O fazer filosófico de Emil Cioran

Numa existência continua e ininterrupta de flagelo, a arte (especialmente a música) causa uma experiência humana concentrada no páthos do indivíduo, e este torna a vida menos insuportável - assim, a arte adquire um caráter quase divino.

cioran filosofia
Emil Cioran, por Franziska Messner-Rast.

Herdeiro da tradição irracionalista, Emil Cioran (1911 – 1995) sugere a impossibilidade de escapar das aflições humanas, visto que não podemos nem afirmar e nem negar a nossa Vontade – a única coisa que restaria, então, seria conviver em um mundo de dor e sem propósito, podendo apenas aceitá-lo ou odiá-lo.

Enfatizando o instinto em detrimento da razão, o filósofo se colocará contra o modo com que é feito o exercício filosófico de seu tempo: um saber artificial e frio, que não toca nas aflições humanas, indiferente ao Homem e apático ao mundo, que suprime pensamentos mais elevados em prol de uma produção fechada em si mesma:


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Nunca se criticará demasiado o século XIX por haver favorecido essa corja de glosadores, essas máquinas de ler, essa malformação de espírito que encarna o Professor – símbolo do declínio de uma civilização, do aviltamento do gosto, da supremacia do trabalho sobre o capricho.[1]

Tal crítica é dirigida também à produção acadêmica que não busca os problemas e os flagelos da existência, mas um exercício filosófico mecânico e muitas vezes sob a forma mercadológica, o que levará Cioran a considerar Sartre uma “fábrica de ideias” e tomar Kant como a personificação desse exercício:

Afastei-me da filosofia no momento em que se tornou impossível para mim descobrir em Kant alguma fraqueza humana, algum acento de verdadeira tristeza.[2]

Assim, ele irá buscar outra forma de abordar a filosofia, distanciando-se das elaborações sintéticas e se aproximando de uma filosofia “orgânica”, que trate da subjetividade do homem, feita de fibra, que pode capturar a essência do mundo e transmiti-la ao homem.

“Sem Bach, a teologia seria desprovida de objeto, a Criação fictícia, o nada peremptório. Se há alguém que deve tudo a Bach esse alguém é Deus”[3]

A fluidez dos instintos e ebulições interiores torna fecundo e intenso o pensamento, proporcionando à expressão ser cheia de conteúdo e lirismo; do contrário, a impessoalidade leva a uma carcaça morta, forma sem conteúdo. Portanto, ao exercício da contemplação, angústia e encantamento são duas marcas indissociáveis quando se olha o abismo – não por menos, o fazer filosófico que não acompanha a inquietude consigo não passa de um dogmatismo filosófico ou mera “pregação” do sofrimento (Cioran coloca ambos no mesmo patamar):

Sem nossas dúvidas sobre nós mesmos, nosso ceticismo seria letra morta, inquietude convencional, doutrina filosófica.[4]

Cioran se coloca contra, portanto, à artificialidade da “letra morta” do academicismo, mas também às filosofias de botequim e ao sofrimento adolescente:

“Existe na estupidez uma gravidade que, melhor orientada, poderia multiplicar a soma de obras primas” [5]

Por isso, o fazer filosófico de Cioran busca estar entre a angústia e o rigor com a ideia (e com a escrita) quando é praticado; mesmo uma ideia violenta exige a delicadeza de calcular milimetricamente as marteladas, e o equilíbrio reside nesses dois exageros, cada qual de um lado; renunciando a qualquer um dos dois, o equilibrista cai da corda: o silogismo só é possível com a amargura.

Abordar em um texto ideias propositalmente fragmentadas – em aforismos, por exemplo – torna a tarefa do entendimento uma busca para compreender uma filosofia que não é baseada na racionalidade íntegra. Significa optar por transfigurar a ideia a fim de deixar a reflexão aos capazes de compreendê-la; assim como a “morte de Deus” em Nietzsche não implica em um defunto divino, mas na morte do pensamento religioso e sua superação[6], os aforismos de Cioran não terminam em si mesmos – a estética literária busca elevar o pensamento filosófico – ele irá pontuar que “comparado com a música, o misticismo e poesia, a atividade filosófica procede de um impulso reduzido e uma profundidade suspeita”[7].

