Da série Friedrich Nietzsche.
“Deus está morto!” Nietzsche afirma em Gaia Ciência, mas o que isso pode de fato significar? Vejamos, ao descer da montanha, Zaratustra estava confiante daquilo que descobriu na solidão. O isolamento na montanha foi essencial para concluir que a vida é o que é e nada mais do que de fato está acontecendo. A morte de deus é a morte da estrutura religiosa do pensamento, portanto, é a morte de um jeito de pensar que posterga a vida para o além ou para um futuro inalcançável.
Zaratustra, quando encontra nos bosques um velho [santo] que havia saído de sua cabana sagrada para colher raízes, é impactado por uma enxurrada de infâmias ao homens e louvores ao deus. “‘Por que’, disse o santo, ‘fui para o ermo e a floresta? Não seria por amar demais os homens? Agora amo a Deus: os homens já não amo. O homem é, para mim, uma coisa demasiado imperfeita. O amor aos homens me mataria’, diz Nietzsche no prólogo ao Assim Falou Zaratustra. Não é esta frase uma boa amostra da estrutura religiosa do pensamento?
É ela que carrega este nojo ao que é animal, instintual, uma ojeriza à vida. A afirmação “Deus está morto” em Nietzsche é a vitória sobre essa mentalidade de rebanho, falsa, corrupta e artificial. É por isso que Zaratustra, após o encontro com o velho santo, vai embora sorrindo. “Quando Zaratustra se achou só, assim falou para seu coração: ‘Como será possível? Este velho santo, na sua floresta, ainda não soube que Deus está morto!’. A solidão, o afastamento do rebanho, é condição primária para conhecer o vazio da morte de deus.
“Deus está morto” para Nietzsche
O Homem Desvairado. – Vós não ouvistes falar daquele homem desvairado que em plena manhã luminosa acendeu um candeeiro, correu até a praça e gritou ininterruptamente: “Estou procurando por Deus! Estou procurando por Deus!” – À medida que lá se encontravam muitos dos que não acreditavam em Deus, ele provocou uma grande gargalhada. Será que ele se perdeu? – dizia um. Ou será que ele está se mantendo escondido? Será que ele tem medo de nós? Ele foi de navio? Passear? – assim eles gritavam e riam em confusão. O homem desvairado saltou para o meio deles e atravessou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?, ele falou, gostaria de vos dizer! Nós o matamos – vós e eu! Nós todos somos assassinos! Mas como fizemos isto? Como conseguimos esvaziar o mar? Quem nos deu a esponja para apagarmos todo o horizonte? O que fizemos ao arrebentarmos as correntes que prendiam esta terra ao seu sol? Para onde ela se move agora? Para onde nos movemos? Afastados de todo sol? Não caímos continuamente? E para trás, para os lados, para frente, para todos os lados? Há ainda um alto e um baixo? Não erramos como que através de um nada infinito? Não nos envolve o sopro do espaço vazio? Não está mais frio? Não advém sempre novamente a noite e mais noite? Não precisamos acender os candeeiros pela manhã? Ainda não escutamos nada do barulho dos coveiros que estão enterrando Deus? Ainda não sentimos o cheiro da putrefação de Deus? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus permanece morto! E nós o matamos! Como nos consolamos, os assassinos dentre todos os assassinos? O mais sagrado e poderoso que o mundo até aqui possuía sangrou sob nossas facas – quem é capaz de limpar este sangue de nós? Com que água poderíamos nos purificar? Que festejos de expiação, que jogos sagrados não precisamos inventar? A grandeza deste ato não é grande demais para nós? Nós mesmos não precisamos nos tornar deuses para que venhamos apenas a parecer dignos deste ato? Nunca houve um ato mais grandioso – e quem quer que venha a nascer depois de nós pertence por causa deste ato a uma história mais elevada do que toda história até aqui!” O homem desvairado silenciou neste momento e olhou novamente para os seus ouvintes: também eles se encontravam