O espaço, a cidade e o meio no biopoder – Michel Foucault

A cidade da soberania é pensada como centro moral, estético e econômico do Estado. A cidade disciplinar distribui de maneira aprimorada cada espaço disponível a partir de um tipo específico de simetria. A cidade da segurança é previsível, ao mesmo tempo, trabalha para manter todo espaço de aleatoriedade dentro de um campo de controle. Nasce uma cidade pensada nos efeitos à população de cada decisão política de planejamento e distribuição espacial.

Da série “Biopoder“.

Índice

Introdução

O dispositivo de segurança, elemento próprio do biopoder, se instala numa cidade já operada pelo poder disciplinar, já marcada pelo antigo poder soberano. Este, precisa da demarcação territorial para garantir sua existência, os dispositivos disciplinares utilizam o território para realizar suas repartições e coordenar a multiplicidade de corpos aos seus próprios desígnios e os dispositivos de segurança também trabalham em um tipo específico de repartição espacial.

A ação sobre o espaço é um elemento que cruza essas três tecnologias de poder e faz parte de suas possibilidades práticas de existência. Assim, entender a ação biopolítica sobre o espaço pede a observação das alterações acerca da noção de espaço nessas três estratégias.

Segundo Foucault, até o início do século XIX, a cidade era caracterizada por uma demarcação jurídica e administrativa que a isolava, distinguia, de outros espaço territoriais; era separada do mundo externo através de uma construção murada, densa, com clara função militar, mas não só. Por fim, a cidade era marcada pela heterogeneidade econômica e social acentuada em relação ao campo. O crescimento do comércio e da demografia urbana tornava o encerramento em si da cidade um problema e tornava urgente a necessidade de sua abertura, de sua flexibilização, do aumento da possibilidade de circulação na cidade e entre a cidade e seus entornos[1].


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O espaço do poder soberano

Foucault cita o texto de Alexandre Le Maître, oficial militar do século XVII, intitulado La Métropolitée. Alí, Le Maître se pergunta o que uma capital deve conter para exercer corretamente suas funções. Segundo o texto, O Estado é composto por três elementos: os camponeses, os artesãos e o terceiro estado, ou seja, o soberano e seus oficiais.

Essa separação do Estado em três ordens pode ser ilustrada pela ideia de um edifício[2]:

  1. No nível mais baixo, nos alicerces, na fundação, há os camponeses, que irão garantir a solidez de todo edifício;
  2. Nas áreas comuns, os artesãos que irão fazer os serviços para garantir o bom funcionamento do edifício;
  3. Na área nobre, de habitação e recepção, o soberano e seus oficiais.

O resultado desta separação é o planejamento de um campo que deve ser preenchido unicamente por camponeses; das pequenas cidades que devem ser habitadas somente por artesãos e, por sua vez; de uma capital grandiosa, morada do soberano e seus oficiais (e dos camponeses e artesãos que garantem o bom funcionamento da corte).

Para além disso, há uma relação estética e simbólica da capital para o restante do território: ela deve ser seu ornamento. “A capital deve dar o exemplo dos bons costumes. A capital deve ser o lugar em que os oradores sacros sejam os melhores e melhor se façam ouvir […] A capital deve ser o lugar do luxo para que constitua um lugar de atração para as mercadorias que vêm do estrangeiro”[3].

Vê-se uma relação propriamente soberana com o território:

Ou seja, a relação da soberania com o território é que é essencialmente primeira e que serve de esquema, de chave para compreender o que deve ser uma cidade-capital e como ela pode e deve funcionar. Aliás, é interessante ver como, através dessa chave da soberania como problema fundamental, vemos surgir um certo número de funções propriamente urbanas, funções econômicas, funções morais e administrativas, etc. E o que é interessante afinal é que o sonho de Le Maître é o de conectar a eficácia política da soberania a uma distribuição espacial.[4]

Nos anos de Le Maître, o mercantilismo era crescente e o objetivo de construir uma cidade sob o sentido estratégico da soberania era de desenvolvê-la através do comércio. Seu grande problema poderia ser resumido em: como tornar um território bem capitalizado, organizado em torno de uma capital que deve ser o ponto central econômico e político.

O espaço do poder disciplinar

Richelieu, na França, é o exemplo de Foucault para a cidade disciplinar. Foi planejada a partir do território vazio, pensada literalmente desde seu início. Para sua construção, foi utilizado a forma do acampamento romano “que, na época, acabava de ser reutilizada na instituição militar como instrumento fundamental de disciplina”[5].

Podemos dizer que a cidade é pensada de início, não a partir do maior que ela, o território, mas a partir do menor que ela, a partir de uma figura geométrica que é uma espécie de módulo arquitetônico, a saber, o quadrado ou o retângulo por sua vez subdivididos, por cruzes, em outros quadrados ou outros retângulos.[6]

Trata-se de um planejamento que preza pela simetria, mas também pelas dissimetrias bem calculadas.