Numa existência continua e ininterrupta de flagelo, a arte (especialmente a música) causa uma experiência humana concentrada no páthos do indivíduo, e este torna a vida menos insuportável – assim, a Arte adquire um caráter quase divino. O fazer filosófico de Cioran está ligado, portanto, mais às emoções que às razões; a primazia do sentir ao pensar; assim, ao unir a arte à filosofia, torna esta última elevada, e a metáfora do equilibrista nietzschiano entre o macaco e o super-homem é transferida: a travessia da racionalização repugnante ao sentimento elevado.

Não são, contudo, as minhas leituras que me formaram, mas os acidentes e os encontros. Tudo o que descrevi é fruto de circunstâncias, azares, conversas, ruminações noturnas, crises de abatimento mais ou menos cotidianas, obsessões intoleráveis. Meu estado de saúde, felizmente comprometido, é em grande medida responsável pela direção, da cor, dos meus pensamentos.[8]


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Referências

[1] Silogismos da Amargura. Tradução: José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p.20.

[2] Breviário de decomposição. Tradução: José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p.69.

[3] Silogismos da Amargura, p.88

[4] Silogismos da Amargura, p.11

[5] Silogismos da Amargura, p.11

[6] Deus Está Morto – Nietzsche. Colunas Tortas, acessado em 05/02/2016.

[7] Breviário de decomposição, p. 71.

[8] “Carta-prefácio de E.M. Cioran a Fernando Savater”, in: Ensayo sobre Cioran. Madrid: Espasa Calpe, 1992. Tradução do Espanhol por Rodrigo Menezes.

12 Comentários

  1. Não ousei comentar até então, porque minhas reflexões sobre o que leio e indicados por este incrível canal de divulgação da cultura, ainda, são muito simplórios, dado o tempo que eu venho me dedicando a elas.
    Nesse sentido, só me cabe agradecer, aqui, a oportunidade de ter acesso a conteúdos tão especiais e necessários para quem está disposto a entender um pouco mais a vida, fazendo, na medida do possível, relações entre o que se lê e o que se vive, para manter viva ideia de que as palavras ou o sentido que damos a elas, ou mesmo as nossas interpretações advindas da Arte, compreendida por mim como um suspiro de liberdade, são o que há de mais importante e, portanto devem sem ser abraçadas com admiração, tendo em vista, criar um jeito de olhar o mundo com menos angústia e dor, se soubermos extrair o belo universal.
    Assim é, com muita ousadia, fundamentá-lo de forma que seja construído, saindo da condição do nada ser, para um estado mais avançado e colorido do pensamento, já que somos sua cópia fiel da nossa consciência.

    Acho.

    Um elogio ao Lucas Kuntz que escreve maravilhosamente bem as resenhas dos livros indicados pela ” Colunas Tortas”.
    Um abraço e agradecimento a todos.

  2. Vou ousar fazer um comentário, mesmo sabendo que o meu repertório sobre Filosofia de ontem ou de hoje, é ainda, pobre, mediante tamanha consistência em que se apresentam as resenhas dos livros, escritas pelo Lucas.

    Emil Cion faz uma crítica às escrituras aos filósofos do seu tempo, apontando a ausência de ligações entre teoria e prática (em educação chamamos de PRAXIS. Em Educação exaltamos a importância de que profissionais que trabalham em escolas façam essa aproximação o tempo todo)
    Nesse sentido, (se eu fiz uma boa interpretação) acredito que ele tenha razão, quer dizer, o que adianta saber o que o outro sabe e pensa se isso, pouco ou nada se aproxima ou é aplica à minha prática diária ou à minha vida?
    Não seria o mesmo que colocar a filosofia num lugar pouco acessível?

  3. Ótimo texto! Ao ler o livro de Cioran, Nos Cumes do Desespero, percebi a importância dos estudos sobre a subjetividade e a relação que o corpo (instintos, emoções, etc) tem com o tema. Um leitor voraz de Nietzsche, Cioran é um pensador que não romantiza a filosofia… Parabéns!

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