em silêncio e olhavam com estranhamento para ele. Finalmente, ele lançou seu candeeiro ao chão, de modo que este se partiu e apagou. “Eu cheguei cedo demais, disse ele então, eu ainda não estou em sintonia com o tempo. Este acontecimento extraordinário ainda está a caminho e perambulando – ele ainda não penetrou nos ouvidos dos homens. O raio e a tempestade precisam de tempo, a luz dos astros precisa de tempo, atos precisam de tempo, mesmo depois de terem sido praticados, para serem vistos e ouvidos. Este ato está para os homens mais distante do que o mais distante dos astros: e, porém, eles o praticaram!” – Conta-se ainda que o homem desvairado adentrou no mesmo dia várias igrejas e entoou aí o seu Requiem aeternam deo. Acompanhado até a porta e questionado energicamente, ele retrucava sem parar apenas o seguinte: “O que são ainda afinal estas igrejas, se não túmulos e mausoléus de Deus”. [1]
A morte de deus, na filosofia Nietzscheana, é a morte do deus cristão, obviamente, mas não podemos delimitar sua afirmação unicamente para a religião cristã. Heiddeger, em seu artigo Natureza Humana: a sentença nietzschiana “Deus está morto”, abre algumas perspectivas já comentadas nos primeiros parágrafos,
Deus é o nome para o âmbito das idéias e do ideal. Este âmbito supra-sensível vige desde Platão, dito ainda mais precisamente, desde a interpretação grega tardia e cristã da filosofia platônica, enquanto o mundo verdadeiro e o propriamente real. Em contraposição a este, o mundo sensível é apenas o mundo do aquém, o mundo transitório e por isso mesmo aparente, irreal. O mundo do aquém é o vale das lamentações em contraposição à montanha da eterna bem-aventurança no além. Se denominarmos, como ainda acontece em Kant, o mundo sensível o mundo físico em sentido amplo, então o mundo supra-sensível é o mundo metafísico.[2]
Mas a morte do mundo supra-sensível como fundamento da vida do ocidente, como fundação do viver, revela um grande vazio. Se deus está morto, como eu poderei saber o que fazer? Como saberei o que é certo e o que é errado? Como entenderei quais práticas devo praticar e quais devo evitar? É aqui que entra a concepção de Niilismo em Nietzsche.
Quando entendemos (na concepção de Nietzsche) que Deus está morto, ficamos terrivelmente livres: livres para perder qualquer referência e submergir nos mares do chamado niilismo passivo: a não aceitação dos valores e o cinismo para com o mundo. E não adianta querer salvar as referências do mundo supra-sensível colocando outras coisas no lugar dele, pois explica Heidegger
O que quer que venha a querer se colocar no lugar do mundo supra-sensível desta forma não passa de uma variação da interpretação de mundo eclesiástico-cristã e teológica, que assumiu seu esquema ordinário, sua ordenação hierárquica do ente, a partir do mundo helênico-judaico, cujo esquema fundamental foi instaurado no começo da metafísica ocidental por Platão.[3]
Colocar a ciência, o socialismo, a autonomia humana, as pulsões… Nada disso pode ocupar o lugar deixa por deus, porque eles passariam a funcionar como a chamada estrutura religiosa do pensamento, matando a vida e exaltando aquilo que é artificial, como a ordem, a previsibilidade e a história.
Heidegger afirma que, em Nietzsche, o niilismo é parte do processo histórico do ocidente:
Enquanto procedimento fundamental da história ocidental, o niilismo é imediatamente e antes de tudo o princípio normativo dessa história. Por isso, também em suas considerações sobre o niilismo, o decisivo não está tanto para Nietzsche na descrição do decurso do evento da desvalorização dos valores supremos e na contabilização final oriunda daí do declínio do ocidente. Ao contrário, Nietzsche pensa o niilismo enquanto a “lógica interna” da história ocidental.[4]
A saída para a morte de Deus, diria Nietzsche, é dançar! É criar!
