O dispositivo [gilles deleuze] – Citações #2

Escute a leitura do texto no vídeo abaixo!

DELEUZE, Gilles. ¿Que és un dispositivo? In: Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990, pp. 155-161. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento. Disponível em<<http://bit.ly/3rkqH3E>>.

Os dispositivos têm, então, como componentes linhas de visibilidade, linhas de enunciação, linhas de força, linhas de subjetivação, linhas de ruptura, de fissura, de fratura que se entrecruzam e se misturam, enquanto umas suscitam, através de variações ou mesmo mutações de disposição. Decorrem daí duas conseqüências importantes para uma filosofia dos dispositivos.

A primeira é o repúdio dos universais. Com efeito, o universal nada explica, é ele que deve ser explicado. Todas as linhas são linhas de variação, que não tem sequer coordenadas constantes. O Uno, o Todo, o Verdadeiro, o objeto, o sujeito não são universais, mas processos singulares, de unificação, de totalização, de verificação, de objetivação, de subjetivação, processos imanentes a um dado dispositivo. E cada dispositivo é uma multiplicidade na qual esses processos operam em devir, distintos dos que operam em outro dispositivo. Neste sentido, a filosofia de Foucault é pragmática, funcionalista, positivista, pluralista. Talvez o que coloque o maior problema seja a razão, porque os processos de racionalização podem operar sobre segmentos ou regiões de todas as linhas consideradas.

Foucault credita para Nietzsche a historicidade da razão; e acentua toda a importância duma investigação epistemológica sobre as diversas formas da racionalidade no saber (Koyré, Bachelard, Canguilhem), e de uma investigação sócio-política dos modos de racionalidade no poder (Max Weber). Talvez ele reserve para si a terceira linha, o estudo dos tipos “do razoável” em eventuais sujeitos. Mas, o que Foucault essencialmente recusa é a identificação destes processos com razão por excelência. Foucault recusa toda a restauração de universais de reflexão, de comunicação, de consenso. Pode-se dizer, neste sentido, que as relações com a escola de Frankfurt, e com os sucessores dessa escola, são uma longa série de mal-entendidos dos quais Foucault não é responsável. E assim como não há universalidade de um sujeito fundador, ou de uma razão por excelência que permita julgar os dispositivos, também não há universais da catástrofe nos quais a razão se alienaria, onde uma vez por todas se afundaria.


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Como Foucault disse a Gérard Raulet, não há uma bifurcação do razão, o que acontece é que esta não deixa de se bifurcar; há tantas bifucarções e ramificações quantas instaurações, tantos desabamentos quantas construções, segundo os recortes operados pelos dispositivos, e “não há nenhum sentido na proposição segundo a qual a razão é uma longa narrativa agora terminada”. Deste ponto de vista, a objeção que é feita a Foucault – a de saber como é que se pode apurar o valor relativo de um dispositivo se não se podem invocar valores transcendentes enquanto coordenadas universais -, é uma questão que corre o risco de nos fazer recuar, e de não ter sentido, ela também.

Dir-se-á que todos os dispositivos se equivalem (niilismo)? Há muito que pensadores como Spinoza e Nietzsche mostraram que os modos de existência deviam ser pesados segundo critérios imanentes, segundo aquilo que detêm em “possibilidades”, em liberdade, em criatividade, sem nenhum apelo a valores transcendentais. Foucault alude a critérios “estéticos”, entendidos como critérios de vida que, de cada vez, substituem pretensões de um juízo transcendente por uma avaliação imanente. Quando lemos os últimos livros de Foucault, devemos, o quanto possível for, compreender o programa que ele propõe aos seus leitores. Uma estética intrínseca dos modos de existência como última dimensão dos dispositivos?

