentir culpado pelo infortúnio da vítima que se envolve com uma pessoa assim, sendo este comportamento considerado natural ou não. Pois os pinguins e as araras são monogâmicas mas os ursos não.
    O fato é que muitas pessoas estão de machucando emocionalmente por ter contato com outras pessoas que têm esse tipo de comportamento e o gostar ficou secundário. Entendo que muita gente vai acabar “colhendo o que plantou” e viver um final de vida sozinho, mas antes que isso aconteça vai deixar muita gente machucada pela sua total falta de empatia.
    Vejo muita gente falar de amor próprio, de pessoas não se amando, mas me parece que estamos criando uma sociedade fria e sociopata onde o ego é que está acima de tudo e não o amor “próprio”. E o descartar é sempre válido quando você identifica que por algum motivo você não vai permanecer no relacionamento. Porque a pessoa não te satisfaz sexualmente, porque você não se apaixonou, porque você não gostou do pé dela, ou por algum outro motivo, ou porque você só queria transar mesmo. Mas nunca porque é só uma tendência.

  7. Parabéns!! Que tal seu comentário sobre o livro NOS de Zamiatine .hoje mais que atual..e também comentar sobre FAZENDA MODELO de nosso super CHICO BUARQUE . Abraço!

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