A única coisa que vence o vazio do niilismo passivo é a livre expansão da potência, é o livre correr da vontade de potência, manifestada por forças ativas, ou seja, por forças criativas. Isso se dá a partir da criação de valores para guiar a vida, não na subjugação a valores antigos e mofados ou na negação completa de valores. A vontade de potência é aquilo que está na essência de tudo, é um querer-ser, que quando se junta ao poder, é um querer-ser-senhor. Vontade de potência é querer dominar, querer poder, por isso é criar e negar a moral dos fracos.
Esquecer do fator de criação é cair num niilismo do vazio sem fim, quando se esquece de transvalorar os valores existentes. Ou seja, o niilismo plenificado
precisa ainda colocar de lado até a própria posição dos valores, o supra-sensível enquanto âmbito, e, de acordo com isso, estabelecer diversamente os valores e os transvalorar.[5]
Quando Deus morre, só nos resta criar para viver, não mais deixar que nos criem a partir de um tipo específico de homem que deveríamos ser: o castrado, que não deseja, ou melhor, que deseja tomando como referência o outro, que tem seu querer pautado em barrar o outro. Esta é a potência movida por forças reativas. Potência de gente fraca, que não gosta de ver o forte se dar bem.
A transvaloração transforma-se em inversão do modo de valoração. A avaliação carece de um novo princípio: ela carece disto, desde onde ela provém e no que ela se sustém.[6]
Se o mundo está nu, do jeito que ele é, se não há mais nada que o encubra e nos diga como agir, então só nos resta viver a vida de peito aberto, animalescamente.
Deus está morto, o homem morrerá
Michel Foucault foi responsável por extender a morte de Deus por meio de procedimento genealógicos e arqueológicos de pesquisa. Estes procedimentos tornamo conhecimento limitado, o sujeito limitado e os objetos do conhecimento sempre construídos.
Desta forma, a própria forma-sujeito que o homem se estabelece tem validade. Não é eterna, não foi eterna, não será eterna. Trata-se de uma forma que está em validade, mas que não “é” válida.
Porque Deus está morto, na episteme moderna o sujeito do conhecimento é limitado, os objetos empíricos são transitórios e as palavras fracassam em representar as coisas. Entretanto, Foucault (As palavras e as coisas) põe em relevo um ponto cego desse sistema de pensamento. O homem, sujeito do conhecimento, é pensado a partir do homem, objeto das ciências humanas, as quais têm no homem, sujeito do conhecimento, seu a priori (WEINMANN, 2017).
E este homem é limitado na própria modernidade. Sua validade é base aos desenvolvimentos das ciências humanas e a própria transformação desta gama de ciências tende a destruir a necessidade da existência deste tipo de homem. Ao mesmo tempo, a experiência subjetiva demonstra nossas individualidade, mas ela não é determinante na estruturação do mundo em que vivemos.
O Homem: sujeito absoluto da Modernidade. Mediante esse vício de origem epistêmico, a razão científica elide seus limites e o sujeito moderno desmente a finitude que lhe é constitutiva. Em tal solo cultural, o autômato consiste em um ideal. Por meio dele, o sujeito moderno visa driblar a finitude e aceder a um gozo ilimitado (WEINMANN, 2017).
A morte de Deus, ao mesmo tempo, dá vazão para a existência da psicanálise, do entendimento da não centralidade da consciência. Dá vazão para as dores e o desamparo que a psicanálise visa compreender. O homem seu Deus é um homem só, é um homem sem um pai ontológico, sem um pai metafísico.