A segunda consequência de uma filosofia dos dispositivos é uma mudança de orientação que se separa do eterno para apreender o novo. O novo não se designa a suposta moda, mas, pelo contrário, a criatividade variável segundo os dispositivos: em conformidade com a questão nascida no século XX, como é que é possível no mundo a produção de algo novo? É verdade que Foucault, em toda sua teoria da enunciação, recusa explicitamente a “originalidade” de uma enunciação, como critério pouco pertinente, pouco interessante.

Foucault pretende somente considerar a “regularidade” das enunciações. Mas, o que ele entende por regularidade é a linha da curva que passa pelos pontos singulares, ou valores diferenciais do conjunto enunciativo (da mesma maneira que vai definir as relações de força pela distribuição de singularidade dentro de um campo social). Quando recusa a originalidade da enunciação, Foucault pretende dizer que a eventual contradição de duas enunciações não basta para distingui-las, nem para marcar a novidade de uma em relação a outra. Porque o que conta é a novidade do próprio regime de enunciação que podem compreender enunciações contraditórias. Por exemplo, alguém perguntará que regime de enunciações aparece com o dispositivo da Revolução Francesa, ou com o dispositivo da revolução Bolchevique: é a novidade do regime que conta e não a originalidade da enunciação. Todo o dispositivo se define, pois, pelo que detém em novidade e criatividade, o qual marca, ao mesmo tempo, sua capacidade de se transformar ou se fissurar em proveito de um dispositivo do futuro. Os estudos ainda inéditos de Foucault sobre os diversos processos cristãos abrem, sem dúvida, inúmeros caminhos neste campo. Isso não quer dizer, entretanto, que a produção de subjetividade corresponda exclusivamente à religião: as lutas anti-religiosas são também criativas, assim como os regimes de luz, de enunciação passam pelos mais diversos domínios. As subjetivações modernas não se assemelham mais às dos gregos do que às dos cristãos, assim como a luz, os enunciados e os poderes.

Pertencemos a certos dispositivos e neles agimos. A novidade de um dispositivo em relação aos anteriores é o que chamamos sua atualidade, nossa atualidade. O novo é o atual. O atual não é o que somos, mas aquilo em que vamos nos tornando, o que chegamos a ser, quer dizer, o outro, nossa diferente evolução. É necessário distinguir, em todo o dispositivo, o que somos (o que não seremos mais), e aquilo que somos em devir: a parte da história e a parte do atual. A história é o arquivo, é a configuração do que somos e deixamos de ser, enquanto o atual é o esboço daquilo em que vamos nos tornando. Sendo que a história e o arquivo são o que nos separa ainda de nós próprios, e o atual é esse outro com o qual já coincidimos. As vezes acreditou-se que Foucault traçava o quadro das sociedades modernas como outros dispositivos disciplinares da soberania. Mas não é nada disso: as disciplinas descritas por Foucault são a história daquilo que vamos deixando pouco a pouco de ser; e a nossa atualidade desenha-se em disposições de controle aberto e contínuo, disposições muito diferentes das recentes disciplinas fechadas. Foucault concorda com Burroughs quando este anuncia que o nosso futuro será um futuro controlado mais que disciplinado. A questão não é saber se isso é melhor ou pior. Porque fazemos também apelo a produções de subjetividade capazes de resistir a essa nova dominação, muito diferentes daquelas que se exerciam antes contra as disciplinas. Uma nova luz, novas enunciações, uma nova potência, novas formas de subjetivação? Devemos separar em todo dispositivo as linhas do passado recente e as linhas do futuro próximo; a parte do arquivo e a do atual, a parte da história e a do devir, a parte da analítica e a do diagnóstico. Se Foucault é um grande filósofo é por que se serviu da história em proveito de outra coisa: como Nietzsche dizia, “agir contra o tempo, e assim, sobre o tempo, em favor de um tempo futuro”. Porque o que se mostra como atual, ou o novo, em Foucault, é o que Nietzsche chamava o intempestivo, o inactual, esse devir que bifurca com a história, um diagnóstico que faz prosseguir a análise por outros caminhos. Não se trata de predizer, mas estar atento ao desconhecido que bate à nossa porta.


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