A loucura suicida – Michel Foucault

O suicídio passa a frequentar um campo fora do sagrado, um campo de existência que depende de uma certa secularização da pena e, ao mesmo tempo, ressacralização institucional: a emergência da Contrarreforma e seu olhar ao erro contra o próprio corpo em conjunto com a máquina de internamento do século XVII. O suicida, assim, passa a ser exemplo de um tipo de insano clássico: aquele que expressa uma recusa ética fundamental.

Da série “Os loucos de Foucault“.

Índice

Introdução

O grande internamento foi palco também da reclusão, da exclusão, do agrupamento de um tipo específico de sujeito desviado, um tipo específico de louco não identificável em sua particularidade, não separado dos outros loucos, não distinguido daqueles que em nada têm relação com qualquer transtorno psicológico.

Se, por um lado, a Reforma Protestante e as lutas religiosas que se moveram com ela diminuíram o rigor da avaliação acerca do ato profano e, assim, também atenuaram as penas e a identificação do crime profano, a Contrarreforma “e os novos rigores religiosos conseguem uma volta aos tradicionais castigos”[1] que se intensificam conforme o julgamento da intensidade da palavra dita. Na primeira metade do século XVII na França, houve 34 execuções por blasfêmia[2].

Ao mesmo tempo, na segunda metade do século XVII, o número de condenações públicas cai para 14 com 7 execuções[3]. O internamento passa a fazer diferença nos números de execuções públicas e de reclusos e, por sua vez, o suicida se encontra no vasto campo dos blasfemadores. O objetivo deste artigo é descrever o tipo específico de sujeito internado a partir de percepções da loucura baseadas na blasfêmia e que, em sua realização, a insensatez é percebida na agressão a si mesmo.


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A blasfêmia

Loucura e blasfêmia se unem no caso de desordem. Uma desordem encarada por uma Era de dessacralização da loucura que, ao ser abandonada pelo sagrado, ainda não seria preenchida pelas análises positivas da modernidade. O sagrado, que possibilitava a comunicação com o louco, que permitia sua interação, que não lhe calava, ao ser expulso da percepção própria da loucura, a entregou ao mundo das relações fortuitas em que a loucura e a impiedade se indiferenciam.

Extravagância da palavra que está a meio caminho entre a perturbação do espírito e a ausência de piedade do coração. Tal é o grande equívoco desse mundo dessacralizado onde a violência pode ser decifrada tão bem, e sem contradição, nos termos da insensatez ou nos da religião.[4]

Impiedade, irreligião, desordem na razão e no coração: esses elementos se misturam em um caldo de imprecisão e erro, em uma recusa ética fundamental. Este domínio, “a meio caminho entre o sagrado e o mórbido”, é o da insanidade clássica[5].

Ela abrange assim não apenas todas as formas excluídas da sexualidade como também todas essas violências contra o sagrado que perderam a significação rigorosa das profanações; ela designa portanto, ao mesmo tempo, um novo sistema de opções na moral sexual e novos limites nos interditos religiosos.[6]

Sendo assim, a Reforma e seu afrouxamento dos crimes acerca da blasfêmia e profanação em conjunto com o grande internamento e a nova configuração da loucura, não mais ao lado do sagrado e da inteligibilidade, da comunicação, agora ao lado de um conjunto disforme de outros tipos de sujeitos interligados pela recusa ética, fornecem a condição de possibilidade para, num momento de retorno da rigorosidade em relação às profanações, emergir a figura de um insano, o sujeito da recusa ética.

O suicida

Após a descrição do profano, do blasfemador, é possível entender a emergência do suicida que é colocado no internamento por tentar “desfazer-se”. Foucault assinala que o suicídio pertenceu à esfera do crime e do sacrilégio, sendo assim, a pena para aquele ou aquela que tentasse se matar sem sucesso era a morte.

A partir da Contrarreforma, no século XVII, retoma-se textualmente a noção do suicídio como aquilo que, de alguma maneira, pode ser punido com a própria morte. Ele se faz, na ordenança de 1670, como “crime de lesa-majestade humana ou divina”[7]. Entretanto, toda uma série de ações extrajudiciais praticadas e ordenadas pela própria Ordenança retiram aos poucos seu valor de profanação. As considerações acerca da doença, do desvio, do mal daquele que tentou suicídio passam a desaparecer dos registros das casas de internamento. Em vez disso, somente a citação da tentativa: ela própria já significava uma desordem da alma e somente a coação poderia reduzi-la.

Desta forma, na prática, não mais se condena aqueles que procuraram a morte: eles são internados e lhes é imposto um regime que funciona, ao mesmo tempo, como punição e como proteção. A maneira de impedir a lesa-majestade humana ou divina envolve uma correção, uma reforma moral, uma punição da carne que comete erros a partir de um vacilo de seu próprio motor, a alma. É através da dor que se recupera do estado de recusa ética fundamental que o suicídio apresenta.

O sistema de repressão com o qual se sanciona esse ato libera-o [o suicida e o suicídio] de qualquer significação profanadora e, definindo-o como conduta moral, o conduzirá progressivamente para os limites de uma psicologia. Pois sem dúvida pertence à cultura ocidental, em sua evolução nos três últimos séculos, o fato de haver fundado uma ciência do homem baseada na moralização daquilo que para ela, outrora, tinha sido sagrado.[8]

Desta maneira, o suicídio passa a frequentar um campo fora do sagrado, um campo de existência que depende de uma certa secularização da pena e, ao mesmo tempo, ressacralização institucional: a emergência da Contrarreforma e seu olhar ao erro contra o próprio corpo em conjunto com a máquina de internamento do século XVII.

Considerações finais

Neste momento, Foucault sinaliza as condições de possibilidade à estrutura de exclusão que produz o enunciado da loucura, que trabalha em conjunto com o discurso da loucura e com a prática de internamento, como um dispositivo (ferramenta de análise não utilizada pelo autor ao longo da História da Loucura na Idade Clássica).

A descrição acima das condições de possibilidade do suicida e do profano serem colocados na mesma casa de internamento através de uma percepção da recusa ética fundamental é, no fundo, o mapeamento de uma prática do olhar acerca da loucura, de uma percepção como prática, como aquilo que não se faz na aleatoriedade de uma consciência livre e racional, mas na historicidade de uma formação discursiva específica.

Figuras do desatino

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 93.

[2] Idem.

[3] Idem.

[4] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 94.

[5] Idem.

[6] Idem.

[7] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 95.

[8] Idem.

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