A Morte de Deus é condição de possibilidade do aparecimento da psicanálise. Ela consiste no a priori histórico da remissão das palavras a outras palavras, em busca de um objeto desde sempre perdido. No entanto, o desaparecimento de um referente absoluto também é objeto do discurso psicanalítico (Birman, Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação). Em Totem e tabu (Freud), não é o pai da horda primitiva que se depreende do mito cristão. É a Morte de Deus – o grande gozador do sujeito moderno – o tema crucial do mito trágico freudiano. Em O futuro de uma ilusão, Freud (1927 / El porvenir de una ilusión) diagnostica a Morte de Deus e, em sintonia com a filosofia das Luzes, aposta na força da razão: “a voz do intelecto é suave, mas não descansa até ser escutada”. Em Mal-estar na civilização (Freud), o fulcro da reflexão é o desamparo constitutivo do sujeito moderno, efeito da falta de suporte ontológico transcendente, e a impossibilidade do racionalismo iluminista contornar o mal-estar que lhe decorre. Se a paixão pelo autômato consiste em uma tentativa de desfazer os efeitos da Morte de Deus, por meio da fé na racionalidade científica sustentada em um sujeito transcendente, a psicanálise, saber que concerne a um sujeito atravessado pela finitude, opera como um contradiscurso. Ela se incumbe de indicar que o rei está nu (WEINMANN, 2017).
A necessidade de matar Deus foi a necessidade de ter o mundo para si. Mas ter o mundo para si envolve o risco do “si” se perder, na medida em que o próprio sujeito que seria este “si” se perde na morte de Deus.
Referências
[1] NIETZSCHE, Friedrich. Gaia Ciência, São Paulo: Escala, 2008. p.149.
[2] HEIDEGGER, Martin. A sentença nietzschiana “Deus está morto”. Nat. hum., São Paulo , v. 5, n. 2, p. 471-526, dez. 2003 . Disponível em <https://goo.gl/BBsr31>. acessos em 14 jan. 2018.
[3] HEIDEGGER, Martin. A sentença nietzschiana “Deus está morto”…
[4] HEIDEGGER, Martin. A sentença nietzschiana “Deus está morto”…
[5] HEIDEGGER, Martin. A sentença nietzschiana “Deus está morto”…
[6] HEIDEGGER, Martin. A sentença nietzschiana “Deus está morto”…
WEINMANN, Amadeu de Oliveira; MEDEIROS, Roberto Henrique Amorim de; MANO, Gustavo Caetano de Mattos. Deus está morto: Viva o autômato!. Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro , v. 17, n. 1, p. 225-237, jan. 2017 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-42812017000100013&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 06 dez. 2023.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
Bora criar, chega de tradição…
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hoje pela manhã, meu filho e eu estávamos conversando sobre Kant e sua Antropologia, como resultado de uma conversa sobre o antropocentrismo, quando meu filho posicionou que: antes era teologia e depois antropologia, agora a gente tem a oportunidade de equilibrar, como um pêndulo, foi de um extremo ao outro e agora a gente pode alcançar um equilíbrio.
Isso resultou de uma conversa sobre a leitura que ele fez do conto de Voltaire, Micrômegas, especificamente quando os homens dizem a Micrômega e seu amigo que o mundo e tudo nele estava ali para servi-los – que virou motivo de risadas para os dois frente sua percepção de grandeza do universo e pequenez humana.
No meio da questão antropológica de Kant meu filho disse: isso tudo parece com niilismo, pois se não é possível alcançar um absoluto de verdade e eu me fechar achando que o que existe é apenas o que vejo, entra no niilismo e aí fica tudo sem sentido, sem limite, sem nada.
Nossa conversa foi interrompida por movimentos que estavam acontecendo na rua.
Cheguei no trabalho e eis que me deparo com seu e-mail e ao ler o texto é um complemento e aprofundamento ideal.
Vou imprimir e passar para meu filho. Ótimo. Ah! Meu filho tem 13 anos.
um abraço.
Muito bacana, Regina!
REGINA CELIA PASSOS, estou encantado pelo teu relato sobre esse papo filosófico que tivestes com o teu filho! Parabéns.
Luiz Carvalho
[email protected]
Parabéns Regina. Gostaria de ter sido apresentado à filosofia com essa idade. Desejo dar a minha filha essa visão.
O relato da Regina é impactante. Confesso: me afetou de tal forma que cheguei mesmo a chorar. Obrigado, Regina.