Numa cidade como Richelieu, por exemplo, vocês têm uma rua mediana, que divide efetivamente em dois retângulos o retângulo da cidade, e outras ruas, algumas delas paralelas a essa rua mediana, outras perpendiculares, mas que estão em distâncias diferentes, umas mais próximas, outras mais afastadas, de tal modo que a cidade é subdividida, sim, em retângulos, mas em retângulos que são, uns grandes, outros pequenos, com uma gradação do maior ao menor.[7]

No lado da cidade planejado a partir de retângulos maiores, as ruas são largas e devem servir de moradia às pessoas. Onde os retângulos são menores, as ruas mais estreitas, as lojas, comércios e artesãos devem se localizar. Neste espaço, também deve haver uma praça para acomodar as possíveis feiras. Justamente neste pedaço comercial da cidade, quanto mais lojas, quanto mais comércio, maiores devem ser os espaços para circulação de pessoas. No espaço residencial, há ruas paralelas à principal, com casas de dois andares, já nas ruas perpendiculares, casas menores: uma diferenciação espacial que representa o status social, a diferença da fortuna de cada família.

Desta forma, temos no poder soberano a tentativa de capitalizar uma cidade, já no poder disciplinar, o planejamento e construção feitos através de uma arquitetura peculiar do espaço.

O espaço do biopoder

Para entender a ligação do biopoder com o espaço, Foucault observa as urbanizações reais de cidades francesas do século XVIII. Nantes é um exemplo de Foucault: cidade em crescimento, em pleno desenvolvimento comercial, que tem como problema as aglomerações desordenadas, o pouco espaço para as novas funções econômicas e políticas que a cidade deveria desempenhar, a regulação do entorno rural, enfim, era necessário um tipo de resolução que desse conta de prever o crescimento.

A cidade que favorece a circulação, fenômeno central na descrição do problema no parágrafo anterior, deve ser construída a partir de alguns elementos concretos passíveis de observação. As ruas precisam ser largas o bastante para assegurar quatro funções: uma higiênica, uma de comércio interior, uma de comércio exterior, uma de vigilância.

Em outras palavras, tratava-se de organizar a circulação, de eliminar o que era perigoso nela, de separar a boa circulação da má, [de] maximizar a boa circulação diminuindo a má. tratava-se, portanto, também de planejar os acessos ao exterior, essencialmente no que concerne ao consumo da cidade e a seu comércio com o mundo exterior[6].

O biopoder carrega consigo a pergunta: o que poderia ser uma boa rua? Na rua, há circulação de miasmas, doenças, será necessário administrá-la tendo esta realidade. No entanto, a cidade também é o lugar por onde se levam as mercadorias, ao longo das ruas haverá lojas. Sem dúvida, nas ruas circularão os criminosos, mas também os consumidores, além daqueles que somente transitam de um local ao outro. A polifuncionalidade é uma característica essencial do espaço do ponto de vista do biopoder.

Aqui, nasce a noção de meio. Nasce na prática, pois o meio era alvo das ações dos dispositivos de segurança, apesar de ainda não ter sido teorizado. Meio enquanto espaço do aleatório, do acontecimento, daquilo que deve ser administrado para favorecer os bons movimentos que se espera da cidade moderna, caracterizada pela circulação.

Os dispositivos de segurança trabalham, criam, organizam, planejam um meio antes mesmo da noção ter sido formada e isolada. O meio vai ser portanto aquilo em que se faz a circulação. O meio é um conjunto de dados naturais, rios, pântanos, morros, é um conjunto de dados artificiais, aglomeração de indivíduos, aglomeração de casas, etc. O meio é certo número de efeitos, que são efeitos de massa que agem sobre todos os que aí residem.[7]

No meio, há o encadeamento de causas e efeitos numa série longa. Por exemplo: se a aglomeração desordenada for maior, haverá mais miasmas e mais pessoas ficarão doentes e mais pessoas morrem. Em vez dos efeitos atingirem os seres humanos enquanto sujeitos de direito, indivíduos livres, os atingem enquanto espécie, enquanto coletivo baseado no fato fundamental de que os humanos fazem parte de uma espécie, “ou seja, uma multiplicidade de indivíduos que são e que só existem profunda, essencial, biologicamente ligados à materialidade dentro da qual existem”[8].

Considerações finais

Chega-se à conclusão de que o biopoder trabalha no espaço enquanto meio, enquanto local do acontecimento, da circulação e das probabilidades.

Digamos para resumir isso tudo que, enquanto a soberania capitaliza um território, colocando o problema maior da sede do governo, enquanto a disciplina arquiteta um espaço e coloca como problema essencial uma distribuição hierárquica e funcional dos elementos, a segurança vai procurar criar um ambiente em função de acontecimentos ou de séries de acontecimentos ou de elementos possíveis, séries que vai ser preciso regularizar num contexto multivalente e transformável.[9]

A cidade da segurança é previsível, ao mesmo tempo, trabalha para manter todo espaço de aleatoriedade dentro de um campo de controle. Nasce uma cidade pensada nos efeitos à população de cada decisão política de planejamento e distribuição espacial.


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Referências

[1] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.17.

[2] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.18.

[3] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.19

[4] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.19-20

[5] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.21

[6] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.21-22

[7] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.28

[8] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.28

[9] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.27

Cite este artigo:

SIQUEIRA, Vinicius. O espaço, a cidade e o meio no biopoder – Michel Foucault. Colunas Tortas. Acesso em [DD Mês AAAA]. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/o-espaco-a-cidade-e-o-meio-no-biopoder-michel-foucault/>>.

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